Dinheiro público financia poluição por carvão e destruição ambiental no Sul do país

Em Santa Catarina, queima de combustível fóssil recebe subsídios do governo enquanto cadeia produtiva gera passivo ambiental que coloca população em risco

Naira Hofmeister, Agência Pública

Rio Carvão é uma comunidade rural do interior de Santa Catarina cujo nome resume sua história recente e anuncia a cruzada que seus moradores decidiram empreender. Depois de décadas de exploração mineral que deixou como legado contaminação, problemas de saúde e memórias tristes, as pessoas de Rio Carvão resolveram lutar por mais rio e menos carvão. “Este é o lugar mais poluído do mundo. Queremos trabalhos limpos, empregos sadios e recuperação ambiental”, conclama a líder comunitária Branca Muniz*.

Rio Carvão é também o nome do riacho que corta essa localidade, um pequeno distrito rural de Urussanga, no sudeste do estado, 200 quilômetros ao sul de Florianópolis. Pois o carvão matou o rio de Rio Carvão. Suas águas são esbranquiçadas e correm entre pedras tingidas de laranja — cor que indica a ocorrência de drenagem ácida de mina, um dos mais graves impactos ambientais decorrentes da mineração. 

“Se botar um pedaço de ferro no rio, se desintegra. A gente brinca que o único peixe que dá aqui é o peixe-inox”, ilustra Hélio Alves Barbosa, morador da localidade. O Ministério Público Federal (MPF), que mandou medir a acidez das águas de toda a região carbonífera de Santa Catarina para calcular o tamanho do problema, compara com precisão: “Tem o mesmo pH de uma bateria de carro”, atesta o procurador federal Demerval Ribeiro Viana Filho.

Abastecido pelo Carvão, o rio Urussanga e toda a sua bacia estão comprometidos pela mineração, assim como também estão as bacias dos outros dois rios da região carbonífera de Santa Catarina, o Araranguá e o Tubarão. O diagnóstico feito pelo MPF aponta 1.200 quilômetros de rios com pH inferior a 5, o que reduz as chances de vida aquática. Há metais pesados que descem pela correnteza. E tudo isso deságua no mar — em linha reta, a 50 km dali, estão algumas das praias mais bonitas do Sul do país, além de uma importante unidade de conservação marinha, a APA da Baleia Franca, um berçário internacional dessa espécie.

Hélio Barbosa, que vive em uma pequena propriedade rural com sua família, enxerga da janela de casa uma das causas da morte do rio Carvão: do outro lado da rua em que mora há uma cratera negra que mede pelo menos 20 vezes o tamanho da sua terra, na qual estão abandonados, há décadas, rejeitos de carvão. “Antes era uma lavoura de arroz do meu sogro”, explica.

Quando chove, lagoas alaranjadas, da mesma cor do rio, se formam nos pequenos vales entre as montanhas cor de piche. É cada vez mais raro, mas ainda há vezes que ele vê focos de fogo que se acendem naturalmente na pilha de rejeitos. Um cenário apocalíptico que se repete em vários outros lugares da comunidade Rio Carvão, inclusive nas margens do curso d’água que lhe dá nome, como pode ser visto pelo Google Maps em qualquer parte da Terra em que haja internet.

Em Rio Carvão, pelo menos 435 hectares de solo (cada hectare equivale a um campo de futebol) formam uma paisagem lunar como a que Hélio Barbosa vê da janela de casa. Em toda a região carbonífera de Santa Catarina, são 6 mil hectares de superfície com esse aspecto, causado pela mineração. “Mas a degradação subterrânea é pior, alcança 18 mil hectares, com graves problemas”, compara o procurador. 

As explosões debaixo da terra para retirada de carvão fizeram a superfície colapsar. Em vários pontos o chão cedeu, as casas têm rachaduras nas paredes, poços de água potável secaram, e nos quintais, fendas e buracos apareceram. “Tudo isso foi feito por uma atividade que colocou o lucro acima de qualquer outro critério. São cem anos de mineração de carvão sem nenhum controle”, critica Viana Filho.

Feridas abertas

Assim como o solo, as pessoas também estão em pedaços em Rio Carvão. Ex-mineiros respiram apenas com uma parte dos pulmões, porque a outra foi corroída pelas partículas do carvão que eles aspiraram nos túneis subterrâneos. Como Armandio Seron, que perdeu 20% da capacidade respiratória depois de anos trabalhando debaixo da terra. Seguiu os passos do pai e de dois irmãos, que também foram mineiros: “Dava status porque o salário era o melhor que existia. Mas a gente vê hoje o estrago”.

No dia 10 de setembro de 1984, Seron estava no grupo de trabalhadores escalados para trabalhar na Mina Santana, no Rio Carvão, quando um vazamento de gás metano e uma falha no sistema de ventilação levaram a uma explosão que matou 31 mineiros debaixo da terra. É a maior tragédia da história em uma mina brasileira.

“O chão se abriu e ele se foi com Deus”, descreve Maria de Fátima Goulart, em referência ao marido, Aristides, uma das vítimas, com quem tinha acabado de ter o segundo bebê, aos 26 anos. A explosão deixou dezenas de jovens viúvas e crianças órfãs. Seron escapou porque seu turno não era o primeiro do dia.

A Mina Santana é mais uma ferida aberta no povoado. O local foi abandonado pela Companhia Carbonífera Urussanga (CCU) alguns anos depois da explosão. Sem a adoção de técnicas para evitar a contaminação do local, as cavas subterrâneas se encheram de água e um pântano sulfuroso se criou diante da antiga boca da mina. Virou outro foco de drenagem ácida que corre para o rio Carvão.

Para ver a cena, entretanto, é preciso caminhar no meio do matagal alto e atravessar córregos sujos usando troncos improvisados como pontes. “A gente gostaria de levar umas flores para lembrar os nossos mortos, mas nem a isso tivemos direito, porque é impossível chegar lá”, lamenta Rita de Cássia Alves Zanelatto, que tinha 18 quando o irmão morreu na explosão e hoje, aos 56, tem o coração partido pelas memórias dolorosas.

No ano 2000, uma decisão judicial determinou que as mineradoras responsáveis pelos danos ambientais em Rio Carvão deveriam recuperar as áreas exploradas, despoluir os rios, fechar corretamente as bocas de mina abandonadas e restaurar a paisagem que ficou só na memória dos mais velhos. Mas àquela altura a maioria das empresas tinha falido e, por isso, a tarefa foi entregue ao governo federal, que a executa a um ritmo insatisfatório. “Esse passivo entrou na lista imensa de precatórios da União, está muito atrasado, o cronograma nunca se cumpre”, lamenta o procurador Viana Filho.

Enquanto isso, as famílias donas das minas de carvão abriram outras empresas que seguem explorando a atividade. “Os direitos minerários são todos muito antigos, vêm desde a década de 1930 nas mãos das mesmas famílias”, explica o representante do MPF.

A família Zanette, de Criciúma, por exemplo, era proprietária da CCU, cuja Mina Santana explodiu. Hoje, comanda a Rio Deserto, que protagonizou outro embate judicial com a comunidade no qual a vitória popular, obtida em 2016, ficou só no papel.

Naquele ano, a Justiça Federal obrigou a Rio Deserto e a Coquesul, que mantêm juntas uma coqueria — tipo de planta industrial que aquece o carvão a altíssimas temperaturas para gerar um derivado chamado coque — a pagarem R$ 400 mil em indenizações coletivas, além de aplicarem métodos que assegurassem que o ar expelido pelas suas chaminés era limpo. Moradores se queixavam de problemas respiratórios e de partículas negras que caíam do céu e faziam murchar as hortas, manchando também o piso das casas. 

Só que cinco anos depois a quarta turma do TRF4, em Porto Alegre, anulou a sentença porque entendeu que o tema deveria ser tratado na esfera estadual da Justiça. “Agora é preciso recomeçar todo esse caminho novamente. Faz 40 anos que as pessoas sofrem com isso, mas até hoje não foi resolvido”, desabafa Marlene Zanin, advogada da Associação Comunitária do Rio Carvão (Acric).

Enquanto isso, aos 63 anos, Fátima Ivonete Cesconetto Piva está exausta das crises de falta de ar que muitas vezes a levam ao hospital. Ela é vizinha da coqueria. “Às vezes acho que vou morrer”, admite.

A comunidade mantém a vigilância contra o carvão de forma permanente, mas volta e meia alguma liderança pede para sair um pouco dos holofotes. É o caso de Branca Muniz*, que precisou ter seu nome alterado para esta reportagem porque se sente ameaçada. “Além da tristeza, estamos sentindo medo. Estão cerceando as pessoas, recebemos ligações telefônicas estranhas, tem gente sendo seguida por veículos”, revela.

Uma ex-presidente da Acric teve de se afastar do movimento depois que um delegado local abriu uma investigação contra ela, motivada por uma denúncia da empresa de coque. Um jovem casal também muito ativo nos protestos teve a construção da casa embargada pela prefeitura por dois anos. “As mineradoras têm uma força econômica significativa na região, e isso influencia todo o jogo político”, observa a advogada Marlene Zanin.

Queimando dinheiro público

Ao longo dos últimos 50 anos, o carvão que saiu das minas de Rio Carvão, em Urussanga, e de Criciúma, Lauro Müller, Içara e outros municípios que compõem a região carbonífera de Santa Catarina foi arrancado da terra para abastecer uma usina construída pela ditadura às margens da BR-101, no caminho para as praias mais bonitas do Sul do país.

Para fazer o negócio prosperar, os militares criaram também um subsídio público para os gestores da usina comprarem carvão. Ou seja, a abertura de crateras em Rio Carvão, a contaminação das águas, os problemas de saúde e outras consequências decorrentes da exploração mineral foram pagos com o dinheiro do contribuinte, descontado mensalmente na conta de luz que todos os brasileiros pagam.

O subsídio chegou aos dias atuais. Em julho de 2021, a previsão do valor para o ano subia para R$ 750 milhões — é mais do que o governo concedeu em créditos extraordinários em dezembro para aplacar o sofrimento dos habitantes da Bahia e Minas Gerais que sofriam com as enchentes.

A maior beneficiária do valor foi a Engie, uma gigante do setor elétrico de origem francesa que é “a número um no mundo em energia limpa”, mas cujo resultado financeiro no Brasil em 2020, de R$ 2,8 bilhões, foi alcançado com as contribuições de duas térmicas a carvão, o complexo Jorge Lacerda e Pampa Sul, no Rio Grande do Sul.

“Nós estamos vendo o clima ser agredido e a posição do Brasil fica realmente difícil diante da comunidade internacional. Se não tivéssemos nenhuma alternativa, mas, com o imenso potencial eólico e solar, as possibilidades remanescentes de hidrelétricas e até mesmo as reservas de gás fica difícil”, observa Luiz Eduardo Barata, que foi diretor do Operador Nacional do Sistema (ONS) e trabalhou a vida toda para o setor elétrico. Hoje, presta consultorias a organizações interessadas no debate sobre transição energética.

Do ponto de vista da indústria do carvão, o recurso público empregado na atividade se justifica. “De 2006 até 2020, nós geramos R$ 10 bilhões de ganhos para o consumidor brasileiro por conta dos períodos de falta de água. Quando chovia muito, o governo botava dinheiro para a indústria do carvão seguir operando, mas nos períodos de crise hídrica o consumidor teve um ganho na sua tarifa de energia [graças às térmicas]”, defende Fernando Luiz Zancan, presidente da Associação Brasileira do Carvão Mineral (ABCM).

Mas, à medida que o planeta aquece, a defesa do carvão, que é altamente poluente, fica cada vez mais difícil. 

No mundo todo a capacidade instalada de usinas que funcionam com essa fonte de energia está caindo, considerando-se unidades em operação e em construção. Os novos projetos de térmicas, que eram 1.039 naquele ano, chegaram a apenas 300 em 2019.

Na Europa, que desenhou um pacto econômico ecológico para zerar suas emissões de gás carbônico até 2050, a pressão social levou a Engie a prometer varrer o carvão de seus negócios como resposta à emergência climática. No Brasil, Jorge Lacerda responde pelo maior volume das emissões de gases do efeito estufa da companhia. “Somados, Pampa Sul e Jorge Lacerda correspondem a 99,3% das emissões da Companhia — sendo 73,4% referente a Jorge Lacerda”, aponta o relatório de sustentabilidade de 2020 da empresa.

Por isso, mesmo sendo o maior complexo gerador de energia térmica a carvão em toda a América Latina e contando com a ajuda do governo, a companhia decidiu se desfazer de Jorge Lacerda.

A empresa começou a analisar propostas em 2017, mas a costura do negócio passava por chegar a um “ponto de equilíbrio” entre os interesses dos dois lados do balcão — o que se mostrou difícil, já que, apesar de ser lucrativa graças ao subsídio, a usina é um investimento de risco, por ter um futuro limitado. Três anos depois, sem conseguir avançar, a empresa anunciou: “Sem uma definição, até 2025 teremos o fechamento de Jorge Lacerda. A fase A é a mais antiga e poderia ocorrer até 2023, as outras duas em 2025”, disse em dezembro de 2020 o CEO da Engie Brasil, Eduardo Sattamini.

Unidos pelo carvão

A ideia de encerrar as atividades de Jorge Lacerda em um horizonte tão curto de tempo alarmou a região pelo temor de que a economia despencasse. A ABCM divulgou que o prejuízo anual para a economia seria de R$ 6 bilhões. “Enquanto não se pensar em uma forma de garantir a vida das nossas famílias, nem pensar em fechar”, defendia, em novembro de 2021, Tomás Alfredo Costa, morador de Capivari de Baixo, onde fica a usina.

Na cidade é muito difícil encontrar algum crítico ao uso do carvão, já que foi a construção da termelétrica que deu origem ao município, antes um bairro da vizinha Tubarão.

A maior atração de lazer de Capivari é o Parque Ambiental Encantos do Sul, onde a população faz piquenique e jogging ao redor das chaminés e dos pátios de carvão da usina. Sua construção foi uma espécie de compensação por décadas de descaso ambiental da cadeia do carvão — a atual área verde era antes um local degradado pela atividade. “Aqui ninguém vai falar mal da usina, porque todo mundo tem família trabalhando lá”, explicou uma vendedora de uma loja de eletrônicos que fica na principal rua da cidade.

Os postos de trabalho foram argumento central no debate. “A transição energética não é justa com os trabalhadores. Não é justo tirar o nosso emprego”, contrapõe o presidente da Federação Interestadual dos Mineiros, Genoir José dos Santos, 62 anos. São 2.700 trabalhadores em minas, mas ao todo a cadeia abarca 21 mil empregos.

Para defender o ganha-pão, os sindicalistas fizeram uma aliança inusitada com os patrões, que os municiaram com dados e argumentos para defender a atividade mineradora e a usina aberta. Na entrevista para esta reportagem, Santos e seu colega Leonor José Rampilli, 58 anos, presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Extração de Carvão de Siderópolis, Cocal do Sul e Treviso, consultavam planilhas e relatórios com a logomarca da ABCM.

“Nessa luta estamos juntos, mas isso não impede que na mesa de negociação sejamos firmes do nosso lado”, ele garante. Na fachada do sindicato, uma espécie de monumento à atividade representado por um vagão de trem carregado de carvão que leva, lado a lado, as logomarcas do sindicato dos trabalhadores e da Rio Deserto, atual empresa de mineração da família Zanette, no passado proprietária da Mina Santana, na época da explosão, e sócia da coqueria que importuna os vizinhos de Rio Carvão.

A classe política também se apresentou. “É importante nos unirmos em torno do setor, não só nas questões do subsídio ao preço do carvão, mas também na manutenção da atividade e na melhoria da eficiência das usinas a carvão”, conclamou o governador Carlos Moisés (PSL) no lançamento de uma frente em defesa da atividade carvoeira, no final de 2020.

Na briga pelo futuro do carvão, a comunidade que carrega o combustível no nome, Rio Carvão, ficou isolada.

Uma lei sob medida

A frente de defesa do carvão logo foi bater às portas de Brasília. “É preciso fechar uma equação junto com o Governo Federal, porque está na mão dele essa decisão”, disse ao portal 4oito o presidente da ABCM, Fernando Luiz Zancan, em dezembro de 2020. 

A tal equação parece ter sido encontrada. Em fevereiro de 2021, a Engie anunciou a assinatura de um acordo com a Fram Capital, uma gestora de investimentos, para repassar Jorge Lacerda ao grupo. A compradora teria até o final de junho para estudar o negócio e decidir se apostava suas fichas ou não. Fundada em 2007, a empresa não tem experiência no setor elétrico. Sua expertise é administrar carteiras de clientes que aplicam dinheiro no mercado financeiro.

Apesar do prazo informado pela Engie, o negócio só teve um novo episódio público bastante depois, no final de agosto de 2021, com a assinatura de um contrato prévio de compra e venda. O passo foi anunciado 17 dias depois que um projeto de lei do senador catarinense Espiridião Amim (PP), parado desde 2019, voltou à pauta de votações do Senado.

O texto tratava de subvenções federais à concessionárias de energia de pequeno porte, para que o preço da energia não fosse muito diferente daquele de grandes centros urbanos próximos. Mas em dezembro de 2021, quando já estava aprovado pelas duas casas legislativas, o PL tinha mais artigos dedicados ao carvão do que ao tema original. Entre outras medidas, previa a ampliação do uso do combustível fóssil para geração de energia na usina de Jorge Lacerda até 2040, algo que não estava previsto até aquele momento. A tramitação se deu em regime de urgência, quando há prazo-limite estabelecido para votação.

No dia 5 de outubro, os deputados federais modificaram o objeto do PL, que passou a informar que a futura lei criaria o “Programa de Transição Energética Justa”, incluindo as emendas beneficiando o funcionamento de Jorge Lacerda. No dia 31 de outubro, a Engie anunciou a conclusão do negócio com a Fram Capital. Publicamente, a nova gestora se apresenta com o nome Diamante Geração de Energia.

Na ocasião, Sattamini comentou: “É importante para que a economia da região Sul de Santa Catarina se reinvente, possibilitando uma transição socialmente justa e reduzindo potenciais impactos em comparação a um processo de descontinuidade das operações no curto prazo”. 

No início de 2022, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a criação do Programa de Transição Energética, que, para justificar o seu nome, reduziu o horizonte do subsídio de compra do carvão de 2027 para 2025, mas em troca elevou as térmicas à categoria de usinas de reserva — elas são as primeiras a serem acionadas quando as hidrelétricas brasileiras não dão conta de abastecer com eletricidade o país. Hoje, essas usinas movidas a combustível fóssil são as últimas a entrar em operação, o que só acontece em caso de extrema necessidade. O governo também manterá o pagamento de todos os custos da usina, que já existe hoje.

“No fim das contas, mudou para ficar tudo igual”, resume Roberto Kishinami, coordenador de Energia do Instituto Clima a Sociedade.

Entre outras estranhezas notadas por observadores do setor, uma chama mais atenção. O governo abriu mão de estimar ele próprio qual o volume de energia a ser contratado de Jorge Lacerda. Em vez de um cálculo levando em conta as previsões de chuva e de consumo de eletricidade, o contrato com a termelétrica catarinense será feito “em montante suficiente para consumir o volume de compra de combustível estipulado nos contratos”. Ou seja, de carvão.

Em agosto, Bolsonaro já havia lançado o Programa de Uso Sustentável do Carvão Mineral Nacional, com diretrizes de apoio à extração do combustível fóssil. O plano foi apresentado no mesmo dia em que o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) publicou seu relatório que demonstra que a emergência global pelo aquecimento do planeta já chegou e pode ser irreversível. Na contramão, subsídios que estimulavam o uso de energias renováveis no Brasil foram derrubados pelo governo, em setembro. “A verdade é que hoje já não é tão necessário, porque a tecnologia de eólicas e solares barateou e elas se tornaram economicamente viáveis. Mas é uma enorme contradição reduzir benefícios para geração energética que do ponto de vista ambiental é positiva, enquanto, na prática, estende o subsídio para o carvão”, aponta Barata, ex-diretor do ONS.

Negócio obscuro

O fato de a Fram Capital ser uma desconhecida no setor elétrico deixou no ar certa desconfiança sobre o negócio. “Mesmo para um segmento econômico que tem constantemente fusões, aquisições, essa não é uma operação muito típica. Normalmente os grandes grupos de energia é que compram. Mas tem pouca gente querendo comprar um ativo que vai morrer de qualquer jeito: precisa olhar a maneira como foi feito isso, um novo sócio sem expertise para operar uma planta”, observa Roberto Kishinami.

O negócio foi fechado por R$ 325 milhões. Segundo os balanços da Engie publicados pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o lucro líquido que Jorge Lacerda proporcionou foi de R$ 190 milhões em 2020 e R$ 72 milhões em 2019. Os dados de 2021 ainda não foram divulgados.

“Não conheço detalhes do negócio, mas o que se pode deduzir é que a Engie é um grupo mundial manifestando o desejo de sair dessa área do carvão. É bem provável que tenham feito um preço menor para passar o ativo adiante. No fim, é um bom negócio para os dois lados, porque quem compra vai ter resultado no curto prazo”, analisa Clóvis Meurer, sócio da CRP Companhia de Participações, que avalia ativos do mercado financeiro.

A Diamante preferiu não dar detalhes da negociação, mas, em nota, informou que “o valor da negociação comercial reflete a necessidade de investimentos substanciais a serem realizados nos próximos anos”. Clique aqui para ler a resposta da Engie.

O fundo de investimentos que recebeu esse patrimônio, chamado Fram Capital Energy II Fundo de Investimento em Participações Multiestratégia, tem apenas dois cotistas. “Na minha percepção, os sócios estão buscando retorno em um prazo relativamente curto para aproveitar a oportunidade de comercializar energia nesse período de escassez [hídrica]. Neste caso, as questões ambientais são secundárias, pois não atendem um grupo grande de investidores”, confirma José Júnior de Oliveira, economista e vice-presidente da Apimec Sul, da Apimec. O patrimônio líquido do fundo, que em setembro de 2021, antes da finalização da compra de Jorge Lacerda, era de pouco mais de R$ 1 mil, alcançou quase R$ 10 milhões no final de dezembro, conforme os demonstrativos publicados pela CVM. 

Para o Instituto Arayara, ONG que está dedicada a fazer um levantamento nacional dos impactos da cadeia produtiva do carvão ligados à geração de energia, o negócio foi uma maneira de a Engie fugir às suas responsabilidades pelo passivo ambiental de Jorge Lacerda. “No direito ambiental, a responsabilidade pelos danos é solidária a todos os integrantes da cadeia. E já há laudos técnicos em duas ações civis públicas que demonstram a necessidade de cobrar a Engie por esse impacto, já que 97% do carvão mineral dessa região tem a usina de Jorge Lacerda como destino”, observa Juliano Bueno de Araújo, diretor do Arayara. 

No relatório que a organização publicou no ano passado, o grupo técnico que se debruçou sobre o estudo afirma que a leitura de atas de reuniões entre a Engie e autoridades brasileiras sobre o futuro da térmica permite concluir “que a corporação Engie-Fram-Diamante se empenhou para criar estratégias para se isentar da responsabilidade sobre o passivo ambiental, se retirando da necessidade de recuperação ambiental da maior área degradada da América Latina em razão da atividade de exploração de carvão mineral”.

Nas respostas enviadas à reportagem, a Diamante alega que o passivo ambiental e estrutural na região carbonífera “já estava substancialmente constituído ao se iniciarem as atividades de geração termelétrica”, nos anos 1960. Porém as duas principais ações civis públicas movidas pelo MPF para cobrar a recuperação da região cobrem, ambas, o período em que a usina já operava.

“A Diamante Geração de Energia está ciente da necessidade de uma transição energética em direção a uma economia de baixo carbono. Esta transição precisa ser realizada dentro das melhores práticas mundiais, sem causar colapso econômico e social das regiões que dependem da atividade. A Diamante tem aplicado (e continuará a aplicar) recursos para financiar tecnologias de baixo carbono e de uso de resíduos que viabilizem a economia circular do carbono e dos produtos da cadeia produtiva do carvão mineral”, informa a companhia. A íntegra da manifestação pode ser lida aqui.

Proposta de transição foi ignorada

Enquanto a retórica da transição energética era usada para ampliar o uso do carvão por mais duas décadas, um projeto que desenhou uma saída que contemplava ao mesmo tempo o desligamento das térmicas nacionais a carvão, a ampliação do uso das renováveis como solar e eólica, a recuperação ambiental de toda a região impactada pela exploração mineral no Sul do país e a qualificação da mão de obra mineira para outras atividades, redirecionando a economia dos municípios carvoeiros para outras potencialidades, foi deixado de lado.

“Era um projeto ganha-ganha. Envolvemos a Engie, a Aneel, Ministério do Meio Ambiente; todos acharam uma boa ideia, mas lamentavelmente não foi para frente porque o lobby do carvão foi forte demais”, revela Luiz Eduardo Barata, ex-diretor do ONS que desenhou, a pedido do Instituto Clima e Sociedade, essa costura.

Na proposta, o subsídio atualmente destinado à compra do carvão queimado nas térmicas do Sul do país seria aplicado na transformação socioambiental: planos de recuperação das áreas degradadas, como as existentes em Rio Carvão, poderiam ser turbinados com esses recursos. O Dieese foi chamado para estudar alternativas econômicas regionais e realocação da mão de obra. Até a eventual indenização para mineradoras ou dinheiro para aposentar os mineiros mais velhos esteve em debate. “Daria para fazer as partes ambiental e social e ainda sobraria dinheiro para reduzir a tarifa de luz”, exemplifica Barata.

A proposta sugeria também uma saída para o que costuma ser um poderoso argumento para a manutenção do funcionamento das termelétricas, a de que elas seriam a “energia firme” do Brasil, que no jargão do setor elétrico é a capacidade de abastecer o sistema quando outras fontes reduzem sua contribuição. “Quando o nível dos reservatórios das hidrelétricas está alto, a resposta é de menos de um segundo: abriu a comporta em segundos tá saindo energia”, observa Kishinami. Em comparação, o tempo de ativação plena de uma termelétrica a carvão pode chegar a uma semana, e a um custo muito mais elevado — e por isso ele sugere a substituição dessas pelas usinas movidas pela água, o que, entretanto, demandaria alterações profundas no sistema.

Mesmo com a prorrogação do funcionamento de Jorge Lacerda até 2040, Kishinami acredita que há espaço para negociar a ativação do plano da ONG ainda nesta década. Aliás, ele vê isso como um imperativo, já que o parque de Jorge Lacerda é muito antigo e pode ser arriscado mantê-lo em operação por todo esse tempo. “Antes se previa contratos até 2028, e isso não era à toa”, alerta.

Seu receio é que a nova gestora não invista o suficiente na renovação dos equipamentos, levando a operação para um terreno mais sujeito a acidentes. A Diamante informa que manteve os quadros técnicos da usina e que “todos os projetos de modernização, manutenção, eficiência, performance, atendimento legal e segurança das unidades geradoras serão realizados”. A íntegra da manifestação pode ser lida aqui.

Nas minas, Kishinami também acha que pode haver consequência semelhante: “Se eles sabem que o negócio vai acabar de qualquer maneira, as operações de mina podem passar a receber menos cuidados. É um quadro comum na China, onde não tem fiscalização muito forte e os acidentes matam pessoas todos os anos”, preocupa-se.

No Rio Carvão, esse é o temor. Sem contarem com a compreensão de empresários e o apoio de governantes, aos vizinhos restaram poucas opções às quais podem se agarrar. Em novembro de 2021, viúvas, mães e irmãs dos mineiros mortos nos anos 1980 caminharam em silêncio ao lado do sobrevivente Armandio Seron e muitos outros moradores, com velas nas mãos, pedindo proteção na primeira procissão pelas vítimas do carvão da comunidade. A santa escolhida para receber as preces foi Nossa Senhora da Saúde.

Foto: Tânia Meinerz/Agência Pública

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