Newsletter da Ponte
No começo do século, trabalhando como repórter do hoje defunto Agora SP, jornal do grupo Folha de S.Paulo, fui cobrir o que a polícia chamava de “estouro de cativeiro”, numa favela da zona sul da cidade de São Paulo. Ali, equipes de jornais e tevês se espremeram para retratar o local onde um empresário havia passado alguns dias sequestrado. Jornalistas se empenharam em descrever as péssimas condições a que o empresário havia sido submetido, num barraco apertado de madeira às margens de um córrego fedendo a bosta. Era terrível. Absurdo. Um problema de segurança pública.Quando vi a matéria publicada, me veio a sensação de que eu havia passado longe de contar a história que realmente importava. É que havia dezenas de famílias vivendo naquele mesmo lugar. Para chegar ao cativeiro tivemos de acordar uma dessas famílias e passar no meio da casa dela em plena madrugada, sob o olhar arregalado de um garotinho negro que encarava aquela gente andando de um lado para o outro carregada de câmeras, luzes, gravadores e falando sobre o sofrimento de um homem branco que que, durante alguns dias, havia vivido como eles viviam ao longo de anos.
Nenhuma dos matérias mencionou as famílias que moravam naquele lugar. Era como se a pobreza combinasse com elas por serem pobres e negras. Nada terrível. Nada absurdo. Não era um problema de segurança pública. Porque segurança pública é coisa de branco.
O incômodo que senti naquele episódio, e em outros, estiveram na raiz da decisão de, uma década depois, me juntar a um bando de louco e criar a Ponte Jornalismo para, enfim, contar as histórias como mereciam ser contadas — aliás, só podemos continuar a fazer isso com o seu apoio, corre lá.
Lembrei dos olhos arregalados daquele menino nesta semana, quando São Paulo resolveu enfrentar seu mais recente problema de “segurança pública”: uma “onda de roubos”, como dizem os jornalistas da mídia hegemônica, cometidos por ladrões que se passam por entregadores. Na sua tentativa de enfrentar a questão, o governador tucano Rodrigo Garcia resolveu ignorar os entregadores e falar apenas com os seus patrões, se reunindo com empresários dos apps de delivery para pensar em táticas para fiscalizar os trabalhadores. Na tal Operação Sufoco criada pelo governo, os entregadores só tiveram espaço para entrar com a bunda e a polícia, com os coturnos.
A estratégia da polícia nessa operação praticamente se resume a aumentar a presença de policiais no centro expandido de São Paulo e fazê-los abordar e revistar ilegalmente o máximo de entregadores que puderem. Ilegalmente, sim, porque o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que a polícia só tem pode dar enquadros com base em “indícios e circunstâncias do caso concreto” e nunca fazer “buscas pessoais praticadas como ‘rotina’ ou ‘praxe’ do policiamento ostensivo”. E não tem como existir motivos concretos que justifiquem enfileirar e meter o baculejo de uma vez em dezenas de jovens entregadores, como ocorreu nesta semana no bairro da Vila Olímpia.
Nem está claro que de fato tenha havido uma explosão no número de assaltos em São Paulo: os números da Secretaria da Segurança Pública apontam que os roubos no estado aumentaram 4,4% nos primeiros três meses deste ano em comparação a 2021, mas caíram 14,7% se comparado ao mesmo período de 2020 — mesmo uma reportagem do Fantástico que mencionou a “onda de assaltos” reconheceu que o número de roubo de celulares na capital paulista estava apenas “caminhando para os patamares de antes da pandemia”. Parece claro que o que incomoda tanto nos golpes dos falsos entregadores não é sua dimensão, mas o fato de agirem principalmente no centro expandido e mais endinheirado da cidade, atacando a população branca que tradicionalmente costuma estar abrigada das violências.
Nada surpreendente. É disso que sempre se tratou a segurança pública no Brasil. A polícia não foi criada para combater ilegalidades, mas para atuar como cão de guarda das desigualdades sociais e raciais, usando de violência e intimidação para manter a maioria negra confinada em bairros cheios de precariedades e garantir a tranquilidade dos moradores dos bairros brancos que ostentam índices europeus de qualidade de vida.
É a mesma lógica que vemos quando Rodrigo Garcia se reúne com os empresários dos aplicativos de entrega, quase todos brancos, e ordena que a polícia vá para cima dos entregadores — dos quais 68% são negros. As ilegalidades e precariedades envolvendo a rotina dos entregadores nunca foi um problema de segurança pública. Estava tudo bem enquanto esses jovens negros arriscavam a vida nas ruas para alimentar a maioria branca que podia ficar em casa durante a pandemia. Estava tudo bem quando esses jovens seguiam trabalhando sem qualquer reconhecimento de vínculo trabalhista, dormindo na rua e enfrentando jornadas de mais de 12 horas diárias, de seis a sete dias por semana, para ganhar menos de um salário mínimo. Nenhum governador colocou sua polícia no encalço das empresas de aplicativos e de suas prestadoras de serviço para obrigá-las a respeitar os direitos dos trabalhadores, nem falou em “atirar na cabecinha” da Ifood por enriquecer com a exploração de trabalho precarizado. E nem mandou dar um baculejo nos donos da Rappi depois que a empresa deixou o entregador Thiago de Jesus Dias agonizar na calçada numa das noites mais frias do ano e, em vez de mandar socorro, apenas pediu aos clientes que dessem baixa no pedido para não atrapalhar o serviço. Por mais inseguras que possam ser a vida dos entregadores, nada disso é visto como um problema de segurança pública. É normal que vivam assim, afinal, são jovens negros e pobres.
Jovens levando nas costas mochilas com marcas de empresas que viraram sinônimo de precarização do trabalho só passam a ser um problema quando, em vez de trabalhar e morrer, passam a roubar e matar, invertendo a ordem natural da desigualdade social brasileira.
Muitos desses assaltos, um dos quais tirou a vida do jovem estudante Renan Silva Loureiro, só foram possíveis porque o ambiente de precarização e informalidade em que vivem os entregadores tornou tão fácil que criminosos se passassem por eles nos assaltos. “As empresas, para obter uma mão de obra barata e desqualificada, sujeitam a entrada de qualquer pessoa nas suas plataformas sem nenhum tipo de critério e sem parâmetro nenhum que as leis determinam para exercer a atividade. Então esse cenário [dos roubos por falsos entregadores] não poderia ser diferente”, explicou Gilberto Almeida, presidente do Sindicato dos Mensageiros, Motociclistas, Ciclistas e Mototaxistas do Estado São Paulo (Sindmotosp), em entrevista ao repórter Gil Mendes.
Se o poder público tivesse olhado antes para os entregadores e buscado regulamentar sua situação de trabalho, teria sido bem mais difícil o surgimento dos ladrões disfarçados de motoboys. É a consequência dessa política que não tem qualquer outra estratégia que não seja usar a força para manter desigualdades, preservar explorações e garantir riquezas. Isso aqui só vai ser um país quando mudar de verdade e começar a pensar na segurança pública para todos e em todos os sentidos.
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Fausto Salvadori é diretor de redação da Ponte
Protesto de entregadores durante paralisação em 2020 | Foto: Pedro Ribeiro Nogueira /Agência Pavio