O usuário que dissemina informações falsas ou manipuladas não é programado algoritmicamente. Ele “é um ser pensante, embora tenha se desacostumado a pensar”, diz a jornalista
Por: Ricardo Machado, no IHU
Se, de um lado, a crise da democracia e seus limites são uma constatação, de outro, a sua afirmação e proteção continuam sendo uma necessidade, especialmente em momentos de desinformação e propagação de fake news. Os desafios para coadunar esses elementos são visíveis diariamente na circulação de informações que são verídicas, falsas, imprecisas, manipuladas e tendenciosas, seja na imprensa, seja nos grupos de WhatsApp ou nas redes sociais de modo geral. A democracia, nesse sentido, explica a jornalista Taís Seibt, “também possibilita a circulação de discursos manipulados, porque além da liberdade de imprensa, ela pressupõe liberdade de expressão. Como barrar discursos manipulados sem que isso configure censura a essas liberdades ou repressão a direitos democráticos? E quem teria esse ‘poder’? Isso é um grande desafio, porque há questões que claramente não são de mera expressão de opinião, são crimes até, mas há muitas outras situações em que essa linha é muito tênue, e o exagero pode enfraquecer ainda mais a democracia”.
Apesar dos recursos tecnológicos e práticos que temos à disposição para checar as informações que compõem a era da “desordem informacional”, “uma boa parte da solução” na resolução da disseminação dessas informações, menciona, “está no usuário”. “E a vantagem é que essa peça da engrenagem não é programada algoritmicamente, ela é um ser pensante, embora tenha se desacostumado a pensar”, pontua na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
No cotidiano frenético das redes sociais, no qual “o ritmo das mídias digitais é instantâneo, e os estímulos são muito apelativos – curtir, comentar, compartilhar”, adverte, é preciso ponderar o que compartilhamos. “Para ler criticamente é preciso primeiro ler. Para ler, precisamos parar, pensar, interpretar. Eu me refiro a ler no sentido de decodificar, por isso vale não só para texto, mas o áudio do WhatsApp, o vídeo do TikTok, o gráfico do portal de notícias, o mapa do aplicativo de GPS. Acontece que o ritmo das mídias digitais é instantâneo, e os estímulos são muito apelativos – curtir, comentar, compartilhar. É claro que nenhuma plataforma concordaria com isso, mas se tivesse um botão ‘você tem certeza de que quer/precisa compartilhar’ antes de publicar, talvez boa parte da (des)informação não seria passada adiante. Já que não existe esse botão, precisamos ativar esse ‘botão mental’. Isso é um exercício, precisa ser treinado, até virar um hábito.”
Taís Seibt é professora da Escola da Indústria Criativa da Unisinos e coordenadora do Desafio Nuvem de Educação Midiática. Também é doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio Grade do Sul – UFRGS. Com a tese de doutorado “Jornalismo de verificação como tipo ideal: a prática de fact-checking no Brasil”, recebeu menção honrosa no Prêmio Capes de Tese 2020. É uma das líderes do Núcleo de Estudos em Jornalismo de Dados e Computacional (DataJor) do IDP e integra o Laboratório de Investigação do Ciberacontecimento (LIC) da Unisinos.
Confira a entrevista.
IHU – Como você vê a relação entre o debate em torno da liberdade de imprensa, a circulação de discursos manipulados e a democracia?
Taís Seibt – Em um cenário de excesso de informação e de desinformação, como é o nosso ambiente informacional atual, é interessante pensar a articulação entre esses três conceitos. Na base, temos a democracia, que é justamente o pilar de sustentação da liberdade de imprensa. Só há imprensa livre quando há democracia. Historicamente, governos autoritários, desde a monarquia até as ditaduras modernas, censuram a imprensa. E discursos manipulados pelo Estado proliferam quando há governos autoritários. Mas a democracia também possibilita a circulação de discursos manipulados, porque além da liberdade de imprensa, ela pressupõe liberdade de expressão. Como barrar discursos manipulados sem que isso configure censura a essas liberdades ou repressão a direitos democráticos? E quem teria esse “poder”? Isso é um grande desafio, porque há questões que claramente não são de mera expressão de opinião, são crimes até, mas há muitas outras situações em que essa linha é muito tênue, e o exagero pode enfraquecer ainda mais a democracia. De toda forma, hoje vemos estratégias de manipulação do discurso que muitas vezes promovem ameaças à liberdade de imprensa e, por consequência, enfraquecem a democracia.
IHU – Há um debate conceitual, mais ou menos amplo, em torno da expressão “desinformação”, que seria mais adequada a “fake news”. Qual a relevância de se discutir essa terminologia?
Taís Seibt – Sou adepta da ideia de desinformação porque ela nos permite ir além do “conteúdo falso” ou da “fraude noticiosa” em si. Nem vou entrar no detalhe da “notícia falsa”, porque o conceito jornalístico de notícia pressupõe verdade factual. Mas vamos ficar com a ideia de fraude noticiosa, ou seja, um conteúdo que parece notícia, mas é fraudulento. Isso é apenas uma parte do problema. Nem sempre a fraude é uma invenção completa, às vezes temos dados verdadeiros em contextos equivocados, ou um registro fotográfico de uma cena que realmente aconteceu publicada com uma legenda enganosa, um conteúdo antigo compartilhado como se fosse de hoje.
Outra questão é que essa ideia de fraude noticiosa traz a intencionalidade de enganar, e no conceito geral de desinformação temos a diferenciação do conteúdo falso deliberadamente compartilhado para enganar (no inglês, disinformation), do conteúdo falso que a pessoa compartilha sem saber que é falso (misinformation) e do conteúdo que até pode ser verdadeiro, mas é de foro pessoal ou íntimo, e é compartilhado com a intenção de causar prejuízo a alguém (malinformation). Isso nos permite enquadrar no fenômeno da desordem informacional práticas como o phishing, que são aquelas notificações que chegam por aplicativos ou sites para que o usuário informe dados pessoais a golpistas; spam e publicidade computacional, em que são enviados conteúdos repetitivos e muitas vezes o usuário nem percebe que está sendo exposto a uma propaganda em vez de uma notícia; bots e trolls que promovem cyberbulling, discurso de ódio e confundem os usuários que têm dificuldades de perceber que esses atores não são autênticos, não são humanos; peças de humor quando são interpretadas como fatos ou memes que usam o tom engraçadinho para obter engajamento com outros propósitos. Na minha visão esse conceito mostra que não é sobre “como detectar fake news”. Quando focamos no conteúdo falso, fica parecendo que basta uma ferramenta mágica para detectar o conteúdo manipulado na internet e tudo estaria resolvido. Não estará. Não tem mágica. É preciso entender toda a engrenagem e atuar em várias frentes.
IHU – Uma prática bastante comum nos veículos de imprensa massivos e tradicionais, como os jornalões e emissoras de rádio e TV, é uma espécie de produção de simetrias entre pessoas e pautas que, a rigor, embora em posições políticas opostas, não são simétricas. Até que ponto essa prática é, também, manipulação e quais os riscos à democracia?
Taís Seibt – Entendo o sentido da pergunta, mas me pergunto se equiparar essa prática editorial com manipulação do discurso também não é fazer algo parecido com o que está sendo questionado. Porque uma coisa é a manipulação do discurso com a intenção de enganar, e não me parece que seja esse o propósito do editor de um jornal, mesmo em uma grande empresa da indústria jornalística. Essa prática editorial vem de uma cultura profissional que por décadas sustentou uma ideia de imparcialidade baseada na prática de “ouvir os dois lados” e de “não tomar partido”, o que muitas vezes resulta em falsa equivalência. Isso é um problema, de fato, hoje talvez mais do que nunca. É claro que precisamos ouvir não só dois, mas três ou nove lados, e informar essas visões para que o leitor possa formar sua própria opinião, sem impor a nossa. Só que isso não significa que todos os lados têm o mesmo peso, necessariamente. Há fontes confiáveis e outras não; há opiniões e há crimes; dizer o que é informar corretamente e de forma responsável. Mas concordo que o jornalismo, principalmente esse jornalismo tradicional, tem dificuldade de dar nome aos bois, como se diz. Até mesmo no fact-checking, prática que já vem com essa característica de avaliar, interpretar e dizer o que é e o que não é verídico, até pouco tempo não se usava a palavra “mentira” em seus conteúdos, por exemplo. Me parece que o jornalismo está em uma fase de transformação – que talvez mude o próprio sentido do que é jornalismo em algum momento.
IHU – A Lei de Acesso à Informação – LAI completou, em 2022, dez anos. Qual a importância dessa lei, bem como os avanços e limites de sua efetivação?
Taís Seibt – Acesso à informação é fundamental para combater a desinformação, pois sem dados públicos de qualidade disponíveis fica mais difícil discernir informação de desinformação. A importância da LAI é crucial não só porque obriga a prestação de contas por parte de órgãos públicos sobre seus atos e gastos, mas porque estabelece claramente quais informações devem ser publicadas sem que ninguém precise pedir e também quais os mecanismos para que qualquer cidadão possa questionar o poder público sobre o que é de seu interesse, com prazos legais para resposta e requisitos expressos para negativas – e são muito poucas as justificativas possíveis para não conceder uma informação. Com isso, a LAI também propicia dois direitos fundamentais da Constituição de 1988: o acesso à informação e a liberdade de imprensa. Se os dados são públicos – ou devem ser públicos – os jornalistas podem exercer seu trabalho de comunicar a sociedade sobre atos e gastos do poder com base em dados. Nesse sentido, a LAI foi um grande avanço para a democracia brasileira. Infelizmente, temos visto aumentar casos em que há tentativas, aparentemente deliberadas, de limitar o alcance da LAI em algumas esferas do poder, abusando das prerrogativas de sigilo. Diversas organizações da sociedade civil estão atentas a isso, produzindo relatórios, fazendo pressão sobre os órgãos públicos, chamando atenção da imprensa. Isso também é parte da evolução da democracia no Brasil e da própria LAI. A sociedade civil organizada tem um papel fundamental na defesa do direito à informação e, por consequência, da preservação da democracia.
IHU – Qual o papel da democratização dos meios de comunicação para o desenvolvimento de uma imprensa livre e atuante no Brasil?
Taís Seibt – A histórica concentração de concessões públicas de rádio e televisão em certos grupos políticos e econômicos é um problema, e a democratização desses meios seria importantíssima para que a imprensa seja livre de verdade, mas isso é só uma parte da questão. Será que hoje a mídia tradicionalmente chamada de hegemônica é mesmo tão hegemônica na formação da opinião pública? Será que ainda se pode considerar que essa mídia domina os investimentos e recursos? Num cenário plataformizado, onde, juntos, diversos pequenos canais podem capitalizar mais publicidade, audiência e influência na opinião pública do que um grande conglomerado, até mesmo o sentido de democratização da mídia parece estar em transformação. Não tenho informação suficiente sobre esse assunto, estou apenas aqui refletindo sobre as contradições do cenário midiático contemporâneo. Por um lado, os meios digitais possibilitaram passos importantes para uma democratização da imprensa, com diversas iniciativas jornalísticas nativas digitais independentes de conglomerados de mídia que fazem um ótimo jornalismo e têm conquistado relevância e reconhecimento no ecossistema midiático. Mas essas iniciativas concorrem com outros meios “alternativos”, ou o que Raquel Recuero chama de “veículos apócrifos hiperpartidários”, com muito mais recursos e muito mais alcance, a ponto de o jornalismo, principalmente o dos meios tradicionais, estar sob constante ataque e perder influência.
IHU – De que maneira podemos restituir os fatos enquanto mediadores do mundo concreto? De que forma fazer isso em um mundo radicalmente mediado por dispositivos tecnológicos de comunicação e informação?
Taís Seibt – É nesse ponto que o letramento midiático, digital e informacional ganha relevância. Esses letramentos são interconectados, mas não sinônimos entre si. Temos a dimensão das mídias, ou seja, reconhecer as diferentes formas de comunicação, as linguagens, formatos e tipos de conteúdo, suas estratégias e sentidos, não só como consumidores, mas também como produtores, porque também participamos da produção midiática cada dia mais. Temos a dimensão digital ou tecnológica, porque não basta aprender os comandos de um dispositivo novo, é preciso usá-lo de forma consciente e segura, sem prejudicar a si ou aos demais. E a dimensão informacional, porque vivemos em um ambiente de excesso de informação, em que temos dificuldades para identificar o que é ou não confiável, de modo que desenvolver habilidades de leitura crítica para reconhecer boas fontes e discernir desinformação é fundamental. Essas são competências basilares do nosso tempo.
IHU – No mesmo sentido da questão anterior, como podemos desenvolver competências comunicacionais para lidarmos com o volume de informação e circulação de dados que vemos atualmente?
Taís Seibt – Para ler criticamente é preciso primeiro ler. Para ler, precisamos parar, pensar, interpretar. Eu me refiro a ler no sentido de decodificar, por isso vale não só para texto, mas o áudio do WhatsApp, o vídeo do TikTok, o gráfico do portal de notícias, o mapa do aplicativo de GPS. Acontece que o ritmo das mídias digitais é instantâneo, e os estímulos são muito apelativos – curtir, comentar, compartilhar. É claro que nenhuma plataforma concordaria com isso, mas se tivesse um botão “você tem certeza de que quer/precisa compartilhar” antes de publicar, talvez boa parte da (des)informação não seria passada adiante. Já que não existe esse botão, precisamos ativar esse “botão mental”. Isso é um exercício, precisa ser treinado, até virar um hábito. Existem questões tecnológicas e de mercado que influenciam na desordem informacional, mas uma boa parte da solução está no usuário. E a vantagem é que essa peça da engrenagem não é programada algoritmicamente, ela é um ser pensante, embora tenha se desacostumado a pensar.
IHU – É possível existir democracia sem verdade factual?
Taís Seibt – A verdade factual não exatamente deixa de existir, ela pode ser encoberta pela corrosão da confiança nela, e esse é o risco à democracia. A confiança social nas instituições, entre elas a imprensa, é fundamental para que a verdade factual seja viável e, consequentemente, a democracia seja preservada.
IHU – Como você vê o futuro da democracia no Brasil em perspectiva com o papel da imprensa e da comunicação?
Taís Seibt – O acirramento de ataques à democracia vem acompanhado de ataques ao jornalismo e à liberdade de imprensa. Isso é notório em vários levantamentos e monitoramentos realizados no Brasil e no mundo. Nesse cenário, o futuro de um depende do outro. Se quisermos preservar a democracia, precisamos da imprensa livre. Se o jornalismo quiser se manter viável e relevante, precisa abraçar a democracia. Isso implica ao jornalismo tomar certas posições no debate público, rever modelos de negócios, voltar às bases da sociedade, e isso não é qualquer mudança. É por isso que vejo as transformações do jornalismo na perspectiva das mudanças estruturais. Há mudanças “normais”, são atualizações, adaptações, mas a estrutura se mantém. E há mudanças que reformulam a estrutura de tal modo que ela não é mais reconhecida como antes, o paradigma é outro. Isso acontece pela combinação de fatores externos e internos. A sociedade está mudando, e o jornalismo responde a essas mudanças de forma dicotômica – por uma via, tenta manter a estrutura intacta, por outra, há desvios do paradigma que tentam se estabelecer. Se esses desvios irão se tornar paradigmáticos, não é possível ainda saber, mas a “crise” do jornalismo, em todas as suas dimensões, pode ser uma oportunidade de mexer nessa estrutura.