30 anos do Massacre do Carandiru: para não esquecer

“É possível morrer-se em Auschwitz, depois de Auschwitz?”. A resposta é: sim, enquanto existirem prisões

Por Mayra Balan e Carolina Dutra, da Pastoral Carcerária, na Ponte

O massacre do Carandiru, ocorrido em 2 de outubro de 1992, completa 30 anos este ano. A Polícia Militar do Estado de São Paulo executou ao menos 111 pessoas – sobreviventes do massacre clamam que foram muito mais – sem contar a morte em vida de familiares e amigos dos mortos, que sobrevivem ao luto e à dor até hoje.

O massacre, que foi o maior contabilizado dentro de unidades prisionais brasileiras, não impediu que mais outros viessem. Em agosto de 2000, no Complexo Penitenciário da Papuda (DF), cerca de 11 pessoas foram mortas. Em janeiro de 2002, cerca de 27 pessoas padeceram na Casa de Detenção José Mário Alves, mais conhecida como Urso Branco (RO). Entre 2013 e 2014 foram contabilizadas mais de 60 mortes em situações de violência no Complexo Penitenciário de Pedrinhas (MA). Em janeiro de 2017, cerca de 33 pessoas foram assassinadas na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo (RR), ao menos 27 pessoas no Presídio de Alcaçuz (RN) e cerca de 55 no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (COMPAJ), em Manaus. Unidades prisionais manauaras foram palco de outro massacre, em junho de 2019, contabilizando cerca de 56 pessoas mortas. No mesmo ano, em julho, o Presídio de Altamira foi alvo de um massacre com cerca de 62 pessoas assassinadas. Ao todo, foram mais de 330 pessoas mortas, sem contabilizar as mortes que ocorrem todos os dias nas prisões.

Ainda, os massacres estão também fora do sistema prisional. Em 1996, foram 21 mortos por repressão da Polícia Militar contra integrantes do Movimento Sem Terra (MST) em Eldorado do Carajás (PA). Em 2004, foram cerca de 7 mortos por ataques a pessoas em situação de rua na Sé (SP), o conhecido Massacre da Sé, que contou com a participação da Polícia Militar. Em 2006, a Polícia Militar do Estado de São Paulo, aliada ao Governo do Estado, promoveu uma das maiores chacinas da história, os Crimes de Maio, em que 564 pessoas foram mortas. Em 2015, a mesma Polícia Militar matou 15 jovens em Osasco e Barueri (SP). No mesmo ano, esta mesma Polícia matou 2 pessoas em frente à Catedral da Sé (SP). Em 2019, 9 jovens na favela de Paraisópolis (SP) foram assassinados pela Polícia Militar durante um baile funk. Em 2020, a Polícia do Estado do Rio de Janeiro matou 27 pessoas na favela do Jacarezinho. E, desde março de 2020, o Governo Federal é corresponsável e responsável direto pela morte de mais de 680 mil pessoas em decorrência da Covid-19.

Massacre do Carandiru: 30 anos de impunidade

Estes fatos violentos têm como denominador comum o terrorismo eugênico do Estado contra jovens pretos e pobres, aliado à política genocida de Estado e ao predicado de massacráveis construído e imposto para determinadas pessoas.  Não iniciou, nem terminou no Carandiru. Os 30 anos do massacre escancaram a violência cíclica que ocorre no sistema prisional brasileiro: as condições de aprisionamento são inumanas, com pessoas sem acesso à água, comida, assistência à saúde, submetidas a ambientes insalubres e levando bala e spray de pimenta todo dia; as pessoas presas revoltam-se diante da barbárie a que foram submetidas; há incursões policialescas nos presídios; e milhares de vidas presas pagam o preço do modus operandi das prisões.

Este ciclo de dor e agonia para as famílias pretas e pobres ainda ganhou mais uma volta. Em 2 de agosto de 2022, exatamente 2 meses antes dos 30 anos do massacre do Carandiru, a Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados aprovou o PL 2821/21 que concede anistia aos policiais militares processados ou punidos pelo massacre. A proposta foi criada pelo deputado Capitão Augusto (PR/SP) e teve como relator o deputado Sargento Fahur (PSD/PR). Como justificativa da criação da PL, foi alegado que não houve demonstrações de nenhuma conduta individual certa e definida que possam comprovar a responsabilidade dos policiais nas centenas de mortes. A principal argumentação do PL parte do princípio de que a responsabilização dos polícias vem de motivações ideológicas oriundas de julgamentos políticos.

A extrema violência e o arbítrio da força escancaradas pela segurança pública durante o massacre, ao ser analisada apenas pela perspectiva da responsabilização individual dos policias, tira das mãos do Estado o sangue de mais de uma centena de mortes.

O Coronel Ubiratan Guimarães, única autoridade julgada e condenada pelo massacre, virou deputado estadual em 2002 usando o número “111” nas urnas. Em 2006, foi inocentado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que considerou os atos do dia 02 de outubro justificados pelo “estrito cumprimento do dever legal”. Meses depois, o Coronel foi assassinado. A acusação do assassinato recaiu sob sua namorada à época, que não foi a júri popular por falta de provas.

Mas o gatilho do Coronel Ubiratan e de suas tropas não foi apertado sozinho: a ação teve aval do Governo do Estado. E neste caso, as famílias de pessoas mortas no massacre entraram com ações de indenização. Contudo, em levantamento feito por pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas (FGV), dentre as 76 ações de indenização identificadas, em apenas 25 os familiares receberam totalmente o valor solicitado.

Conforme afirmam os pesquisadores, os magistrados que negaram as indenizações às famílias culpabilizam as próprias vítimas pelo massacre, dizendo que estas iniciaram o “motim”. Ainda, o estudo aponta que a principal justificativa usada nas sentenças que indeferiram pedidos de danos morais “baseou-se  na ausência de demonstração de a mãe ter sofrido com a morte do filho’”. Em uma decisão que fixou a indenização em 1 salário mínimo, a razão para tal valor foi explicada com a seguinte frase: “caráter da vítima revelador[a] de praticante de crime contra o patrimônio” que “envolve] a família sob o manto da vergonha, pelo vexame natural de abrigar em seu seio um marginal” concluindo que “a  dor moral  dos  autores advém muito mais de suas precárias condições econômicas, aliados ao irregular comportamento da vítima, do que propriamente da morte desta”.

O direito à memória daqueles que se foram no dia 2 de outubro de 1992 também foi negado. Expressão disso é a demolição da própria estrutura da Casa de Detenção, a qual não existe mais. No lugar, o mesmo governo genocida ergueu um monumento que é objeto de chacota por estes, a palavra “massacre” foi nesse lugar substituída por “motim”, em mais uma tentativa de apagamento da memória coletiva. Mais uma expressão do sarcasmo humano que nem respeita o luto e a dor de tantas famílias e pessoas que consideram esta terra sagrada porque é regada pelo sangue de vidas humanas, ferindo e profanando a Mãe Terra.

Mas nem só de Estado, polícias e juízes se vive o sistema prisional. No cotidiano das prisões há ainda aqueles e aquelas que se importam com as pessoas presas. E neste sentido, o massacre do Carandiru acendeu ainda mais a chama da justiça social dentro da Pastoral Carcerária.

Agentes da Pastoral Carcerária estiveram do lado de dentro da unidade, vivenciando todo o sangue derramado naquele inapagável evento.

Padre Francisco Reardon (Padre Chico), coordenador nacional da Pastoral Carcerária na época, ajudou a organizar um relatório sobre o Massacre na Casa de Detenção do Carandiru. O documento serviu de base para várias pesquisas em relação ao massacre, além de ser um dos documentos mais relevantes sobre as denúncias das violações ocorridas no episódio. A Pastoral Carcerária direciona sua luta contra os massacres prisionais diante da nossa “tarefa profética que exige ação de denúncia e anúncio, sendo voz dos sem voz” (Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora 2019-2023 da CNBB).

Mais do que episódio, foi a partir daí que a Pastoral Carcerária percebeu que o massacre nas unidades prisionais não é um evento pontual, mas sim uma política cíclica de extermínio, uma forma de gerir os presídios e as pessoas que lá são abandonadas. Padre Chico questionava: “É possível morrer-se em Auschwitz, depois de Auschwitz?” A resposta, evidenciada por ele ao analisar comparativamente o campo de concentração em Auschwitz, na Alemanha, é sempre que sim, enquanto existirem prisões.

Ainda, é importante ressaltar que, neste ano, a data que marca o Carandiru também será o dia das eleições para 1º turno. No dia em que ao menos 111 famílias estarão chorando seus mortos, o Brasil estará absorto em um clima atmosférico de preocupação com a corrida eleitoral. Neste tempo, é importante que lembremos que tanto o Carandiru, quanto os outros tantos massacres e chacinas aconteceram em um período de normalidade democrática.

O Estado Democrático de Direito, do jeito (e por quem) é pensado e executado, não é capaz de proteger as pessoas pretas e pobres do terrorismo de Estado. Democracia esta que as pessoas presas e sobreviventes do sistema prisional sequer podem participar. Presos provisórios e adolescentes em unidade de internação têm direito ao voto. Contudo, a Administração Pública não se preocupa em garantir esse direito. Segundo estudo da Conectas Direitos Humanos: “enquanto o eleitorado brasileiro em 2020 era de quase 148 milhões de pessoas, cerca de 1,4 milhão de pessoas (1,01%) não puderam votar por possuírem contra si condenação criminal transitada em julgado. Se somarmos a esse número todos aqueles que estavam provisoriamente custodiados e não puderam exercer seus direitos políticos, podemos estimar que mais de 1,7 milhão de pessoas não votaram no ano de 2020 por estarem de alguma forma envolvidos com o sistema de justiça criminal. Isso representa 1,17% do eleitorado brasileiro daquele ano; comparativamente, equivale a quase todo o colégio eleitoral de municípios como Salvador ou Fortaleza.” Isso sem contar as milhares de pessoas que estão devendo a “pena multa”, e que por isso estão com seus direitos políticos suspensos até pagarem os valores exorbitantes impostos pelo Judiciário.

Isso mostra que o Estado não é feito e pensado por nós. É preciso, portanto, que as vítimas dessa democracia pensem e executem esse Estado. É preciso que a sociedade civil se organize e ocupe os espaços a que tem direito. É preciso que, desde o dia 1º de janeiro de 2023, a gente esteja lá, cobrando e reivindicando o mundo sem cárcere.

Ajude a Ponte!

Mas também é preciso dizer que, ao final, a sensação que fica é que os 30 anos do massacre do Carandiru ecoam a sensação de que as vidas presas não importam. Não valem nada. Não são dignas sequer de luto. Mas isso não é verdade: a luta pelo desencarceramento é composta por pessoas que se importam. Agentes de pastoral que deixam suas famílias todos os dias para visitar os irmãos(ãs) encarcerados(as); mães, avós, tias e famílias inteiras que transformam a dor de seus(suas) filhos(as) perdidos(as) para a política genocida de Estado em luta. É o sangue e suor daqueles que se importam que deve ser lembrado neste dia 2 de outubro de 2022. É o nome e a memória dos 111 mortos – e de todas as vítimas do sistema prisional – que ecoará.

As vítimas:

1) Adalberto Oliveira dos Santos2) Adão Luiz Ferreira de Aquino3) Adelson Pereira de Araujo4) Alex Rogério de Araujo5) Alexandre Nunes Machado da Silva6) Almir Jean Soares7) Antonio Alves dos Santos8) Antonio da Silva Souza9) Antonio Luiz Pereira10) Antonio Quirino da Silva11) Carlos Almirante Borges da Silva12) Carlos Antonio Silvano Santos13) Carlos Cesar de Souza14) Claudemir Marques15) Claudio do Nascimento da Silva16) Claudio José de Carvalho17) Cosmo Alberto dos Santos18) Daniel Roque Pires19) Dimas Geraldo dos Santos20) Douglas Edson de Brito21) Edivaldo Joaquim de Almeida22) Elias Oliveira Costa23) Elias Palmiciano24) Emerson Marcelo de Pontes25) Erivaldo da Silva Ribeiro26) Estefano Mard da Silva Prudente27) Fabio Rogério dos Santos28) Francisco Antonio dos Santos29) Francisco Ferreira dos Santos30) Francisco Rodrigues31) Genivaldo Araujo dos Santos32) Geraldo Martins Pereira33) Geraldo Messias da Silva34) Grimario Valério de Albuquerque35) Jarbas da Silveira Rosa36) Jesuino Campos37) João Carlos Rodrigues Vasques38) João Gonçalves da Silva39) Jodilson Ferreira dos Santos40) Jorge Sakai41) Josanias Ferreira de Lima42) José Alberto Gomes pessoa43) José Bento da Silva44) José Carlos Clementino da Silva45) José Carlos da Silva46) José Carlos dos Santos47) José Carlos Inojosa48) José Cícero Angelo dos Santos49) José Cícero da Silva50) José Domingues Duarte51) José Elias Miranda da Silva52) José Jaime Costa e Silva53) José Jorge Vicente54) José Marcolino Monteiro55) José Martins Vieira Rodrigues56) José Ocelio Alves Rodrigues57) José Pereira da Silva58) José Ronaldo Vilela da Silva59) Josue Pedroso de Andrade60) Jovemar Paulo Alves Ribeiro61) Juares dos Santos62) Luiz Cesar leite63) Luiz Claudio do Carmo64) Luiz Enrique Martin65) Luiz Granja da Silva Neto66) Mamed da Silva67) Marcelo Couto68) Marcelo Ramos69) Marco Antonio Avelino Ramos70) Marco Antonio Soares71) Marcos Rodrigues Melo72) Marcos Sérgio Lino de Souza73) Mario Felipe dos Santos74) Mario Gonçalves da Silva75) Mauricio Calio76) Mauro Batista Silva77) Nivaldo Aparecido Marques de Souza78) Nivaldo Barreto Pinto79) Nivaldo de Jesus Santos80) Ocenir Paulo de Lima81) Olivio Antonio Luiz Filho82) Orlando Alves Rodrigues83) Osvaldino Moreira Flores84) Paulo Antonio Ramos85) Paulo Cesar Moreira86) Paulo Martins Silva87) Paulo Reis Antunes88) Paulo Roberto da Luz89) Paulo Roberto Rodrigues de Oliveira90) Paulo Rogério Luiz de Oliveira91) Reginaldo Ferreira Martins92) Reginaldo Judici da Silva93) Roberio Azevedo da Silva94) Roberto Alves Vieira95) Roberto Aparecido Nogueira96) Roberto Azevedo Silva97) Roberto Rodrigues Teodoro98) Rogério Piassa99) Rogério Presaniuk100) Ronaldo Aparecido Gasparinio101) Samuel Teixeira de Queiroz102) Sandoval Batista da Silva103) Sandro Rogério Bispo104) Sérgio Angelo Bonane105) Tenilson Souza106) Valdemir Bernardo da Silva107) Valdemir Pereira da Silva108) Valmir Marques dos Santos109) Valter Gonçalves Gaetano110) Vanildo Luiz111) Vivaldo Virculino dos Santo

* Mayra Balan e Carolina Dutra atuam no setor jurídico da Pastoral Carcerária Nacional

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Massacre na casa de detenção teve início após uma briga entre dois detentos; ao todo, 111 foram mortos no episódio. Foto: Mônica Zarattini /Estadão Conteúdo /19.02.2001

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