Por Zoraide Vilasboas (Associação Movimento Paulo Jackson – Ética, Justiça, Cidadania)
Um empregado recebeu polpa de urânio nos olhos; uma mangueira de borracha furada espalhou urânio, contaminando o ambiente de trabalho; um poço de monitoração ambiental, encharcado desse minério, segue contaminando o solo e a água na Unidade de Concentração de Urânio, operada pela Indústrias Nucleares do Brasil (INB) em Caetité, a 650 Km de Salvador, na Bahia (Brasil). E, contrariando as regras de radioproteção, uma pilha de minério se agiganta no setor de estocagem, ao lado do painel de britagem, expondo trabalhadores à radiação ionizante. Já o poço fica do lado de fora do pátio da pilha de lixiviação, fase do ciclo de produção da energia nuclear na qual, depois de britado, o urânio é disposto em pilhas e irrigado, com solução de ácido sulfúrico, para retirada do minério.
Estes são só alguns dos acidentes, incidentes, eventos não usuais –ou o que se queira chamar– ocorridos após o início da lavra da mina de Engenho, inaugurada, com estardalhaço, em 1o/12/2020. Um fuzuê anunciou a produção anual de 260 toneladas de concentrado de urânio na exploração da nova jazida a céu aberto. Mas um ano de testes operacionais, barbeiragens e desacertos técnicos sugerem que esta meta está longe de ser atingida. Apesar do ufanismo de 2020, a mineração está revelando baixo teor de urânio. Mas a fábrica vem gerando toneladas de resíduos radioativos (rejeito) que, empilhado com material estéril, avoluma exponencialmente a montanha de lixo atômico que devasta a região.
Neste mesmo 1o de dezembro, em manifesto público, dezenas de entidades brasileiras repudiaram a festa atômica –realizada pelo MME– expressando apoio às energias renováveis, à erradicação de todo tipo de arma no Brasil e reafirmando posição contra a mineração e a energia nuclear. O documento criticava a INB que “nunca apresentou publicamente um relatório de encerramento da primeira mina explorada em Caetité, com o alcance da contaminação das águas superficiais e subterrâneas, do solo, do ar, da flora, da fauna, e da incidência de câncer e outras doenças na população”.
As últimas e constantes tragédias anunciadas, e toleradas pelas autoridades, supostamente responsáveis pela fiscalização das perigosas e criminosas atividades do programa nuclear brasileiro, apenas repetem a sucessão de desastres acontecidos desde o início do funcionamento da unidade atômica da INB na Bahia, com a lavra da primeira jazida a céu aberto (mina Cachoeira).
Estes fatos remetem a graves denúncias feitas por entidades socioambientais, IBAMA e Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), mostrando que a falta de rigor e fiscalização técnica, exigidas para manipulação de produtos de alta periculosidade, como o urânio, começa na origem da construção e operação da unidade baiana da INB. Com seus obsoletos equipamentos, empresa padece de insegurança técnico-operacional, incompetência, irresponsabilidade gerencial e inadequação da planta industrial.
Os prejuízos socioambientais se agravam agora com o desmonte do setor de fiscalização do IBAMA e a ausência dos fiscais nucleares, que sumiram após reforma administrativa ter retirado o poder fiscalizador da CNEN. A inação dos órgãos de meio ambiente estadual (INEMA) e municipal não surpreende porque sempre foram apáticos no quesito monitoramento das atividades da INB.
Em 2006, em audiência na Câmara dos Deputados, a fiscal do IBAMA, Sandra Miano, falou sobre o vazamento de milhões de litros de licor de urânio, que inaugurou atividade da INB, em abril de 2000. “As indústrias nucleares demoraram muito tempo a admitir o problema, dificultando nossa averiguação, até que mandamos esvaziar o tanque de licor-1401. (…) (…)Observou-se uma diferença de 5 milhões de metros cúbicos (na verdade 5 mil metros cúbicos, o equivalente a 5 milhões de litros) e houve dúvida sobre onde haveria parado esse volume.(…) (…)Mandamos esvaziar o tanque e abrir a manta. Quando a manta foi aberta, vimos que não havia sido feita a compactação. O projeto executivo que havíamos aprovado não havia sido executado, apesar de qualquer empresa ter de executar um projeto que tenha sido aprovado.(…)”. (http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/3743)
Cinco anos depois, em 2011, em carta pública, o então presidente da CNEN, Oldair Gonçalves, atribuía os problemas da INB, “à falta de um programa de manutenção preventivo, preditivo e corretivo; da obtenção e análises de dados de amostras coletadas; do cumprimento de critérios de engenharia, segurança nuclear e proteção radiológica e de planejamento estratégico“.
Contou que em Julho/2010, tinha sido detectada contaminação, por solvente orgânico, em um poço de monitoração. “A INB, por iniciativa própria, realizou uma remediação da área que incluiu a retirada de um volume solo de cerca de 4x4x4 m3, bem como a remoção do concreto de toda a área para identificação de possíveis infiltrações e recuperação do piso. Assim, toda a unidade de estocagem e preparação de solvente foi desmontada, deixando a área inoperante por cerca de 4 meses. Ressalta-se, ainda, que o PMA-18 continua apresentando ocorrência de solvente até a presente data, conforme inspeção regulatória de 21 a 24/03/2011, demonstrado que a remediação realizada pela INB não surtiu efeito“. Revelou também que, contaminação subterrânea de partes da plataforma da usina, de origem desconhecida, estavam sob investigação.
Em 2016, mais uma vez, nova denúncia relatava que contaminantes químicos, não extintos antes, emergiram à superfície. “Cerca de 20 ms que ladeiam um tubo do sistema operacional, na Área 140, estão encharcados de licor de urânio, mostrando que vazamentos “ocultos” deviam estar ocorrendo desde o início das atividades da empresa, não se tendo idéia do volume que vazou”. (https://www.ecodebate.com.br/2016/12/08/denuncia-o-desastre-nuclear-na-bahia-e-a-tragedia-de-mariana-em-minas-gerais/). Desde 2004, fiscais da CNEN já apontavam as possibilidades de contaminação do lençol freático. Aliás, muito antes, o Estudo de Impacto Ambiental indicava o risco de contaminação das águas superficiais e subterrâneas, entre os prejuízos que a mineradora traria para a região.
Amarrando as pontas destes fatos, chegamos a 2017, quando foi detectado alto teor de urânio no poço de monitoração (PMA54). A INB decidiu remover o piso do pátio da pilha de lixiviação, retirando a camada de argila e areia e cavando mais de 20 m de profundidade para retirar toneladas de solo contaminado. Parte dele foi enterrado e parte foi transferido para a montanha de “rejeito” da empresa. A reconstrução do pátio de lixiviação durou mais de um ano e, na fase de teste com água, já dava sinais de furos na manta. Durante a obra, fiscais da CNEN alertaram para futuros vazamentos devido à colocação de toneladas de brita diretamente em cima da lona de pead (que impede o urânio de vazar para o solo), sem colocar antes camadas de areia, argila e cascalho, como é recomendado.
Vazamentos na área de lixiviação são muito graves porque o ácido sulfúrico, usado para separar o urânio de outros minérios presentes nas rochas uraníferas, além de contaminante, é muito corrosivo e vai carreando toda esta lama radioativa para o lençol freático. Houve divergência entre a INB e fiscais da CNEN, que chegaram a condenar a obra, mas a INB insistiu na solução que implementou e que pode levar a mais uma suspensão da operação.
Em 2019, saiu o resultado da pesquisa sobre os efeitos da mineração de urânio na região, feita pela Universidade Federal da Bahia, em convênio com o Ministério Público do Trabalho, que avaliou o impacto da mineração sobre o ambiente, a saúde de trabalhadores e populações do entorno. A investigação constatou que “a exposição à radiação ionizante na região não é causada só pela radiação natural, como a INB tenta fazer crer, e que o descontrole nas atividades atômicas leva para fora dos limites da área da empresa o risco de exposição aos produtos da cadeia de decaimento do minério (radônio, césio, polônio, etc), elementos mais perigosos que o próprio urânio”. A situação encontrada foi tão grave que recomendaram “a imediata interdição da atividade atômica até ser garantido o controle absoluto do risco radioativo.” (https://racismoambiental.net.br/tag/mineracao/page/26/). Mas até hoje, as correções recomendadas pelos pesquisadores não foram adotadas.
Em 2021, dois censores falharam e urânio em pó foi espalhado, em grande quantidade, no ambiente do trabalho na área de entamboramento do urânio. 2022 chega constatando que a falta de transparência e o sigilo, que caraterizam as ações do setor nuclear, não impedem a divulgação de problemas frequentes, como rompimento de mangueiras, de tubulações externas e mau funcionamento de censores, o que tem levado a constantes paradas da produção. Em janeiro último, também na área de entamboramento, ao tentar desobstruir uma mangueira entupida de urânio um trabalhador recebeu a polpa nos olhos, um dos lugares mais sensíveis do corpo humano. Já o recente vazamento do lícor de urânio para o solo, indica furos na lona de pead, destinada a impedir infiltração pelo pátio da pilha de lixiviação.
As populações da região, vítimas da mineração, mais uma vez, exigem o reconhecimento dos direitos dos atingidos, direta e indiretamente, pela contaminação radioativa, com indenização e assistência integral à saúde. Repudiam a ampliação do programa nuclear brasileiro, demandam a reparação imediata dos danos socioambientais de localidades que têm atividades nucleares ou depósito de material radioativo, com a justa indenização de seus habitantes e trabalhadores de instalações atômicas. Apelam também aos Ministérios Públicos Federal e do Trabalho que divulguem os resultados dos processos em curso e investiguem, com urgência, os novos delitos socioambientais, que impõem o fim da expansão da mineração de urânio no Brasil e do programa nuclear brasileiro.
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Urânio Caetité. Foto: Lay Amorim /Brumado Notícias