Nos termos em que hoje é possível ao menos pensar e almejar, a democracia como concepção aponta a um processo de busca da maior igualdade possível dentro das diversidades de ser e viver como humanos, em territórios ecossociais também diversos, no planeta Terra. E a igualdade só é possível com o reconhecimento da mais plena liberdade de todas e todos, para participar. Ou seja, para que igualdade, liberdade e participação existam efetivamente precisam ser reconhecidas simultaneamente e ser para todas e todos. Estes princípios políticos tem um fundamento ético de pertencimento ao coletivo social e de reconhecimento mútuo, e são, por isto, definidores de direitos políticos de cidadania, verdadeiros alicerces qualificadores para considerar uma sociedade efetivamente democrática com capacidade de transformação ecossocial.
Tais princípios podem alimentar imaginários de ação cidadã e processos democráticos mais ou menos intensos, estabelecendo modos de viver juntos, sempre em mudança virtuosa. A democracia se efetiva ou se restringe nos processos e relações das estruturas econômicas, sociais e de poder, nas políticas públicas, nas vivências e valores, que se medem, em última análise por direitos de cidadania conquistados, percebidos e vividos como iguais para todas e todos, e garantidos pela ação do Estado. Viver em democracia é ter instituído e constituído pela ação cidadã um método participativo de fazer a vida coletiva acontecer, permeado de tensões e contradições. O que torna as democracias viáveis é a participação viva e difícil, assentada na igualdade e na liberdade, com disputas intensas para se chegar a acordos coletivos segundo regras instituídas.
Na prática, nunca temos ou teremos democracias acabadas ou perfeitas, pois elas são um processo de viver em renovada e contínua busca, de intensa disputa, com ameaças e retrocessos, até fracassos. Pior ainda, com fascismos e autoritarismos descarados sempre possíveis, impérios e disputas geopolíticas, com guerras de expansão e conquista de uns países sobre outros. Bem, nunca podemos ignorar o quanto de exploração, destruição e dominação alimentam o capitalismo neoliberal globalizado. Ele é o problema de fundo. Além disto, temos por toda parte as heranças estruturais do colonialismo, racismo e patriarcalismo, com as mais odientas discriminações e desigualdades. E o mais grave de tudo, o mundo e, nele, as democracias reais estão diante do desafio de desmontar uma economia e um poder a serviço de 1% de donos de tudo.
Portanto, do que estamos falando quando ainda falamos de democracia?
Como já afirmado, isto soa com um imaginário e um princípio orientador. O mundo real está longe de ser democrático. Aliás, hoje, quem lidera a destruição da democracia no mundo é exatamente o país imperial que se considera defensor dela.[i] Tanto avanços como, sobretudo, impasses, retrocessos e fracassos são constantes. Vendo o que está acontecendo no mundo estamos diante da perda do próprio sentido democrático, do local ao mundial. Existem resistências democráticas potencialmente virtuosas, como entre nós os exemplos recentes de Chile, Bolívia e Colômbia demonstram. Sinais de esperança, sem dúvida, e sobretudo uma potente inspiração para não desistirmos. Mas a conjuntura política e econômica global não parece propícia, com as intensas disputas geopolíticas imperiais, guerras sem fim, com crises e descontroles de toda ordem, em meio a uma mudança climática provocada pela economia movida pela crescimento sem limites, que pode ser devastadora, e um pipocar de novas pandemias devido à destruição da integridade dos sistemas ecológicos da natureza. Tudo isto é mais anúncio de barbárie mundial do que de possível transição para sociedades ecossociais democráticas de viver.
A vivência democrática mais intensa tende a acontecer em territórios de cidadania locais, urbanos e rurais bem delimitados, com práticas de contínua democracia direta nas mais variadas questões. Só que o mundo, por mais que possa ser mapeado como constituído por territórios ecossociais diversos, integra complexos nacionais, regionais e as lógicas do sistema do capitalismo globalizado, que tolera democracias desde que não ameacem a acumulação sem limites. No horizonte, democracias podem ser fortes ameaças para o sistema dominante, se impulsionadas por movimentos irresistíveis vindo do seio das sociedades. Esta é a aposta a fazer, apesar de tudo.
Por que trago tudo isto, se o meu objetivo declarado é captar sentidos e rumos nas conjunturas, com uma inspiração de transformação ecossocial democrática? Bem, nós, cidadania brasileira, estamos em pleno processo eleitoral, tendo uma ameaça real de feições autoritárias e fascistas no comando do Estado buscando sua reeleição, pelo voto ou na marra. Podemos evitar isto? Tudo indica que temos possibilidades pelo que as pesquisas eleitorais indicam. Mas pairam dúvidas, ao menos de minha parte, quanto à intensidade de mobilização das cidadanias ativas com potencial democratizador decidindo a parada. Ao levantar as questões acima, minha intenção é chamar a atenção para o que está por trás de disputa eleitoral. De maneira simples e direta: estamos diante de poderosas forças econômicas, financeiras, agrárias e extrativistas, com apoio de setores militares, policiais e milicianos, e um resiliente setor autoritário no seio das classes médias e igrejas pentecostais que sustentaram até aqui o atual governo do capitão pregador do ódio, pois ele defende o mais predador capitalismo em nosso seio.
A possibilidade de obter apoio eleitoral de parte destes setores para um governo alternativo é só com garantia de manutenção do atual modelo de inserção no capitalismo neoliberal globalizado, com um poder estatal a serviço de uma economia produtora de commodities e totalmente sujeita às regras do mercado. Podem acontecer ajustes, mas não mudanças. E isto parece ausente da disputa eleitoral, pois basicamente são anunciadas políticas compensatórias e distributivas como prioridades. Reinventar o “neoliberalismo progressista” é insuficiente, como demonstraram as experiências governamentais de esquerda no Brasil e América Latina. Isto não basta para enfrentar o desafio de renovar a aposta democrática transformadora, que nos fez derrotar a ditadura décadas atrás e reconquistar a democracia.
Anunciando este problema de fundo, destaco que o autoritarismo e o fascismo tem raízes profundas no capitalismo globalizado para poucos, muito além dos truculentos pregadores de ódio e discriminação, com violência armada, ao serviço da continuidade de um economia regulada pelo mercado, destruidora e excludente em termos ecossociais. Desqualificar o Bolsonaro pelo voto é estrategicamente importante, condição sine qua non. Mas é preciso assegurar uma virada mais ousada e determinada diante do enorme problema de mudanças democráticas ecossociais que precisamos. Só assim a democracia poderá voltar a ter sentido profundo para os grandes contingentes de conterrâneos condenados às precárias periferias rurais e urbanas do país. Esta é a grande encruzilhada diante de nós, para alcançarmos uma democracia mais intensa como modo de nos organizar e viver coletivamente.
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[i] Ver o instigante artigo de Aram Aharonian. AHARINIAN, Aram. “Hablemos Del golpe de Estado em Estados Unidos. Retos e amenazas de la democracia americana.” Bitacora, Montevideo, (951), 22 de agosto de 2021.
Imagem capturada de vídeo “Liberte o futuro”