A produção agroecológica deve ficar voltada para os minifundistas em suas pequenas áreas e às propriedades de porte um pouco maior que já se engajaram nos processos de transição.
Ao participar da reunião virtual que apresentou e discutiu o relatório do GT do desenvolvimento agrário, dias atrás, tive uma surpresa ao mesmo tempo ótima e preocupante. A surpresa veio das intervenções de cerca de 50 dos 500 participantes da reunião. Todos eles, sem exceção, se manifestaram a favor da promoção da agroecologia no esforço de aumentar a produção nacional de alimentos. Desde que fundei a organização não governamental AS-PTA (Agricultura Familiar e Agroecologia), em 1983, nunca encontrei este tipo de unanimidade, longe disso.
Lideranças dos agricultores do nível local até o nacional, extensionistas, pesquisadores, todos estavam na mesma linha e isto aqueceu o meu coração, mostrando que os quase 40 anos de trabalho tiveram um impacto muito mais amplo do que eu poderia esperar. Mais ainda me encantou o fato de que eu não conhecia a imensa maioria dos que se manifestaram. Como os que puderam intervir eram apenas 10% dos que assistiram ao encontro, pode ser que tenha acontecido uma distorção, com os simpatizantes da agroecologia se inscrevendo antes dos outros.
Mas quero crer que o apoio à agroecologia tenha sido representativo daquele conjunto. E tudo isso ocorreu sem que a entidade que representa o movimento agroecológico, a Articulação Nacional de Agroecologia, ANA, tenha tido participação no GT.
A surpresa preocupante ficou por conta da expectativa criada pelos que intervieram, apontando para a adoção da agroecologia como a forma única para a promoção de uma produção alimentar saudável e sustentável.
Por que preocupante? A meu ver, esta expectativa é irreal. Não basta decidir pela agroecologia nas políticas públicas para ela se transformar em uma prática corrente nos roçados dos agricultores. Temos um exemplo negativo que está sendo explorado pelos defensores da agricultura convencional, a decisão do governo do Sri Lanka de promover a agroecologia por decreto. A precipitação desta decisão levou a um fiasco desmoralizante e ao abandono da proposta. A transição para a agroecologia depende de vários limitantes que não são rapidamente superáveis.
Quais são estes fatores?
As burocracias de Estado tendem a encarar a agroecologia do mesmo modo como funciona a agricultura convencional. Neste sistema, tudo é mais simples. A pesquisa científica desenvolve modelos de produção dirigidos para cada planta ou animal separadamente. Escolhem-se ou desenvolvem-se variedades de plantas e raças de animais, identificam-se suas necessidades em adubos químicos, estudam-se as pragas, doenças e invasoras que podem prejudicá-las para apontar quais agrotóxicos devem ser empregados. Uma vez definido o pacote técnico a ser empregado para produzir arroz, soja, cana etc., e criar galinhas, porcos ou bois, a tarefa passa aos sistemas de extensão rural que o difunde junto aos agricultores e criadores. O sistema financeiro recebe instruções e recursos para distribuir crédito para o uso dos insumos (sementes, adubos, agrotóxicos e maquinário) e compra de animais, sempre cobrando dos produtores e criadores o uso do pacote.
Este modelo de promoção do desenvolvimento não funciona para a produção agroecológica. Para começar, os sistemas agroecológicos, ao contrário dos convencionais, não se dirigem a um produto ou uma espécie animal. São sistemas complexos, combinando várias espécies de plantas e de animais e integrando a biodiversidade natural de cada ecossistema em seus desenhos produtivos. As variedades utilizadas são desenvolvidas pelos próprios produtores e adaptadas às condições ambientais e de solos de cada propriedade. A adubação orgânica pode utilizar insumos externos às propriedades, o que é mais comum em países como os europeus e os norte-americanos onde há um mercado solidamente estabelecido que provê uma ampla variedade de produtos.
Aqui no Brasil, onde este mercado é muito estreito e muito caro, a solução mais comum é os agricultores produzirem seus próprios adubos. A mesma situação ocorre com os produtos de controle biológico, que substituem os agrotóxicos. Na verdade, os próprios desenhos produtivos adotados pela agroecologia tendem a diminuir tanto a demanda de adubos, quanto a de produtos de controle de pragas e invasoras.
Enquanto os sistemas convencionais procuram soluções amplamente generalizáveis, os sistemas agroecológicos buscam soluções específicas para cada agricultor. As melhores combinações de técnicas agroecológicas e o desenho do sistema produtivo permitem uma infinidade de soluções diferenciadas que tem que ser identificadas caso a caso.
Tudo isto é para indicar que não há pacotes técnicos que todos possam adotar sem diferenças. Este paradigma muda as relações na produção do conhecimento adequado para cada caso. Nos sistemas convencionais, um conjunto simples de técnicas é aplicado de maneira uniforme em muitas propriedades. Como já apontamos antes, este conhecimento vem de fora, dos centros de pesquisa públicos ou privados. Na agroecologia o conhecimento é construído coletivamente, combinando o saber de técnicos (científico) com o de cada agricultor (empírico).
As soluções técnicas são adaptadas individualmente para cada caso. Os agricultores são estimulados a experimentar diferentes práticas, cuja origem pode ser o conhecimento tradicional, aquele oriundo da experimentação de cada agricultor e o científico, sempre compartilhadas de modo a produzir uma inteligência coletiva.
A transição para os sistemas agroecológicos se dá paulatinamente e cada agricultor define o seu ritmo, o seu caminho e as práticas que quer adotar. É claro que este processo tende a se acelerar na medida em que avança. Também facilita muito a existência de exemplos demonstrativos destes processos, nos quais os novos aderentes à agroecologia possam se inspirar.
O papel da assistência técnica é fundamental na promoção da transição agroecológica, mas a natureza desta extensão rural é totalmente diferente. O técnico não vem trazer a solução pronta, mas contribuir com o seu conhecimento e facilitar o processo de construção de um novo saber. Ele precisa de conhecimento em técnicas da agroecologia, mas mais ainda ele precisa dominar uma metodologia participativa que redefine o seu próprio papel. O “técnico” não precisa, necessariamente, ser um diplomado de ciências agrárias. Agricultores com boa experiência podem ter este papel de facilitador do processo coletivo de transição. O movimento conhecido como “Campesino a Campesino”, forte na América Central e em Cuba, tem inúmeros exemplos de processos de transição, onde não há participação de diplomados. Entretanto, acredito que eles seriam ainda mais eficientes se pudessem contar também com o conhecimento científico e vários casos comprovam esta ideia.
Espero ter deixado claro que este processo de transição agroecológica é dependente, na melhor das hipóteses, da existência de quadros técnicos bem-preparados, sobretudo metodologicamente, de coletivos de agricultores bem articulados, de recursos para financiar os processos de experimentação e as atividades de socialização do conhecimento dos participantes e, eventualmente, apoio em crédito para a aplicação das soluções identificadas no conjunto de um sistema produtivo ou em um ou mais subsistemas. São processos longos, repito, não se montam do dia para a noite. Por outro lado, a disponibilidade de técnicos preparados para promover este tipo de transição agroecológica é, atualmente, muito baixa e não podemos pensar que, em pouco tempo, será possível formar os 20 a 30 mil técnicos que calculo serem necessários para lidar com a totalidade da agricultura familiar.
Em outras palavras, a agroecologia é o futuro da agricultura aqui e no resto do mundo, mas ela não será capaz de produzir a quantidade de alimentos necessária para providenciar uma dieta correta para o conjunto da nossa população, pelo menos não nos próximos 10 a 20 anos. Sim, ano a ano a participação da agroecologia deverá crescer e a prática mostra que este crescimento vai se acelerando na medida em que as experiencias vão se consolidando.
O ponto de partida é baixo, a meu ver não são mais do que uns 200 mil agricultores e agricultoras que estão engajados atualmente na transição agroecológica, a maioria nas suas primeiras etapas. Se em quatro anos do governo de Lula pudermos apresentar a consolidação avançada da agroecologia nestas 200 mil propriedades, podemos considerar que, nos quatro anos seguintes, este número poderá triplicar.
Enquanto isso, a maior parte da produção de alimentos vai ter que ser responsabilidade de outro tipo de modelo de produção, o convencional. Não fique qualquer dúvida: estou careca de saber e de demonstrar que se trata de um modelo insustentável e com data de validade quase expirada. Mas é o sistema em uso mais amplo no país, quer seja pelo agronegócio de grande escala, quer seja pelo agronegocinho familiar de pequena e média escala.
Como já disse antes, não acredito que algum grande produtor do agronegócio vá abandonar seu lugar na cadeia de produção voltada para as commodities de exportação. No entanto, os dados do censo mostram que a agricultura patronal tem mais peso na produção de alimentos para o mercado interno do que a agricultura familiar. Ficaram para trás os dados do censo de 1985, que indicavam uma participação da agricultura familiar nestes produtos da ordem de 70%. Nos feijões, por exemplo, a agricultura patronal responde por 88,4% da produção do feijão de cor (o mais consumido), 65,6% do feijão fradinho e 58% do feijão preto. Na produção do arroz, a agricultura patronal responde por 90% da produção. Trigo por 81%, ovos por 91%, frangos por 64%, suínos por 65% e bovinos por 69%. Apenas na produção de mandioca a agricultura familiar é dominante, com 70% da produção. E na de leite, com 64%.
Ou seja, para aumentar a oferta de alimentos básicos para os 125 milhões em situação de insegurança alimentar, sobretudo para os 33 milhões que passam fome, vai ser preciso formular políticas de estímulo à agricultura patronal. Estas políticas deverão incluir a definição de preços mínimos garantidos pelo governo, crédito facilitado, isenção de impostos sobre os produtos e compras públicas para recompor estoques reguladores, merenda escolar e outras. Do ponto de vista da qualidade da oferta, o governo deveria promover um programa de manejo integrado de pragas e estimular o uso de controles biológicos para reduzir o uso de agrotóxicos e retirar paulatinamente os subsídios dos venenos.
A agricultura familiar responde por 20 a 30% da produção dos alimentos básicos e tem espaço para aumentar a sua participação. Não tenho ideia da participação dos agricultores familiares na produção de hortaliças e verduras, mas ela tende a ser significativa pela própria natureza desta produção.
Os dados do censo de 2017 mostram que o número de agricultores familiares caiu quase 10% em comparação com o censo de 2006. Em números redondos, foram 416 mil famílias a menos. Isto apesar de terem sido assentados no mesmo período cerca de 350 mil famílias. Isto indica que as políticas de apoio à agricultura familiar e à reforma agrária, durante os governos de Lula e de Dilma, não deram os resultados esperados. Há duas interpretações deste fato inelutável: ou elas não foram suficientes ou elas estavam equivocadas. Opto pela segunda interpretação. As políticas de crédito, seguro e assistência técnica se concentraram na promoção do modelo convencional de produção e isto levou os agricultores familiares a se endividarem e, nos piores casos, a perder suas terras.
O impacto sobre a produção orgânica foi ainda pior. Entre os dois últimos censos agrícolas, o número de produtores caiu de 91 mil para 65 mil, uma perda de quase 30%. Os censos só apontam para os produtores orgânicos certificados e ignoram os produtores agroecológicos que não procuraram a certificação, mas, minha estimativa pessoal é que o número destes últimos ficou estável entre os mais avançados na transição e com um aumento dos que deram início a este processo, talvez uns 100 a 120 mil produtores.
Os dados sobre a distribuição de terras entre os agricultores familiares são controvertidos e sujeitos a correções. O estudo mais detalhado que encontrei (não necessariamente o mais correto), com os dados do censo de 2017, aponta para a existência de aproximadamente 2 milhões de minifundistas, pouco mais da metade do total de agricultores familiares.
A definição de minifúndio é a propriedade com área menor do que um módulo fiscal. O tamanho deste módulo é definido por município e varia entre 5 e 110 hectares. O menor valor está mais presente nas regiões sul e sudeste e o maior na região norte. Ele indica, teoricamente, a área mínima para a viabilização de uma propriedade agropecuária. A definição do módulo fiscal é bem questionável, pois ela ignora a possibilidade de uma propriedade agroecológica e mesmo de uma convencional que adote uma produção adequada para as suas dimensões. Para dar um exemplo, um agricultor com apenas um hectare pode adotar uma produção de hortaliças ou outra produção intensiva que alcance bons preços no mercado. Um hectare de hortaliças pode dar uma renda superior a 5 hectares de uma monocultura de soja ou de feijão.
Os minifúndios com menos de dois hectares de área disponível, a metade do menor módulo fiscal, sendo que nem toda esta área é cultivável, somam 1.153.000 agricultores familiares. Com ou sem agroecologia, a contribuição destes agricultores para a produção de alimentos para o mercado é e será mínima ou nula. No entanto, eles podem produzir para o abastecimento da família. Com uma correta política de apoio este grupo pode se tornar autossuficiente em alimentos, em quantidade e diversidade. Sabendo-se que existem 800 mil agricultores familiares em situação de insegurança alimentar grave e 600 mil em moderada, um programa dirigido à promoção da segurança alimentar destas famílias já teria um impacto importante no combate à fome e à subnutrição.
Experiências em agroecologia mostram que, mesmo em regiões ambientalmente difíceis como o nordeste semiárido, a alimentação de uma família pode ser garantida com até meio hectare de cultivos variados, desde que seja assegurada a água de irrigação, usando as chamadas barragens subterrâneas ou as cisternas “calçadão”. A primeira destas infraestruturas foi desenvolvida e aplicada pelas ONGs de ATER agroecológica e a segunda pela Embrapa. Áreas irrigadas de 0,2 a 0,5 hectares permitem a autossuficiência alimentar, enquanto as maiores permitem também a produção de excedentes para os mercados locais.
O principal investimento neste programa seria nas infraestruturas hídricas, na assistência técnica, no financiamento dos processos de aprendizado e experimentação coletiva dos agricultores e na compra de sementes de hortaliças e verduras. Seria também importante um programa de educação alimentar e até de culinária, já que o consumo de hortaliças não faz parte da cultura destes agricultores familiares tradicionais.
Os agricultores familiares com área entre 2 e 5 hectares (817 mil), também classificados entre os minifundistas, têm um potencial maior de produção de excedentes para o mercado, mas também estão entre os que necessitam melhorar o autoabastecimento. A sua contribuição para os mercados locais pode ser significativa.
Uma produção de maior impacto deve ficar dependendo dos produtores com áreas entre 10 e 100 hectares (pouco menos de 2 milhões de famílias). Ocorre que muitos destes produtores, sobretudo os que se voltaram para o agronegocinho, estão ligados a cadeias produtivas de exportação (soja e milho), sobretudo na região sul. Outros estão vinculados à produção de fumo e à criação de aves e suínos vinculados às indústrias de processamento em regime de integração. E, entre os que têm áreas maiores, muitos são os que se dedicam à criação de bovinos. Atrair estes produtores para a produção de alimentos vai ser fundamental para garantir uma rápida resposta ao aumento da demanda provocado pelo programa Bolsa Família incrementado.
Pela experiência de anos de assistência ao desenvolvimento agroecológico acredito que não se pode esperar um abandono expedito das práticas convencionais. A melhor hipótese é a adoção paulatina da substituição do uso de insumos químicos pelos insumos orgânicos, mas para que isso seja possível, o governo vai ter que estimular em larga escala a produção de adubos orgânicos a partir da compostagem do lodo de esgoto e do lixo. É algo a ser estimulado de forma descentralizada nos municípios, com créditos e facilitação do escoamento.
Vai ser igualmente fundamental o estímulo à produção em maior escala dos produtos biológicos de controle de pragas e/ou, como se faz em Cuba, a multiplicação local de inimigos naturais das pragas, a serem liberados nas plantações. O apoio à mecanização de pequeno porte também vai ser essencial para aumentar a produção, já que existe uma forte diminuição da disponibilidade de trabalho na agricultura familiar. Crédito facilitado, compras governamentais e preços mínimos atraentes, seguro da produção e assistência técnica são as políticas chave para este público. No que se refere à assistência técnica, considero que uma reciclagem dos agrônomos e técnicos convencionais para adotarem as orientações da substituição de insumos é algo menos complexo do que formá-los nos paradigmas da agroecologia e é viável no curto prazo. Vai ser importante a colaboração dos governos estaduais e suas Empresas de Assistência Técnica e Extensão Rural.
A produção agroecológica deve ficar voltada para os minifundistas em suas pequenas áreas e às propriedades de porte um pouco maior que já se engajaram nos processos de transição. Para estes defendo a criação de um programa de fortalecimento da transição agroecológica. Este programa deve prever fundos para projetos de desenvolvimento agroecológico que permitam financiar fundos rotativos de crédito não bancário, fomento da experimentação dos agricultores, atividades coletivas de trocas de experiência, assistência técnica e compras governamentais (PAA e PNAE).
Já escrevi em outro artigo, que a produção voltada à autossuficiência alimentar deve ser dirigida para as mulheres agricultoras e orientada por agrônomas e técnicas agrícolas. E receber recursos para a construção de infraestruturas hídricas e outras benfeitorias necessárias.
A formação de técnicos de ATER agroecológica deve ser fortalecida, promovendo a relação entre as universidades agrárias, os serviços de ATER estatal e não governamental e as entidades dos agricultores e agricultoras familiares.
Espero que meus compas defensores da agroecologia entendam os limites da situação em que estamos e não insistam em querer orientar todas as políticas públicas voltadas para a agricultura em políticas agroecológicas, nos próximos quatro anos. Infelizmente, as tentativas anteriores não deram certo e insistir vai ser um desastre.
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*Jean Marc von der Weid é ex-presidente da UNE (1969-71). Fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA).
Plantação de hortaliças no Sítio Demétria – AABD (Associação de Agricultores Agroecológicos e Biodinâmicos da Serra do Rola Moça). Município: Ibirité, MG. Foto: Alenice Baeta, Dezembro de 2019