“Imprensa errou ao dar muito espaço a Bolsonaro no 7/9”

Para a ombudsman Paula Cesarino Costa, mídia caiu no jogo do presidente na cobertura do bicentenário. Em entrevista, ela diz que é preciso investir em investigações independentes para contornar estratégia bolsonarista.

Por Rayanne Azevedo, na DW

Em plena campanha eleitoral, o presidente Jair Bolsonaro conseguiu  no bicentenário do 7 de Setembro mais uma vez galvanizar a atenção da imprensa e dominar o noticiário do dia, que dedicou ampla cobertura às mobilizações convocadas pelo candidato à reeleição e repercutiu com destaque suas bravatas e declarações de cunho sexista.

A exposição deu ao mandatário uma vantagem tática sobre seus oponentes – algo que, na avaliação da ombudsman Paula Cesarino Costa, provocou “um desequilíbrio noticioso” e pode, mais na frente, render votos.

Do ponto de vista jornalístico, argumenta a especialista, “não fazia sentido ignorar um evento que levou milhares às ruas”. Mas a imprensa errou ao dar espaço demais ao show bolsonarista e de menos à relevânciacontexto e reflexosda Independência do Brasil.

“A mídia tem de deixar de ser majoritariamente relatorial e declaratória para concentrar seus recursos humanos e financeiros na investigação crítica independente”, afirma Costa, que atualmente é membro do Conselho Editorial da Agência Pública e ombudsman convidada da agência de checagem Lupa para o acompanhamento da cobertura das eleições.

Em entrevista à DW Brasil, a jornalista com 30 anos de carreira na Folha de S.Paulo, onde foi ombudsman de 2016 a 2019, cita coberturas recentes sobre temas como os bens do presidente e de seus familiares e o orçamento secreto como exemplos de decisões editoriais corajosas que priorizam a investigação independente em detrimento do jornalismo declaratório e fala sobre os desafios da imprensa diante das táticas diversionistas de Bolsonaro.

DW Brasil: Até que ponto Bolsonaro se beneficia de uma estratégia de marketing baseada no “falem bem, falem mal, mas falem de mim”, e até que ponto a imprensa se permite ser usada nesse jogo?

Paula Cesarino Costa: Politicamente, Bolsonaro impôs sua agenda e enfoque no 7 de Setembro. Eleitoralmente, Bolsonaro conseguiu espaço muito maior no noticiário do que seus oponentes, a menos de um mês do pleito, provocando um desequilíbrio noticioso que pode ter reflexos em pesquisas e, consequentemente, em resultados eleitorais.

Jornalisticamente, não fazia sentido ignorar um evento que levou milhares às ruas. Mas a mídia brasileira repercutiu mais as declarações e eventos marqueteiros de Bolsonaro do que discutiu a relevância, o contexto e os reflexos de 1822.  Deu espaço demais para a divulgação do seu discurso conservador, machista, preconceituoso e mentiroso, que era o que Bolsonaro queria.

Por outro lado, avalio que grande parte da imprensa soube apontar o caráter antidemocrático e o uso eleitoral da data.

Até que ponto o bolsonarismo é eficiente em distrair a opinião pública, e até que ponto a imprensa embarca nesse jogo e deixa-se distrair pelo presidente?

A estratégia bolsonarista é chacriniana: confundir para não explicar. Não à toa, fazer chacrinha tornou-se uma expressão dicionarizada para definir agitação desordenada e barulhenta em ambiente que exige formalidade e respeito. A mídia brasileira cai muitas vezes no conto do presidente – alguns por passividade desinteressada, mas muitos por interesses ideológicos, políticos e financeiros explícitos ou ocultos.

É evidente que Bolsonaro usa a cartilha de Steve Bannon, guru do [ex-presidente dos EUA Donald] Trump, ao eleger a mídia como inimiga. “Não se trata de persuadir, e sim de desorientar”. Mas a imprensa já percebeu isso.

O que mudou então?

Durante a campanha eleitoral, a mídia cometeu muitos erros e demorou a perceber a estratégia de Bolsonaro e o que estava acontecendo no país. Durante o governo, também falhou e se perdeu em muitos momentos. Aos poucos, busca se reinventar, vem criando instrumentos e estratégias.

Já não se publica tudo o que o presidente fala ou faz, sua live semanal é praticamente ignorada. Tem se noticiado de modo crítico, contextualizado e com contraditório muitas de suas falas ou decisões.

Há quem diga que o Bolsonaro só chegou à Presidência e mantém esse apelo popular porque declarações e atos chocantes dele eram e continuam a ser repercutidos pela imprensa. Concorda?

Difícil afirmar isso de modo tão categórico. É fato que a imprensa não levava Bolsonaro a sério na época de pré-campanha. Assim como aconteceu com Trump, nos Estados Unidos, as declarações e comportamentos absurdos e marqueteiros de Bolsonaro acabaram por ter mais espaço do que deveriam. Ou seja, muitos eleitores passaram a prestar mais atenção nele por causa do destaque dado pelos jornais.

Havia uma parcela da população brasileira, super conservadora, que não tinha voz e era ignorada pela mídia e mesmo por parte da elite do país. Demorou-se a perceber que Bolsonaro estava conquistando esses eleitores, sendo considerado por eles como uma opção real de poder.

A imprensa tem sua parcela de responsabilidade? Com certeza. Entretanto é preciso considerar muitos outros elementos decisivos na eleição de 2018, como o forte antipetismo da sociedade e de muitos órgãos de comunicação.

Redações, não raro, se veem diante de um dilema ético: cobrir ou não cobrir todas as atividades do presidente? Como responder a essa questão?

A régua tem de estar na importância do tema em termos de governança, política pública e bem-estar social. Manobras diversionistas e declarações populistas não se encaixam nisso. Deveriam ser tratadas pelo que são: factoides, sementes de notícias falsas, viés político equivocado.

As notícias precisam mais do que nunca serem relatadas de forma crítica e com contexto.

Como a imprensa pode evitar ser usada pelo Bolsonaro?

A mídia tem de deixar de ser majoritariamente relatorial e declaratória para concentrar seus recursos humanos e financeiros na investigação crítica independente. Gastar mais dinheiro e tempo dos jornalistas para explicar a devastação amazônica do que falar da impotência de senhores de idade avançada em relacionamentos tóxicos.

Como mostraram reportagens recentes sobre os bens do presidente e de seus familiares ou sobre a existência e as engrenagens do orçamento secreto, o papel da mídia de qualidade deveria ser investigar de forma independente e crítica. Para tal, precisa saber hierarquizar prioridades, dosar os próprios reforços. É uma decisão de gestão de redação que precisa ser corajosa, ousada, não se submeter à camisa de força da audiência ou de torcidas organizadas.

As agências de checagem cada vez mais numerosas, fortes e ágeis são elementos decisivos para este objetivo. É urgente que se tenha a coragem de não publicar fatos e declarações que não sejam relevantes. Não é fácil. O risco de fazer opções erradas aumenta.

A mídia não pode se tornar um partido político, como gostariam os seguidores de Bannon. Mas as atitudes e postura não podem ser as mesmas de décadas atrás. As redes sociais transformaram o fazer político, o comportamento da sociedade e as formas de comunicação.

Paula Cesarino Costa, ombudsman convidada da Lupa para o acompanhamento da cobertura das eleições em 2022. Foto: Eduardo Knapp/Folhapress

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