Em meio a um processo de privatização, Empresa Brasil de Comunicação (EBC) vive sob a censura do governo Bolsonaro, que utiliza a estrutura pública para a sua promoção
por Gésio Passos e Lucas Krauss*, Le Monde Diplomatique Brasil
Não é de hoje que os microfones da rádio Jovem Pan estão disponíveis para a unificação dos discursos neofascista e ultraliberal no Brasil. No dia 5 de fevereiro de 2018, no programa “Pânico”, o então candidato à Presidência da República, Jair Bolsonaro, deu uma das primeiras declarações mais explícitas sobre a possibilidade de “fechamento” da Empresa Brasil de Comunicação (EBC): “sou favorável não é nem que privatize, mas que se extingua (sic) algumas estatais. A própria TV do governo, que não serve para nada”. Após nova pergunta a Bolsonaro, se extinguiria mesmo a EBC e como seria feita a “comunicação do governo”, ele respondeu: “sim, a EBC com toda certeza. A gente faz a comunicação com vocês”.
A partir disso, pronunciamentos similares foram feitos durante a campanha e ao longo do exercício do mandato, tanto pelo presidente quanto pela equipe econômica – principalmente por Martha Seillier, secretária-especial do Programa de Parcerias e Investimentos (PPI), setor responsável pelas privatizações no governo -, além do ministro das Comunicações, Fábio Faria. Até que, em março de 2021, as ameaças autoritárias viraram realidade. O Conselho do PPI oficializou a recomendação para que a EBC entrasse no Programa Nacional de Desestatização (PND), fato que veio a ser confirmado em Decreto Presidencial de 9 de abril de 2021.
Já nesse meio tempo, o governo abria uma campanha sórdida e escalava o ministro Fábio Faria para disseminar desinformações em veículos de comunicação submissos ao governo, alegando que a EBC dava “prejuízo”. Dois meses depois, em junho, durante audiência pública que tratou da privatização da EBC na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados, Martha Sellier afirmou: “a EBC não faz sentido do ponto de vista da eficiência alocativa de recursos”. Seguindo o cronograma, em julho, representantes do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) reuniram-se com o Ministério das Comunicações e com a presidência da EBC para manter a promessa de acelerar o processo de desestatização. Já próximo ao final de 2021, a expectativa era que o BNDES finalizasse a contratação de uma consultoria para realizar estudos sobre a EBC, que, em seguida, “sugeriria” o que seria feito com a empresa, considerando desde a possibilidade de se desfazer de imóveis, passando pela venda de emissoras de rádio, chegando a uma privatização ilegal ou mesmo à extinção.
Tomando por base tais evidências, entidades sindicais e da sociedade civil afirmavam que o processo representava o que seria uma “questão de tempo” para a EBC ser extinta ou privatizada, afinal a decisão política estava tomada. Faltava uma “canetada final”, autoritária, obviamente.
“Entramos, juntamente com ABI, FNDC e Fenaj, além dos demais sindicatos, com uma ação na esfera federal pedindo a saída da EBC do PND e fizemos a maior greve da história da empresa, com 19 dias de braços cruzados, impactando diretamente nos conteúdos. A verdade é que o governo subestima nossa inteligência. É evidente que quer usar a empresa para falar bem de si próprio, fazer propaganda antecipada para as eleições, agradar o segmento evangélico, contratando mais e mais novelas da Record, mas ao mesmo tempo ameaça os funcionários fazendo avançar o plano de extinguir ou privatizar a EBC”, diz Juliana Cézar Nunes, trabalhadora da empresa e coordenadora-geral do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal (SJPDF).
Atualmente, a realidade é que o processo de privatização segue em andamento e, mesmo com a entrada em ano eleitoral – o que em tese dificultaria o processo de privatização/extinção – a sociedade civil mantém-se vigilante. Afinal, basta considerar a sanha privatista do governo, que avançou com a privatização da Eletrobras, dos Correios e de outras empresas, como o Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), para chegar-se à conclusão de que a situação da EBC segue muito grave.
A campanha “FICA, EBC”, criada pelos trabalhadores para defesa da empresa nas redes sociais, e a “Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública”, que reúne dezenas de entidades por todo o país, vêm mobilizando o Legislativo e esferas jurídicas na luta para impedir o fim da comunicação pública no Brasil. “Não vamos aceitar tamanho retrocesso para a democracia. A EBC é fruto de uma luta histórica, árdua, comandada pelo movimento pela democratização da comunicação do país. Não aceitaremos também a entrega de algumas rádios da EBC, como a MEC e a Nacional. Vamos defender até as últimas consequências o patrimônio social-histórico da EBC e, ao mesmo tempo, projetar e lutar por uma plena e urgente recuperação da empresa, já a partir das novas eleições, exigindo a volta do Conselho Curador, por exemplo. A EBC não é de nenhum governo. A EBC pertence ao povo brasileiro”, defende Renata Mielli, secretária-geral do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé.
Enquanto isso, governo continua o desmonte da comunicação pública
Independentemente da ameaça de privatização, os veículos públicos da EBC continuaram sendo alvo de todo tipo de interferência do governo federal. Durante o ano de 2021, a empresa foi ainda mais exposta, sendo investigada pela CPI da Covid-19 no Senado Federal como um dos instrumentos usados pelo governo para reforçar teses negacionistas que prejudicaram o combate ao coronavírus. Até o Tribunal Superior Eleitoral abriu uma nova investigação sobre o uso dos veículos públicos para promoção e campanha antecipada de Jair Bolsonaro.
Em outubro de 2021, os trabalhadores e as trabalhadoras da EBC continuaram sua resistência e apresentaram a 3ª edição de um relatório demonstrando números da censura e do governismo na cobertura dos veículos públicos. O relatório da Comissão de Empregados da EBC e dos sindicatos representativos dos/as trabalhadores/as registrou número recorde de denúncias, com 161 novos casos só de censura e mais 89 de governismo, no período entre julho de 2020 e agosto de 2021. A título de comparação, no primeiro relatório, de 2018, no governo de Michel Temer, foram contabilizados 61 casos. Já em 2019, no segundo relatório, já com Bolsonaro na presidência, o dossiê apurou 138 denúncias.
A edição mais recente do relatório ainda indica, no período referido acima, 208 interrupções na programação da TV Brasil por eventos do governo federal, ocupando ilegalmente a grade da TV pública por 157 horas, 42 minutos e 29 segundos. Os números reforçam o absurdo da unificação entre TV Brasil e TV NBr, que era o canal de programação do Executivo, medida que a direção da EBC tomou em 2019, transformando a emissora pública em central de propaganda do governo. Entre as transmissões do presidente, por exemplo, estavam a inauguração de pavimentação de rodovias, cultos evangélicos, formatura de militares e até ataques ao sistema eleitoral.
O esfacelamento do jornalismo público, como outra face do governismo nos veículos públicos, se evidenciou no telejornal Repórter Brasil, criado com o surgimento da EBC em 2007, sendo o principal noticioso da emissora. O jornal, que tem início às 19 horas, passou a transmitir ao vivo o histórico programa governamental “A Voz do Brasil” e, assim, reproduzir o programa de rádio do governo federal no principal telejornal público, ocupando mais de 30% de seu tempo. Tais retransmissões se deram principalmente com entrevistas de ministros ao vivo. O relatório indicou, ainda, que a TV transmitiu 32 das 33 entrevistas da Voz do Brasil com ministros no período analisado. Até um programa só com “notícias boas” foi planejado pela direção, não indo ao ar em razão da repercussão negativa.
Outro exemplo é o programa “Sem Censura”, criado na época da transição entre a ditadura e a democracia na antiga TVE-RJ, retornando à grade da TV Brasil em abril de 2021, após sua exclusão no final de 2020. Transmitido agora de Brasília, o programa se transformou em um “parlatório semanal” para os ministros e apoiadores do governo, sendo apelidado pela imprensa de “Boa noite, Ministro” e até mesmo de “Com censura”. Para se ter uma dimensão do problema, nos 17 primeiros programas, 13 foram com ministros ou outros membros do governo.
Outra iniciativa da sociedade civil de monitoramento da comunicação pública, o projeto “Ouvidoria Cidadã da EBC”, também publicou seu segundo relatório de análise da programação dos veículos da empresa do ano de 2021. O projeto busca fazer um acompanhamento em paralelo à ouvidoria oficial da EBC, que nos últimos anos não vem cumprindo seu papel crítico em relação à empresa, conforme determina a legislação.
Em seu documento, a Ouvidoria Cidadã destacou a falta de contraponto aos pronunciamentos e entrevistas de Bolsonaro pela emissora pública, favorecendo as fake news em massa espalhadas pelo presidente. Pela análise, a cobertura dos veículos públicos se mostrou pífia em relação à pandemia, dando espaço para discursos negacionistas sobre a Covid-19, “colocando em risco a saúde da população e propagando notícias falsas”, o que reforça a denúncia da CPI do Senado. O relatório da Ouvidoria Cidadã mostrou ainda que as manifestações contra o governo também tiveram espaço muito limitado nos veículos da EBC, ao contrário da agenda oficial federal.
A iniciativa da sociedade civil também abordou a falta de respeito à diversidade religiosa com a exibição da novela bíblica “Os dez mandamentos”. O próprio acordo da EBC com a TV Record, vinculada diretamente à Igreja Universal do Reino de Deus, que produz novelas religiosas de forma constante, tornou-se alvo de críticas da imprensa e de tentativas judiciais para impedir a veiculação desse tipo de conteúdo pela emissora pública. Infelizmente, essas ações não conseguiram impedir a exibição, mas trouxeram à tona um tema que foi muito debatido pelo extinto Conselho Curador da EBC, quando indicou a necessidade de a empresa ter uma faixa de diversidade religiosa, o que garantiu, por algum tempo, visibilidade ao fenômeno cultural amplo das diversas formas religiosas do país.
Os trabalhadores e as trabalhadoras também foram alvo do ataque à empresa. Além da censura, perseguições e assédio moral, também integra o pacote implementado pela direção da empresa pública uma série de ataques às liberdades sindicais, o que se verificou, por exemplo, por ameaças e perseguições a dirigentes dos sindicatos, gerando reações das entidades representativas. Até o assédio moral institucional foi reconhecido pela justiça, em segunda instância, determinando multa e que a empresa adotasse medidas contra essa prática generalizada. No final de 2021, após uma série de retiradas de direitos e um brutal arrocho salarial, os trabalhadores realizaram a maior greve da história da EBC, com 19 dias de paralisação. Enquanto isso, a empresa aprovava um bônus milionário para seus diretores.
Os desafios frente ao ano eleitoral
O ano de 2022 pode interromper uma nova ascensão da extrema-direita de Bolsonaro e o desmonte do Estado brasileiro. Com as eleições presidenciais previstas para esse ano, o tema da comunicação pública precisa estar na pauta de discussão sobre a reconstrução da democracia brasileira.
Desde o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, a Empresa Brasil de Comunicação se transformou em um alvo corriqueiro das forças reacionárias. Em uma de suas primeiras medidas, Michel Temer agiu para derrotar o projeto de comunicação pública: extinguiu o Conselho Curador, órgão da sociedade responsável por zelar pela missão pública da EBC, e acabou com o mandato fixo para presidente da empresa, desmontando os mecanismos que garantiam mais autonomia para a comunicação pública.
Com a eleição de 2018, a EBC passou a ser ainda mais alvo de tais forças reacionárias. Três dos candidatos a presidente do país à época defenderam, durante a campanha eleitoral, a privatização da empresa: Jair Bolsonaro, João Almoedo e Geraldo Alckmin. Como destacado, Bolsonaro cumpriu parcialmente sua promessa. Iniciou um processo de privatização, liquidou a autonomia, destruiu os veículos públicos e buscou transformar a empresa em uma agência de propaganda do governo.
Para a jornalista Mariana Martins, pesquisadora do Laboratório de Políticas de Comunicação (LaPCom) da Universidade de Brasília, o maior desafio será reconstruir os sistemas de participação social, como a retomada do Conselho Curador. “Só com a radicalização da participação social poderemos consolidar um projeto de comunicação pública conforme determina a Constituição Federal. Esse é o pilar fundamental para recuperar a autonomia da empresa e fazer com que ela volte a estimular a diversidade e a democracia brasileira”, acredita.
Outra mudança necessária é a separação definitiva da comunicação pública dos serviços de comunicação de governo, um erro cometido na criação da EBC, no entendimento de Mariana Martins. Assim, será tarefa imediata a retirada de programas e conteúdos governamentais para estabelecer a independência – em relação ao governo federal – da TV Brasil, das rádios Nacional, MEC e da Agência Brasil.
O financiamento da comunicação pública deve também ser fato de discussão para garantir que a EBC não fique mais refém de cortes orçamentários federais. Liberar o acesso à “Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública” (CFRP) – taxação criada para o custeio da EBC, que teve sua arrecadação acumulada em mais de R$ 3 bilhões em 2021 – também será determinante para garantir estabilidade e continuidade dos serviços.
Com independência, participação social e sustentação financeira, a empresa pública de comunicação poderá retomar seu projeto inicial, tendo o incentivo à cultura e à produção regional e independente, além do desenvolvimento da consciência crítica dos cidadãos, como força motriz para a reconstrução do Brasil.
*Gésio Passos e Lucas Krauss são jornalistas concursados da EBC, ambos mestres em comunicação pela Universidade de Brasília, membros do Coletivo Intervozes e diretores do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal.