FUNAI desmantelada: um grito de socorro. Por Marcelo Horta Messias Franco*

No livro “História Militar do Brasil” o historiador e militar perseguido pela ditadura, Nelson Wernek Sodré, traça a trajetória das forças armadas brasileiras, desde o período colonial, sempre comprometidas com a proteção da propriedade privada e do latifúndio, mesmo que para isso tivesse que se voltar contra a própria população pobre da nação. Sodré também assinala o aparecimento do autoritarismo em vários momentos da história do Brasil tendo a violência como aspecto marcante e duradouro da qual lançaram mão as elites proprietárias de terras, sempre que tiveram os seus privilégios ameaçados (SODRÉ, 1965).

Na quinta-feira, dia 21 de julho de 2022, uma cena se difundiu rapidamente pelas redes sociais, a de um servidor exonerado da FUNAI, devidamente trajado com a farda da instituição, expulsando aos gritos de “miliciano”, o atual presidente da Fundação, o Policial Federal Marcelo Augusto Xavier. O episódio ocorreu durante a plenária da 15ª Assembleia Geral da FILAC (Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e Caribe) na cidade de Madrid, Espanha.

Ricardo Rao, o autor da manifestação, vive exilado na Europa desde novembro de 2019, após ser ameaçado de morte no exercício de suas funções, no Estado do Maranhão município de Imperatriz. Figura ativa em expedições de proteção territorial contra ações incisivas de madeireiros e grileiros em Terras Indígenas, o servidor teve uma arma apontada para sua cabeça, gota d´água para o seu afastamento. Antes desse grave acontecimento, Rao havia entregue um dossiê para a Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Deputados em Brasília. Ao invés de proteção do Estado, Rao encontrou perseguição política dentro de seu próprio ambiente de trabalho. O episódio da acintosa ameaça de morte precedeu o assassinato de Paulo Paulino Guajajara, guardião indígena da TI Araribóia no Maranhão e também de Maxciel Pereira dos Santos, na cidade de Tabatinga, estado do Amazonas, ambos no segundo semestre de 2019, ambos com arma de fogo e ambos os crimes até o momento impunes.

Esse tipo de prática da qual Ricardo Rao foi vítima foi descrita como “política de assédio institucional” e é detalhadamente explicada no documento “Fundação anti-indígena: um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro” (INESC & INA, 2022), por sinal muito bem embasado e também propositivo. No citado estudo conclui-se que a “Nova FUNAI”, sob a gestão de Marcelo Xavier:

(…) é um caso gritante da prática de destruição de políticas que foi acionada em nível federal no Brasil durante o ciclo governamental 2019-2022. A erosão por dentro da política indigenista se soma à de políticas como a ambiental, a cultural, a de relações raciais, naquilo que diferentes pesquisadores vêm demonstrando, por meio de noções como infralegalismo autoritário ou assédio institucional, ser em verdade modus operandi do governo Bolsonaro (p. 10).

O dossiê aponta ainda, com a devida fundamentação argumentativa e documental, pontos como: o descompromisso com a missão institucional da FUNAI, que é a de promover e proteger direitos indígenas, a atuação em prol de interesses privados nas terras indígenas, sobretudo nas ainda não homologadas, ao mesmo tempo em que se paralisou totalmente o andamento dos processos de homologação,além do enfraquecimento do trabalho indigenista, se utilizando de instrumentos burocráticos internos tais quais processos administrativos disciplinares e acionamento da Corregedoria da instituição e até mesmo órgãos como a ABIN e a Polícia Federal para perseguir e intimidar servidores considerados como ideologicamente “não alinhados”. Com tantos abusos de autoridade e intimidações criou-se um clima insalubre de trabalho gerando atitudes como a de Ricardo Rao, que certamente lavou a alma de muitos colegas.

Ricardo, que foi companheiro de Bruno Pereira na escola de formação indigenista da FUNAI em Sobradinho – DF, não pôde se despedir presencialmente do amigo. A imagem dele aos berros, apontando para Marcelo Xavier naquele evento em Madrid e ao mesmo tempo se desculpando com a plateia indígena e trajando o uniforme da FUNAI, se mistura àquela imagem de Bruno na mata ecoando a canção Kanamari, também uniformizado. São gente que acredita no trabalho que fazem e que sentem prazer em defender e em atuar ao lado dos Povos Indígenas e de suas associações. É um grito de socorro que nos faz pensar se não é melhor concordar com o indigenista e também companheiro de trabalho de Bruno, Daniel Cangussu, quando ele disse que era melhor se tivessem extinguido logo a FUNAI, já que estão a matando por dentro.

Resta a esperança, num horizonte próximo, de respeitado o processo democrático em 2022, a duzentos anos da proclamação da independência do Brasil, de que os fantasmas do autoritarismo historiografados por Sodré retornem para as sombras de onde emergiram, e que a Constituinte de 1988 volte a ser respeitada, mas, sobretudo, aqueles que se utilizaram do aparelho estatal concebido para trabalhar em prol dos direitos coletivos, para fazerem justamente o avesso, respondam pelo prejuízo causado – verdadeiro etnocídio – dano que ainda está para ser dimensionado e que somente o tempo e a História o dirão.

*Marcelo Horta Messias Franco é Sociólogo, formado pela Universidade Federal de Minas Gerais; mestre em Extensão Rural pela Universidade Federal de Viçosa e doutorando em Geografia do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Rondônia; membro do Grupo de Pesquisa em Gestão do Território e Geografia Agrária da Amazônia – GTGA/UNIR.

Referências:

CANAL DO UOL (YouTube): Presidente da Funai é expulso de evento internacional em Madri. Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=JpYOQOgQ7-M. Acesso em 25 jul. 2022.

EL PAIS. Assassinato de líder Guajajara abala comunidade indígena e Moro garante que PF vai investigar (02/11/2019). Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/02/politica/1572726281_632337.html. Acesso em 24 Jul. 2022.

INDIGENISTAS ASSOCIADOS. Nota Pública – Assassinato de indigenista no extremo oeste do Amazonas (08/09/2019). Disponível em: https://indigenistasassociados.org.br/2019/09/08/nota-publica-assassinato-de-indigenista-no-extremo-oeste-do-amazonas/. Acesso em 25 jul. 2022.

INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONOMICOS (INESC) e INDIGENISTAS ASSOCIADOS (INA). Fundação anti-indígena: um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro. Brasília, Junho de 2022. Disponível em: /https://www.inesc.org.br/wp-content/uploads/2022/07/Fundacao-anti-indigena_Inesc_INA.pdf.  Acesso em 22 Jul. 2022. 

O JOIO E O TRIGO. “Bolsonaro e Marcelo Xavier são, sim, responsáveis pela morte do Bruno”, diz indigenista da Funai”. 01 jul. 2022. Disponível em: https://ojoioeotrigo.com.br/2022/07/bolsonaro-e-marcelo-xavier-sao-sim-responsaveis-pela-morte-do-bruno-diz-indigenista-da-funai/ . Acesso em 24 jul. 2022.

PORTAL UOL: Ex-servidor que atacou chefe da Funai acusou relação entre órgão e milícia (21/07/2022). Disponível em:https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/07/21/servidor-que-atacou-chefe-da-funai-denunciou-ligacao-entre-milicia-e-orgao.htm . Acesso em 23 jul. 2022.

SODRÉ, Nelson Werneck. História Militar do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, 439p.

Manifestação na sede da Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus – FOCIMP em Lábrea AM (foto: Marcelo Horta)

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