Por Angela Pinho, no Yahoo
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ponto central na disputa eleitoral de 2022, a religião não é só uma pauta de costumes no Brasil, afirma Lívia Sant’Anna Vaz, promotora de Justiça na Bahia e especialista em intolerância religiosa.
A atual “guerra santa”, que para ela “de santa não tem nada”, tem como pano de fundo interesses econômicos, afirma.
Em meio a notícias falsas sobre possível fechamento de templos, ela lembra que as crenças que são alvo de perseguição no Brasil não são as cristãs, mas as de matriz africana.
Sem citar nomes, em meio a acusações de censura na campanha eleitoral, ela afirma que quem menos tem liberdade de expressão no Brasil não é quem está no poder, mas os grupos marginalizados da sociedade.
Doutora em ciências político jurídicas pela Universidade de Lisboa, ela defende ainda intolerância a discursos que busquem atacar a democracia por dentro. “A ditadura da liberdade de expressão nas mãos dos intolerantes vai minar o próprio processo democrático”, diz.
PERGUNTA - Qual é o panorama hoje da intolerância religiosa hoje no Brasil?
LÍVIA SANTANNA VAZ – A intolerância religiosa é um guarda-chuva que pode ter como foco qualquer confissão, mas, no Brasil, há um fenômeno muito peculiar: o racismo religioso. Usamos essa expressão porque é um ódio que se volta especificamente contra religiões de matriz africana. As manifestações dele vão desde ofensas verbais até invasões de terreiro, em práticas cada vez mais corriqueiras no Brasil, principalmente no atual contexto político.
Na atual campanha eleitoral, há um setor com medo de fechamento de igrejas e de perseguição a fiéis das igrejas evangélicas. Isso já aconteceu em algum momento no Brasil?
L. S. V. – Não contra religiões cristãs. Mas, em relação às religiões de matriz africana, nós temos uma história de violências, desde a legislativa até a agressão, inclusive pelo próprio aparato estatal.
Vou dar alguns exemplos. No Brasil, quando ainda não tínhamos nem ordem jurídica própria, as ordenações filipinas previam no livro dos crimes o de feitiçaria, que poderia ser punido inclusive com pena de morte. Ora, quem eram as pessoas consideradas feiticeiras? Não preciso dizer que era contra pessoas negras. Posso dar exemplos mais recentes. Em 1966, uma lei na Paraíba obrigava os sacerdotes ou sacerdotisas de religiões de matriz africana a passarem por exame de sanidade mental para que pudessem praticar seus rituais religiosos, em um Estado que à essa época já era laico e já tinha garantia constitucional de liberdade de crença.
Em 1976, na Bahia, os terreiros tinham obrigatoriedade de ter um alvará de funcionamento expedido por delegacias de jogos e costumes. Fica muito evidente a criminalização de determinadas práticas e confissões religiosas por conta da origem negra. E não eram raras as operações policiais com interrupção de cultos religiosos de matriz africana. As religiões de matriz africana são aquelas que até os dias de hoje, em alguns estados do Brasil, ainda possuem objetos sagrados apreendidos e expostos em museus do crime. No Rio de Janeiro, só em 2020 houve a transferência desses objetos sagrados do museu da Polícia Civil para o Museu da República.
Como vê a presença da religião na atual campanha eleitoral?
L. S. V. – Nós vivemos num Estado laico. A atuação do Estado não deve beneficiar nenhuma religião nem colocar obstáculos a nenhuma delas. Quando falamos em liberdade religiosa, precisamos qualificar esse direito. As religiões de matriz africana no Brasil nunca experimentaram liberdade religiosa. Infelizmente o que existe historicamente no Brasil é uma disputa supostamente religiosa. Uma guerra santa que de santa não tem nada, que, na verdade, é disputa de poder e de território. Esse projeto político de tomada de território já está em execução, com terreiros, comunidades quilombolas e comunidades indígenas invadidas. Com a criminalização dos movimentos sociais ligados a essas raízes históricas de matriz afroindígena. Estamos vivendo num contexto de disputa que não se resume à questão religiosa. A religião tem sido um pano de fundo para esse debate e, infelizmente, tem provocado o cerceamento de direitos fundamentais de grupos religiosos, sociais e raciais vulnerabilizados.
E o conteúdo do debate sobre religião na campanha, como avalia?
L. S. V. – Ele tem pautado diversas discussões sobre direitos fundamentais. Isso é muito grave. Vivemos num Estado laico e num Estado democrático de Direito, então um discurso que atenda a determinados interesses de grupos religiosos específicos hegemônicos não pode pautar o acesso das pessoas a direitos. É preciso haver espaço para a representação de todos os grupos, especialmente os vulnerabilizados, nos espaços de poder e decisão, em que vemos sempre os mesmos grupos historicamente privilegiados no Brasil, os privilégios da branquitude em especial.
O Estado é laico, mas as pessoas também têm direito a pleitear políticas públicas alinhadas aos seus valores. Como equilibrar esses dois aspectos?
L. S. V. – Quando falamos em laicidade do Estado, isso não quer dizer que as pessoas, inclusive os servidores públicos, não possam professar as suas religiões. Isso quer dizer que eles não devem confundir o exercício de suas funções públicas com a sua religiosidade, privilegiando determinadas religiões e causando violência e discurso de ódio em detrimento de direitos para outras religiões. É óbvio que as pessoas têm opiniões, valores e crenças, mas temos uma Constituição que também faz escolhas. Então não são os interesses ou opiniões do grupo A, B ou C que devem prevalecer, mas os valores que estão consagrados no nosso Estado democrático de Direito.
Hoje em dia, são principalmente os bolsonaristas que se dizem tolhidos em sua liberdade de expressão. Na sua visão, quem no Brasil tem menos liberdade de expressão hoje em dia?
L. S. V. – Quem menos tem liberdade de expressão no Brasil são os grupos que nunca tiveram acesso aos meios para se expressar, os grupos historicamente vulnerabilizados. Nós sabemos muito bem no Brasil quais são os grupos que dominam os meios de comunicação de massa e não são pessoas negras, não são mulheres, não são pessoas indígenas.
Um conceito que você cita é o do “efeito silenciador” de determinados discursos. De que forma a desinformação tolhe a liberdade de expressão das pessoas?
L. S. V. – A desinformação limita a liberdade de expressão das pessoas a partir do momento em que elas não conseguem acessar elementos necessários para uma manifestação consciente do seu pensamento. As pessoas acabam repetindo pensamentos, supostamente exercendo uma liberdade de expressão, mas é uma liberdade de expressão manipulada.
É preciso que nós pensemos em ampliar a liberdade de expressão de todas as pessoas. E o que acontece no Brasil hoje é que é uma quase absolutização da liberdade de expressão de grupos hegemônicos.
É fundamental que a gente consiga observar que os inimigos da democracia podem estar na própria democracia. Se você absolutiza a liberdade de expressão, você sobreleva a liberdade de expressão de determinados grupos e causa um efeito silenciador de outros grupos que não possuem o mesmo acesso aos mecanismos para exercer plenamente a sua liberdade de expressão.
Havia uma crença de que, com a internet, iria se democratizar a possibilidade de fala. Hoje isso mudou. Como avalia?
L. S. V. – A internet pode ser um meio importante para veicular e ampliar a fala, mas ela é uma reprodução da sociedade. Então, se nós temos uma sociedade misógina, racista e LGBTfóbica, isso vai se reproduzir nas redes sociais também. E há várias camadas nessa discussão. Entre elas, o próprio acesso à internet, que não é igualitário. Isso também tolhe a possibilidade de determinados grupos de participar com a igualdade do debate público e da produção de políticas públicas.
Na atual campanha, a Justiça Eleitoral tem decidido pela remoção de conteúdos que considera inverídicos. Como avalia?
L. S. V. – É uma questão complexa. O que se estabelece em termos constitucionais e de direitos não é a censura prévia, mas a responsabilização pelo conteúdo, incluindo discursos de ódio e informações inverídicas que podem minar o processo democrático. Sem imputar responsabilidades, é muito difícil que a gente consiga um processo democrático que realmente garanta a pluralidade de vozes. Então a gente acaba tendo uma ditadura da liberdade de expressão a favor de determinados grupos.
Como assim?
L. S. V. – Nenhum direito é absoluto. A liberdade de expressão é um valor muito consagrado nas democracias. O que acontece é que, se a própria liberdade acaba sendo usada como veículo para minar o processo democrático, então acaba sendo uma ditadura da liberdade de expressão, porque ela vai justamente beneficiar quem já está no poder e vai tolher a liberdade de expressão de outras pessoas. A ditadura da liberdade de expressão permite que as pessoas que acessam de maneira privilegiada esse direito dominem o cenário político e as políticas públicas. A ditadura da liberdade de expressão nas mãos dos intolerantes vai minar o próprio processo democrático.
Raio-X
Lívia Sant’Anna Vaz – Promotora de Justiça no Ministério Público da Bahia, na área de combate ao racismo e à intolerância religiosa. Mestre em direito pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) e doutora pela Universidade de Lisboa. Autora de “A Justiça É uma Mulher Negra” (ed. Letramento) e “Cotas Raciais” (ed. Jandaíra).
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Isabel Carmi Trajber.
Promotora de Justiça Lívia Maria Santana e Sant’Anna Vaz. Foto: MPBA