Luiz Felipe Stevanim, Revista Radis, na Agência Fiocruz
Uma nuvem tóxica se espalhou pela comunidade quilombola de Jejum na tarde do dia 23 de março de 2021, em Poconé, município pantaneiro a 100 km de Cuiabá. Vizinhos a uma plantação de soja, os moradores começaram a reclamar de coceira nos olhos, náusea e dores de cabeça e garganta. Máquinas iniciavam a colheita do grão, lançando no ar uma camada densa de pó misturada ao dessecante, produto químico aplicado, dias antes, para acelerar a secagem da soja. A tempestade de poeira invadiu as casas, recobriu o solo e contaminou caixas d’água, poços artesianos e as hortas dos quintais.
Com sintomas de intoxicação aguda por agrotóxico, as famílias atingidas precisaram deixar suas casas para não continuarem expostas ao veneno disperso no ar. No dia seguinte, acionaram a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), no Mato Grosso, e a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), que fizeram uma denúncia ao Ministério Público do Trabalho (MPT). A pulverização ao lado da comunidade de Jejum havia ocorrido a poucos metros de distância, em desacordo com a norma estadual que determina que a aplicação de agrotóxicos deve respeitar a distância mínima de 90 metros de casas, fontes de águas e estradas.
“Quem está pulverizando sabe que tem gente morando ali, sabe que tem famílias que serão expostas”, afirma Franciléia Paula, engenheira agrônoma e educadora da Fase-MT. O episódio revela o racismo ambiental que anda junto com os impactos dos agrotóxicos sobre comunidades rurais, na visão de Fran, como é conhecida a quilombola que também integra a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e é vice-presidenta da Regional Centro-Oeste da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA). Mesmo que não utilizem veneno em suas plantações, quilombolas, indígenas e pequenos agricultores são os mais afetados pelo avanço do agronegócio em áreas próximas a seus territórios.
Ela conta que as denúncias feitas pelas comunidades quilombolas de Mato Grosso “foram totalmente invisibilizadas pelo poder público”. “Era como se a vida dessas comunidades pouco importasse”, aponta, ao ressaltar que não bastava a evidência de intoxicação das famílias. “Esse episódio mostrou como o poder público se colocou omisso e a importância do Ministério Público para dar o apoio à nossa segurança, porque estávamos denunciando produtores de soja, o que não é fácil de se fazer em um país que assassina as pessoas que lutam por seus direitos”, pontua. Com a denúncia, um inquérito civil foi aberto e o Instituto de Defesa Agropecuária do Mato Grosso (Indea) autuou o fazendeiro responsável, mas ainda não houve reparação para as vítimas, que incluem crianças, adultos e idosos.
O episódio ocorrido na comunidade de Jejum, em Mato Grosso, é um dos 30 casos de populações atingidas por agrotóxicos reunidos no dossiê Agrotóxicos e Violações de Direitos Humanos no Brasil, divulgado em setembro de 2022 pela organização Terra de Direitos e pela Campanha Permanente contra os Agrotóxicos. Cursos de água, moradias e plantações são contaminados pelo veneno disperso no ar – e mesmo com os impactos no ambiente e na saúde, trabalhadores rurais e populações indígenas e quilombolas sofrem com ameaças e encontram dificuldade para denunciar e barrar esse tipo de agressão, como revela o relatório.
Dos 30 casos analisados, apenas três tiveram reparação parcial para as vítimas; os outros 27 seguem sem qualquer tipo de resposta a quem teve sua vida e seu território atingidos. As violações coletivas mais recorrentes, aponta o dossiê, são provocadas pela pulverização aérea, seguida de pulverização terrestre, exposição em ambiente de trabalho e despejo inadequado. “Na imensa maioria dos casos de violações coletivas causadas por agrotóxicos, não há a responsabilização dos agentes violadores e a reparação das vítimas”, afirma à Radis uma das autoras do estudo, Naiara Bittencourt, advogada popular na Terra de Direitos e integrante do Grupo de Trabalho (GT) em Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
A exposição forçada a agrotóxicos é uma das faces do agronegócio baseado no desmatamento e na agressão à saúde de comunidades inteiras que vivem em uma relação de equilíbrio com a terra. “Em 2022, também se silenciam as vítimas ou os inocentes violados em seus corpos e territórios pelo uso de agrotóxicos, especialmente comunidades camponesas, de agricultores familiares, tradicionais e povos indígenas”, afirma o dossiê. Invisibilizadas pelo poder público, Radis mostra como essas comunidades buscam alternativas para sobreviver ao avanço do veneno e para construir outro modelo de agricultura.
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Imagem: Divulgação/O Progresso