Cacique não reconhece processo eleitoral e clima de tensão cresce na Terra Indígena do RS

Maior terra indígena do RS vive impasse; eleição teve participação de 60,27% do eleitorado

Por Marco Weissheimer, no Sul 21

A maior terra indígena do Rio Grande do Sul vive dias de tensão. No dia 19 de dezembro de 2021, foi realizada eleição na área para a escolha do novo cacique da Terra Indígena Guarita. Localizada em uma área de 23,4 mil hectares, abrangendo os municípios de Redentora, Tenente Portela e Herval Seco, no noroeste gaúcho (próximo à fronteira com a Argentina), a Guarita tem uma população de cerca de 6 mil habitantes (5.9996, segundo dados de 2021, do IBGE), o que representa o maior contingente populacional kaingang no Estado. Com uma estrutura de poder local associada ao modelo de arrendamento de terras indígenas para o plantio de soja, principalmente, a Guarita reproduz um clima de tensão social e política presente em outros territórios kaingangs no RS.

Segundo a comissão eleitoral que organizou o pleito, 2.394 indígenas compareceram às urnas, de um total de 3.947 aptos a votar, o que representou um total de 60,27% do eleitorado. Três chapas participaram da disputa que teve os seguintes resultados: a chapa 1, encabeçada por Valdones Joaquim, ficou em primeiro lugar com 1.733 votos, seguida pela chapa 4, com 574 votos, liderada por Constantino Carvalho, e pela chapa 3, encabeçada por Oséias de Souza, com 65 votos. Ainda foram registrados 12 votos brancos e 10 votos nulos. O problema é que o atual cacique, Carlinhos Alfaiate, que foi eleito em 2018, não reconheceu a legitimidade da comissão eleitoral e se recusa a aceitar o resultado, afirmando que ele segue sendo o cacique.

Leia tambémTerra e poder: uso de áreas indígenas por produtores rurais produz dinheiro e violência

No dia 22 de dezembro, Valdones Joaquim foi empossado pela Comissão Eleitoral. No entanto, no dia 27 de dezembro, o novo cacique, ex-vereador em Tenente Portal, foi preso pela Brigada Militar pois teria desrespeitado as regras do regime de liberdade condicional que estava cumprindo, ao participar de uma reunião sem autorização judicial expressa. Com isso, a comissão eleitoral oficializou o nome do vice-cacique Joel Ribeiro de Freitas, que é vereador em Redentora, como cacique interino até que se resolva a situação de Valdones. 

Em uma reunião realizada dia 28 de dezembro, no Polo Base da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), integrantes da comissão eleitoral levaram ao conhecimento da entidade esses acontecimentos, reconhecendo a legitimidade do processo eleitoral e se dispondo a trabalhar para garantir a paz e a tranquilidade dentro da área indígena. Joel Ribeiro de Freitas vem se reunindo com indígenas de vários setores da Guarita buscando apaziguar a situação de tensão no território, uma tarefa que não parece nada fácil na atual conjuntura.

Bloqueio de estrada e disparos de tiros

As palavras “paz” e “tranquilidade” não parecem ser as mais adequadas para definir o clima na Terra Indígena Guarita neste início de ano. Nesta segunda-feira (3), assim como já havia ocorrido no final do ano passado, apoiadores do cacique Carlinhos Alfaiate e do novo cacique eleito quase entraram em confronto durante um bloqueio na ERS 330, em frente ao setor Estiva. Nos últimos dias, esses focos de tensão vêm aumentando. Vídeos que circulam pelas redes sociais mostram disparos de tiros e arremesso de pedras durante um desses bloqueios (ver vídeo abaixo). Nesta segunda, a ERS só foi liberada para circulação de veículos por volta das 17h, após a chegada da Polícia.

O processo eleitoral foi conduzido por uma comissão eleitoral representada por homens e mulheres, que deram um prazo para o Carlinhos concorrer, mas ele se recusou a participar, relata uma integrante da comunidade que preferiu não se identificar por razões de segurança. “Todos os órgãos legais foram informados, já que as decisões internas dizem respeito às comunidades  indígenas em resolver”, assinala. “A comissão pediu autorização da SEDUC (Secretaria Estadual de Educação) para que as urnas pudessem ser colocadas nas escolas e obteve essa autorização, mas Carlinhos mandou fechar as escolas, e houve ameaças às pessoas que queriam votar. Mesmo assim, a maioria das pessoas da comunidade foi para as urnas, muitas abaixo de sol, mesmo sob ameaças. Cada setor recebeu urnas e células e a votação foi acompanhada por fiscais de todas as chapas para que a Democracia vencesse”, acrescenta.

Na avaliação de Joel Ribeiro de Freitas, o resultado da eleição reflete a situação vivida por muitas pessoas, hoje, dentro da reserva. “Tem indígenas, hoje, que não têm onde morar e não tem o que comer. Há mais de oito meses não tem água nas casas de vários setores. Os remédios no postinho não existem mais. Temos mulheres indígenas morrendo de câncer de colo de útero. Temos apenas um médico atendendo 14 setores indígenas. Os carros da saúde indígena não têm combustível pra transportar os pacientes. Então, isso não é o grupo de apenas meia dúzia, é um grito de 62% da população que resistiu à opressão e foi votar”, relata.

Autonomia e ameaça de conflito

Com a recusa do cacique Carlinhos Alfaiate em aceitar a legitimidade do processo eleitoral, o impasse está criado. O artigo 232 da Constituição Federal e os artigos 3º e 4º da Declaração dos Povos Indígenas estabelecem que as questões relativas à organização política devem ser resolvidas pelas próprias comunidades indígenas que têm autonomia para escolher seus representantes. A Funai e o Ministério Público Federal evitam se envolver nestes conflitos em função disso.

O outro lado da moeda é que a falta de algum tipo de ação por parte do Estado muitas vezes acaba mergulhando as comunidades em um clima de violência, como ocorreu recentemente na Terra Indígena Serrinha, no norte do Rio Grande do Sul. No dia 16 de outubro de 2021, dois indígenas kaingang foram assassinados na região, em meio à uma escalada de conflitos envolvendo denúncias de irregularidades no processo de arrendamento de terras e plantio de soja na reserva. No dia 9 de dezembro, a Polícia Federal prendeu o cacique da Serrinha, Márcio Claudino, e outras oito pessoas, na Operação “Kãgtén”, que na língua Kaingang significa “matar” ou “fazer matança”. A ação investiga as circunstâncias dos dois assassinatos ocorridos em outubro, além de outros delitos, como tentativa de homicídio, porte ilegal de arma e incêndio criminoso.

Lideranças da comunidade da Terra Indígena Guarita defendem o estabelecimento de algum tipo de mediação para evitar que esses episódios de violência se repitam.

Sul21 entrou em contato com o cacique Carlinhos Alfaiate para que ele pudesse apresentar a sua versão sobre a situação em curso na Guarita, mas até o fechamento dessa reportagem não obteve retorno.

Com mais de 23 mil hectares, a Guarita é a maior Terra Indígena do RS (Reprodução)

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

17 + 3 =