Serenata da fome

Por Inês Campelo*, no Marco Zero

Após três anos de governo Bolsonaro, um a cada três brasileiros enfrentaram algum tipo de insegurança alimentar. Os dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) mostram que o país ultrapassou a marca de 60 milhões de pessoas nessa condição. Os números são chocantes, mas a realidade é ainda mais. Nesta quinta-feira, 14 de junho, me deparei com uma cena que retrata de forma muito triste a volta do Brasil ao mapa da fome.

Ele cantava na frente do prédio como em filmes de romance. A primeira vista tive a impressão de que um boêmio fazia uma serenata para sua amada.

Voltava de um dia comum de trabalho. O relógio marcava perto das 20h. Estacionei na rua, próximo ao portão da garagem, por onde entrei. Afastada dele. Evitei o portão principal do edifício. Não quis cruzar olhares. Não prestei atenção a música.

Subi os dez andares até minha casa e, de longe, ouvia o som dele. Entre uma conversa e outra fui recebida por Preta, minha cadelinha, com festa como de costume.

Agora não mais ouvia um som, uma música aleatória das antigas. Finalmente resolvi atentar para as palavras esbravejadas pelo desespero de um homem quase “invisível”.

Finalmente parei para ouvir.

Eram gritos de fome, de pedidos de ajuda, de desespero. Não era uma música. Não era um boêmio.

Desci estarrecida com dez reais. Não tinha mais dinheiro em casa. Em silêncio absoluto entreguei a cédula. O desespero daquele homem me silenciou de uma forma nunca vivida.

Não perguntei seu nome, não desejei boa noite ou boa sorte. Apenas baixei a cabeça e subi de volta pra casa. Dessa vez, ouvindo os gritos de agradecimento e apelo para que mais alguém o ajudasse.

Soube que aquele ritual de desespero, aquela espécie de serenata da fome, era repetida com frequência nos prédios vizinhos para lembrar a todos o tamanho do buraco em que nos metemos.

*Inês Campelo é cofundadora e presidenta do Conselho Diretor da Marco Zero.

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