Tensão é motivada por disputa com proprietário de sítio localizado dentro da Terra Indígena Tenondé Porã, que abriga 14 aldeias no extremo sul da cidade de São Paulo
Por Isabel Harari, Repórter Brasil
Para não assustar ainda mais as crianças da aldeia, Yva Rete contou que o barulho que ouviam era de bombinhas de festim. Mas eram tiros. Na segunda-feira (13), homens armados invadiram a Terra Indígena Guarani Tenondé Porã, no extremo sul da cidade de São Paulo, e dispararam para o alto. Eles também ameaçaram os indígenas, queimaram casas e chegaram a apontar armas para crianças. Cinco dias depois, voltaram. Dessa vez, escoltados por policiais militares sem identificação e usando um drone para registrar ilegalmente a área.
Ataques como esses vêm aterrorizando os Guarani nos últimos meses. “Vivemos um horror. Eles falaram que iriam nos matar e que vão continuar fazendo isso até conseguirem essa parte da terra”, contou a liderança Yva Rete à Repórter Brasil, durante uma visita ao território. Uma outra jovem indígena, que preferiu não ter seu nome divulgado, disse que quando os invasores ameaçaram as crianças e perceberam que estavam sendo filmados falaram que “se o vídeo vazasse, iam voltar e matar nossa família”.
Por trás da violência está a disputa por uma região dentro da terra indígena, a cerca de 1 km da aldeia Kuaray Oua. É ali que fica o Colinas Verdes, um sítio cujo proprietário, Cícero Ferreira dos Santos, entrou com um pedido de reintegração de posse na Justiça Estadual contra os Guarani, em que alega que a aldeia incide sobre sua propriedade. De acordo com os indígenas, foi ele quem comandou os ataques.
Santos comprou a propriedade oficialmente em 16 de novembro deste ano. A Terra Indígena (TI) Tenondé Porã é reconhecida como usufruto exclusivo do povo Guarani desde 2016.
A reportagem foi até a sede do sítio e entrou em contato com Santos por telefone e e-mail, dele e de sua empresa, mas ele não respondeu. Na ação de reintegração, ele reconheceu que esteve na aldeia e disse que os indígenas são “agressivos”, mas que busca um desfecho “amigável” para o caso.
A advogada dos indígenas, no entanto, não concorda. “Se o sr. Santos tivesse qualquer intenção de discutir pelas vias jurídicas cabíveis a posse sobre o terreno, não teria se utilizado de expedientes ilegais e violentos tanto antes quanto depois do ingresso desta ação judicial”, disse Luisa Cytrynowicz, advogada da Comissão Guarani Yvyrupa, que representa os Guarani no Sul e Sudeste.
Incêndios e policiais sem farda
A escalada de violência recente fez com que os Guarani registrassem um Boletim de Ocorrência. No final de novembro o Ministério Público Federal abriu um procedimento e requisitou o acompanhamento do caso pela Polícia Federal (PF) e pela Polícia Militar. A PF informou que instaurou um inquérito para apurar os fatos. Já a Polícia Militar não respondeu sobre a acusação dos indígenas de que policiais sem identificação entraram na TI. Questionada sobre se está a par da situação e como está protegendo os Guarani, a Funai não respondeu.
“Estamos com medo. É muito assustador porque sempre tivemos uma relação pacífica com os vizinhos”, relata Tiago Karai, do conselho de lideranças da Tenondé Porã, formada por 13 aldeias além da Kuaray Oua.
A tensão começou em agosto, quando o antigo dono do Colinas Verdes, José Jorge Peralta, foi até a aldeia e disse que a área estava dentro dos limites de sua propriedade. Em 2012, João Peralta, irmão de José, foi identificado como um dos ocupantes não indígenas no Relatório de Identificação da TI.
Não houve mais contatos até o 23 de novembro, quando duas pessoas disseram aos indígenas que o terreno havia sido comprado e que a comunidade teria que sair de lá. Um dos homens afirmou ser policial militar, embora não estivesse fardado.
As ameaças de que “as coisas iriam terminar mal” se agravaram e uma casa foi incendiada no início de dezembro, quando houve também outro ataque armado. Um dos homens, segundo os indígenas, deu a entender que era Cícero dos Santos, atual dono Colinas Verdes. Os Guarani filmaram a placa de um dos carros, registrada no nome de uma empresa cujo telefone e e-mail é o mesmo da Mobllar Negócios Imobiliários, da qual Santos é sócio. E foi no dia 13 de dezembro que Yva Rete conta ter sentido mais medo, quando seis homens em uma caminhonete e dois carros invadiram a comunidade atirando para o alto, ameaçando matar os Guarani.
No sábado (18), a ameaça chegou em um novo patamar quando os invasores entraram com um drone e acompanhados de policiais que disseram ser do 50º Batalhão da Polícia Militar. Questionada pelos assessores dos indígenas, a corporação mencionou a existência de uma ordem judicial, mas se recusou a fornecer mais detalhes. À Repórter Brasil, a PM disse apenas que os policiais estavam cumprindo uma ocorrência apresentada ao 101º DP.
O grupo alegou estar fazendo um mapeamento da área com o drone – argumento que a advogada Cytrynowicz refuta. Para ela, o registro da aldeia sem a autorização dos indígenas é uma grave violação de privacidade: “A PM deveria informar exatamente o que estava sendo cumprido, o que não aconteceu”.
A reportagem teve acesso à decisão da juíza Márcia Blanes do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) em resposta ao pedido de reintegração de posse feito por Santos. O documento não autoriza diligências em campo e questiona, inclusive, a pertinência da solicitação à esfera estadual, já que por se tratar de terra indígena a prerrogativa seria federal.
‘Má fé’
No longo processo de demarcação de uma TI, a Tenondé Porã está num estágio avançado. Como já houve a publicação da Portaria Declaratória, isto é, a declaração de que a área pertence aos indígenas, o passo atual é a demarcação física e a retirada de ocupantes não-indígenas, a chamada desintrusão. Nesse momento, os proprietários considerados ocupantes de boa fé têm direito à indenização.
José Peralta, o dono anterior do sítio, está na região há mais de 30 anos e poderia se encaixar nessa categoria. Mas contou à reportagem que decidiu vender a área depois “que os indígenas começaram a invadir” e “porque não quer brigar com ninguém, só quer cuidar da natureza”.
A Constituição, conforme reforça a advogada dos Guarani, garante o usufruto exclusivo dos indígenas sobre seu território. “Não é permitido que qualquer terceiro tenha intenção de lotear, construir ou dar qualquer destinação particular em relação a essa área que está inserida dentro da TI”, afirma Cytrynowicz.
Ex-professor de linguística da Universidade de São Paulo (USP), Peralta diz que comprou o terreno para fazer “um projeto de preservação ambiental” e que “os indígenas nunca estiveram ali”. Também disse desconhecer que a área estava dentro de uma TI, embora a assessoria jurídica dos Guarani afirme que o advogado de Peralta recebeu, antes da venda, a documentação que comprovava que o sítio estava dentro de uma TI. Já na escritura em que o ex-professor formaliza um contrato com o atual dono (Santos), não há menção ao fato de o imóvel estar sobreposto ao território Guarani. “É possível considerar que essa celebração de contrato é de má fé”, explica a advogada.
Ainda assim, o novo proprietário poderia aguardar a indenização. Mas não foi o que aconteceu. Após a assinatura final do contrato, em novembro, Peralta fez um B.O. acusando os indígenas de invadirem suas terras, enquanto Santos entrou com o pedido de reintegração de posse. A ação está em nome de sua empresa, cujas principais atividades estão gestão de propriedade imobiliária, construção, venda e aluguel de imóveis.
Yva Rete afirma que os indígenas não vão sair da Kuaray Oua. “Vamos continuar aqui na aldeia, firmes, porque sabemos que essa área nos pertence. Queremos plantar mandioca, milho e viver bem”, desabafa.
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Imagem: Indígenas da aldeia Kuaray Oua enfrentam ameaças e ataques desde o final de novembro (Foto: Pedro Biava/CGY)