Eduardo Gudynas: “A novidade mais importante e promissora para o meio ambiente e desenvolvimento de 2021 está acontecendo no Chile”

Em versão exclusiva para Combate Racismo Ambiental, Eduardo Gudynas faz um balanço do que aconteceu em termos de meio ambiente e desenvolvimento em 2021, buscando deixar de lado o negativo e focar no primeiro plano a esperança e as possibilidades de mudança. O original em espanhol pode ser lido aqui.

Neste final de 2021, qualquer balanço da situação ambiental na América Latina facilmente acabaria indicando uma persistente deterioração ambiental, que por sua vez causa múltiplos impactos sociais, que as políticas governamentais continuam sem reverter. Mas é possível seguir uma jornada inversa para focar no que há de mais promissor, inovador e vigoroso do ano. Em vez de compartilhar um balanço que lista os locais mais poluídos ou a promessa de alguma nova área de proteção ambiental, podemos nos concentrar em novidades que ocorrem na própria origem das políticas ambientais.

Quanto a isso, a inovação mais importante e esperançosa de 2021 está no Chile, em sua Convenção Constitucional. Especificamente, na Comissão que vai abordar a temática ambiental, e que ao mesmo tempo é mais que isso, pois também será responsável pela promoção dos direitos da Natureza, e, como se não bastasse, tudo isso interligado a modelos econômicos.

Na Convenção Constitucional, foi instalada a Comissão de Meio Ambiente, Direitos da Natureza, Patrimônio Natural Comum e Modelo Econômico. É uma denominação longa, mas deve ser analisada porque contém mensagens e lições. Estamos diante de uma comissão clássica de questões ambientais, questão que não pode faltar em nenhuma constituição. Mas em seguida começam as novidades. Ela recebe um mandato específico para tratar dos direitos da Natureza, e isso coloca o país na vanguarda dessa questão. Esses direitos, em nível constitucional, só foram reconhecidos pelo Equador, na sua Constituição de 2008.

Acrescenta-se a questão dos “bens naturais comuns”, o que exigirá definir o que implica a noção de “bem” e a atribuição de “natural”. Com isso, a Comissão se compromete a abordar questões essenciais, como noções de propriedade e a definição de bem comum. Todos esses debates devem ser acompanhados de uma discussão sobre modelos econômicos. A novidade impactante está justamente nesse conjunto.

É que o olhar tradicional coloca esses assuntos em caixas separadas. Por exemplo, na Constituinte do Equador, as questões ambientais e econômicas estavam em diferentes comissões. Mas é precisamente essa separação temática que explica por que as abordagens econômicas convencionais foram ecologicamente cegas por anos, levando a modelos de desenvolvimento que depredam e poluem o meio ambiente.

Essa característica híbrida da Comissão chilena, que é desconfortável para muitos, é uma experiência única no gênero. Permite discutir as questões a partir de perspectiva diferente, no mais alto nível e sem que haja nada semelhante em outros países.

Além disso, o Centro Latino-Americano de Ecologia Social (CLAES) analisa as principais tendências da ecologia política no continente e, após essa avaliação concluiu que não existiu em todo o ano de 2021, nem mesmo no “longo ano” do pandemia 2020-21, um espaço para pensar as relações entre meio ambiente e desenvolvimento em todas essas dimensões em nenhum outro país da América Latina e, até onde se sabe, sequer em outro continente. Isso explica porque o fato ambiental de maior destaque do ano está acontecendo no Chile.

Às vezes, parece que essa relevância não está sendo percebida de forma adequada no resto da América Latina ou em nível global. Poderíamos até arriscar dizer que essas potencialidades ainda não foram adequadamente reconhecidas por movimentos cidadãos. A ênfase está no próximo governo e em como ele vai negociar com a ala direita no parlamento, e essa Convenção Constitucional seria apenas um legado da explosão de cidadãos de 2019.

Mas isso é precisamente o que a Convenção não pode ser. Não pode ser uma mera válvula de escape para reduzir a raiva dos cidadãos, mas sim um espaço para pensar outros futuros. Qualquer futuro torna-se inviável se não houver reconciliação com a Natureza ou se o pensamento econômico não compreender que existem limites ecológicos.

Isso reforça a enorme importância e as opções oferecidas por se poder construir um mandato constitucional que reconheça os direitos da Natureza e que suas formulações se estendam à dimensão econômica. Esse é outro motivo pelo qual ele é descrito como o evento ambiental mais positivo do ano.

A instalação dessa comissão não deve ser tratada como concessão à excentricidade de alguns. São mais de 30 os convencionalistas que participam do conglomerado dos chamados “ecoconstituintes”; a maior bancada da convenção. Entre eles também há muitos que vêm de esferas políticas para além dos partidos e em grande medida são independentes dessas estruturas, o que deve ser saudado na medida em que, em geral, os partidos políticos sucumbem ao desenvolvimentismo clássico.

Suas temáticas, que poderiam ser descritas como repensar mandatos constitucionais sobre o desenvolvimento a partir de um marco ecológico, despertam múltiplas resistências de setores conservadores, sejam eles do empresariado, da política ou da academia. Já existem rejeições a ideias como a dos direitos da natureza e questionamentos sobre as implicações que isso pode ter nos direitos de propriedade ou no extrativismo. As reações em alguns casos já são virulentas, o que mostra o quanto está em jogo.

Na avaliação sobre meio ambiente e desenvolvimento em 2021, um caminho clássico poderia ter sido seguido, apontando os principais problemas ambientais da América Latina. Nessa lista você encontraria, mais uma vez, o desmatamento tropical que avança, por exemplo no Brasil e na Colômbia, ou a sucessão de incêndios que afetam a Amazônia e os ecossistemas subtropicais. Também incluiria a pressão para explorar hidrocarbonetos e minerais em áreas protegidas e territórios indígenas na Bolívia e no Equador, repetindo o que fizeram anos atrás. Da mesma forma, poderia enumerar os conflitos ambientais que eclodem com a imposição do extrativismo, como ocorre na Argentina ou no Chile. Sejam esses ou outros os exemplos, nenhuma dessas situações é nova, e esse tipo de fracasso tem se repetido nos últimos anos.

O que é novo e diferente está agora no Chile porque não está circunscrito a esses problemas pontuais, e aborda as raízes políticas de todos eles. Pode mudar o rumo daquele país e também pode se tornar um exemplo para todos os seus vizinhos.

Deve-se admitir que tudo o que acaba de ser descrito deve ser matizado com cautela. O resultado desse processo constitucional não pode ser previsto, se ele se cristalizará nos direitos da natureza ou se afundará repetindo formulações convencionais. Mesmo que o melhor de todos os textos constitucionais seja alcançado, também não há garantias de que um próximo governo não os torpedeará até que se tornem inaplicáveis, como em grande parte aconteceu no Equador.

Mas o que não se pode negar é que o processo de reflexão e discussão está em andamento, e nisso reside a grande novidade. Neste momento, é no Chile que as questões ambientais podem ser discutidas no mais alto nível, ao mesmo tempo que as econômicas, repensando o marco de direitos e assim promovendo alternativas de desenvolvimento. São discussões que não são típicas de um simpósio acadêmico ou de uma oficina de reflexão, mas são impulsionadas e demandadas por amplos setores da cidadania. Alcançaram o nível mais alto possível, o poder constituinte, e o que elaborarem determinará todos os debates, todas as normas, toda a política chilena durante anos. Não existe um espaço deste tipo ou com essas implicações em nenhum outro país da região. É por isso a novidade mais marcante do ano, e se isso foi possível no Chile, também pode ser alcançado em outros países.

Eduardo Gudynas é analista do Centro Latino-Americano de Ecologia Social (CLAES); www.ambiental.net; twitter: @EGudynas

Tradução: Tania Pacheco.

Foto da atriz chilena Suzana Hidalgo, com a bandeira Mapuche ao alto, disponibilizada por ela em seu Twitter. Protestos de outubro de 2019. Foto: Susana Hidalgo.

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