Saúde da mulher: a necessária aposta na integralidade

Pesquisadora Ana Costa, da Abrasco, defende que ministério abandone políticas verticais, focadas apenas na maternidade. É preciso expandir o cuidado aos múltiplos âmbitos da vida – e as Redes de Atenção Integral podem ser ótimo começo

Por Gabriel Brito, em Outra Saúde

O ataque do bolsonarismo às mulheres não foi discursivo, e sim real: elas morreram mais em seu governo. Certamente o discurso antiaborto (e aqui entra a responsabilidade dos líderes religiosos que o apoiaram) tem sua contribuição. Após anunciar a volta de um SUS a serviço de seus parâmetros fundadores e respeitoso dos direitos humanos, a ministra da Saúde Nísia Trindade de Lima publicou o primeiro revogaço de medidas acumuladas no governo Bolsonaro. A mais chamativa, sem dúvidas, foi a portaria 2561/2020, que impunha dificuldades de acesso ao aborto em casos permitidos em lei.

Mas o desmonte sistemático de instrumentos como as Equipes de Saúde da Família, o fim do programa Mais Médicos e o desfinanciamento crônico também são parte da trágica obra. Ao analisar mais criticamente o conjunto, conclui-se que diversos aspectos do direito à saúde foram enfraquecidos. Dessa forma, o debate pela recuperação do SUS passa pelos fundamentos do sistema, desde sua criação, como a universalidade e a integralidade.

“Urge alargar o consenso quanto à complexidade das redes de saúde: não é desejável fortalecer a ideia das redes de atenção primária como alguns advogam. Redes, por conceito, envolvem diversos pontos assistenciais com tecnologias e funções distintas e complementares. Falando claramente, nas Redes de Saúde estão dispostos serviços de atenção básica, ambulatórios de especialidades, serviços de pronto atendimento, de pronto socorro, hospitais gerais, hospitais especializados, serviços laboratoriais e outros exames complementares etc. Uma pessoa deve dispor de acesso garantido a todos os serviços de saúde”, explicou Ana Costa, médica, pesquisadora da Escola Superior de Ciências da Saúde, no Distrito Federal, e coordenadora do Grupo Temático Gênero e Saúde da Abrasco, ao Outra Saúde.

Sobre as políticas voltadas às mulheres, e pelo contexto mencionado no início, a ministra Nísia falou em recuperar a Rede Cegonha. No entanto, na visão de Ana Costa políticas como essa não são bons exemplos. Ela explica que a Rede Cegonha, criada no governo Dilma, pode deixar de lado outras importantes necessidades.

“Particularmente, a Rede Cegonha na sua origem já é uma estratégia criticada porque se distancia do que o Brasil concebeu ainda nos anos 1980 para a saúde da mulher, uma política pautada na integralidade. Veja, essa política criticava os antigos programas verticais de saúde materno-infantil. Porque tais programas reduziam a mulher ao atendimento pré-natal, ao parto e quando muito ao puerpério. Mas as demandas de saúde da mulher, suas necessidades, nas diferentes fases de vida, envolvem várias outras ações”.

Não se trata, obviamente, de negligenciar a maternidade, menos ainda num contexto onde a mortalidade de gestantes cresceu. Mas Ana Costa detalha que a segmentação excessiva tende a concentrar recursos e deixar num segundo plano outras necessidades, afinal, “a maternidade é só uma fase da vida”.

Trata-se de um grande desafio, pois, sob Bolsonaro, o desmonte foi amplo, geral e irrestrito. Como explica Ana, também professora da Fiocruz e ex-funcionária do ministério, tudo que pudesse beneficiar o mercado era feito. E isso reforça a necessidade de se focar nas chamadas Redes de Atenção Integral, desenvolvidas pelo próprio governo Lula, mais notadamente em seu segundo mandato. Nesse sentido, avançar na relação com estados e municípios será decisivo.

“Devemos problematizar a transformação do mecanismo de repasse financeiro aos municípios. Os incentivos financeiros de hoje reproduzem os velhos programas verticais que impedem a integralidade na ponta, onde encontram o usuário-cidadão que chega inteiro e é fragmentado pelos serviços de saúde. O município deve receber recursos suficientes para atender de forma adequada, oportuna e com qualidade a sua população. E comprometer-se com metas sanitárias! Ao analisar estes crônicos, incômodos e persistentes problemas, talvez o momento seja adequado para a implementação de um modelo de políticas transversais para o SUS”.

Fique com a entrevista.

Em sua primeira coletiva, Nísia falou que o SUS voltaria a atender o povo brasileiro de acordo com seus princípios universalistas e sem agir em desacordo com direitos humanos. Também falou em recuperar a Rede Cegonha. Dias depois, no chamado revogaço, chamou atenção a queda da portaria que restringia o direito ao aborto. Como avalia as sinalizações iniciais da ministra Nísia Trindade em relação à saúde da mulher?

Eu acho que a ministra tem sensibilidade suficiente pra escutar os diferentes setores da sociedade. Esse é um debate corajoso, no qual seria importante o governo avançar. Lula avançou muito quando criou as Redes de Atenção Integral à Saúde, a RAS. Toda sua concepção, comandada pelo ministro José Gomes Temporão, teve uma linha de não favorecer o verticalismo. Movimento que o governo Lula, no seu primeiro e segundo mandatos, fez pra mudar os mecanismos de financiamento, pensar a questão da integração e dos serviços, as políticas transversais criadas, o conjunto de políticas transversais que não eram dotadas de orçamento próprio, mas se propunham ou se instituíam pela via das metas sanitárias, como a política nacional de saúde integral da população negra, a política de saúde da população do campo e das florestas, da população LGBTQIA+, enfim, esse conjunto que chamamos de política de promoção da equidade.

Tive a honra de coordenar tais políticas quando dirigia um departamento do Ministério da Saúde que inaugurava essa forma de políticas transversais, que caíam como um manto sobre o SUS e não eram exclusivas, um caixotinho no organograma do Ministério da Saúde. Estavam ali sustentadas por propostas de metas sanitárias, às quais os estados e municípios deveriam aderir, já que o SUS é um sistema nacional, um conjunto de instituições estaduais, municipais e federais, cuja coordenação política é do Ministério da Saúde.

Portanto, as políticas transversais devem ser objetos de muito respeito e valorização pelo atual governo, seguindo a linha do próprio governo Lula. Foi ali, em 2008, 2009, que Lula criou a Rede de Atenção Integral. O Lula não criou rede temática, desse ou daquele grupo de doenças. Nesse sentido, penso que a ministra Nísia tem se mostrado uma pessoa, e tem este perfil na sua biografia, de escuta, muito aberta. Ela certamente realizará esse debate e recolocará a política de organização de serviços e de redes em prática de forma coerente com o segundo governo Lula e do ministro José Gomes Temporão, quando se criou a RAS.

Esse é o ponto de partida pra se pensar a organização dos serviços e a RAS da população. Claro que precisamos certificar a oferta de assistência especializada, intensificar o pronto atendimento, a hospitalização, qualificar e ampliar, sem dúvida. Mas tudo isso em um contexto de Rede de Atenção à Saúde. A pessoa que chega no posto de saúde ou recebe a visita de uma Equipe de Saúde da Família tem de ter a garantia de todas as necessidades, seja de um especialista, de um pronto atendimento, de um exame sofisticado, uma internação pra um transplante de fígado…

É disso que trata a Rede de Atenção Integral, um rol de complexidades, de diversidade de serviços à disposição das pessoas. Isso que chamamos de acesso universal. Não é só acesso a um nível específico. A sociedade precisa de consciência, é importante que os municípios se ocupem de oferecer serviços atendendo às necessidades das mulheres e evitem o fatiamento, que normalmente não é só composto de orientações técnicas, mas também destinação de recursos. Não tem sentido uma determinação direcionada do ministério, pois criam-se situações artificializadas para contextos de saúde. Precisamos de uma consolidação da integralidade de todas as demandas.

A situação sanitária brasileira, com todas as sequelas da pandemia e a sobrecarga que deve se manifestar no sistema de saúde, tornam a questão das redes integrais ainda mais estratégica?

Urge alargar o consenso quanto à complexidade das redes de saúde: não é desejável fortalecer a ideia das redes de atenção primária como alguns advogam. Redes, por conceito, envolvem diversos pontos assistenciais com tecnologias e funções distintas e complementares para dar conta das diversas demandas e necessidades das pessoas. Falando claramente, nas Redes de Saúde estão dispostos serviços de atenção básica, ambulatórios de especialidades, serviços de pronto atendimento, de pronto socorro, hospitais gerais, hospitais especializados, serviços laboratoriais e outros exames complementares etc. Uma pessoa deve dispor de acesso garantido a todos os serviços de saúde.

Uma das questões que, de forma pertinente, o presidente Lula trouxe no debate eleitoral foi a redução de filas para “especialistas”. Fazer isso sem uma rede de atenção à saúde de verdade é perder a perspectiva da integralidade do cuidado de saúde.

Há formas de fortalecer acesso a especialistas a partir da consolidação das RAS. Sem RAS não consolidaremos a atenção primária ou básica e corremos o risco de nos desviar ainda mais do modelo de saúde integral, resolutivo e de qualidade preconizado para o SUS pela Constituição Federal. E não construiremos redes integrais sem um comando único de redes assistenciais. Nessa linha, nossa atenção se volta aos mecanismos de integração necessários entre as secretarias de atenção básica e a especializada.

No âmbito da saúde da mulher, como recebeu o discurso da ministra Nísia Trindade de recuperar a Rede Cegonha, dentre outras políticas públicas ligadas ao SUS desfinanciadas ou desmanteladas ao longo do governo Bolsonaro?

É importante falar sobre como, idealmente, seria organizado e orientado o próprio processo de assistência à saúde dentro do SUS. É muito importante que esse processo de assistência tenha como referência principal as necessidades e as demandas das pessoas, e não as concepções tecnocráticas ou corporativas dos profissionais do serviço de saúde.

Tal demanda não pode ser compartimentada, porque a doença e a necessidade de assistência médica têm características que não se podem dividir, porque ora a pessoa precisa de uma coisa, ora de outra. E o serviço tem que dar conta de todas as demandas. Em função disso, desde que nós criamos o SUS temos um debate vivo, importante, de que os programas e as políticas que emergem do ministério da Saúde, órgão central de coordenação do SUS, não sejam verticalizadas até a base, até os municípios, pois estes seriam atropelados; atrapalhariam o serviço a se organizar de acordo com as necessidades da população. Como mostram estudos e evidências, é incompatível com o próprio princípio da integralidade do sistema.

Inicialmente, devemos debater a existência de políticas e redes temáticas, que são orientações exclusivas para funcionamento e atendimento de pessoas de determinada parcela da população. Tem outros mecanismos de fazer orientação sem que isso envolva repasses e uma decorrente distribuição desigual de recursos a um ou outro grupo proporcional. É importante pensar, organizar e propor políticas e mecanismos de funcionamento do SUS que sejam promotores da integralidade, da equidade, da universalidade, de sorte que todos os grupos populacionais tenham chances iguais no sistema de saúde.

Particularmente, a Rede Cegonha na sua origem já é uma estratégia criticada porque se distancia do que o Brasil concebeu ainda nos anos 80 para a saúde da mulher, uma política pautada na integralidade. Veja, essa política criticava os antigos programas verticais de saúde materno-infantil. Porque esses programas reduziam a mulher ao atendimento pré-natal, ao parto e quando muito ao puerpério. Mas as demandas de saúde da mulher, suas necessidades, nas diferentes fases de vida, envolvem várias outras ações que podemos aqui enumerar: o controle de doenças infecciosas, saúde mental, violência, planejamento familiar, planejamento reprodutivo, saúde reprodutiva, câncer, controle de doenças crônicas do tipo diabete ou hipertensão, atendimento ao parto, doenças relacionadas ao trabalho, que na mulher assumem uma situação particular…

Portanto, são múltiplos problemas de saúde. Não tem sentido eleger como prioridade apenas a função da maternidade, por mais nobre e importante que seja. Mas não é a única demanda de saúde das mulheres. A maternidade pode ser muito importante em uma fase da vida, mas não é a única fase da vida. Assim, em função dessa crítica aos velhos problemas materno-infantis surgiu, em 1983, a política de atenção integral à saúde das mulheres.

Depois do primeiro governo Lula, ela foi atualizada e incorporou-se um conjunto mais complexo de demandas, que estavam postas pelas mulheres, com conhecimento e estudos. Essa política integral tem de ser a grande orientação do Sistema Único de Saúde, que é a política nacional de saúde integral. Não se pode fatiá-la e colocar uma prioridade, porque todas as situações de saúde que geram demanda de necessidade tem de ser prioridade. Não se pode dar prioridade apenas ao combate à gravidez de risco ou mortalidade materna, e deixar de lado o câncer ginecológico, por exemplo. Não tem sentido. As mulheres já não podem mais ser fatiadas em demandas supostamente mais importantes que outras. Todas são importantes e os serviços têm de se organizar pra dar atenção à saúde e a todas as necessidades.

A Rede Cegonha, portanto, seria um ponto negativo de inflexão em uma política de saúde integral mais ampla?

No governo Dilma se fez a opção por uma priorização do ciclo gravídico-puerperal, e apareceu a chamada Rede Cegonha, inspirada num programa do Cabral, governador do Rio de Janeiro na época, que tinha esse mesmo nome e era voltado à redução da mortalidade materna. Nós queremos que as mulheres não morram de morte materna, mas também não morram de violência, de câncer, de hipertensão arterial, de infarto, de diabetes. Queremos que tenham vida plena e isso necessita de assistência integral. Mas houve o fatiamento da assistência das mulheres através da chamada Rede Cegonha.

Ela representa uma intensificação de prioridades e recursos ao atendimento ao pré-natal, parto e puerpério. Não que não fosse importante, mas não pode ser só isso. Depois, quando Dilma propôs, nós – médicas, feministas, sociedade civil, estudiosos da área de saúde da mulher, sanitaristas – fizemos muitas críticas, afirmamos que significava retrocesso do ponto de vista da organização do serviço de saúde. Além disso, foi escolhido um nome que nos deixava muito desconfortáveis. Chamar esse tipo de assistência de Rede Cegonha promovia uma infantilização do nome de um programa destinado a mulheres, um desconforto enorme às mulheres que estávamos em franco caminho de produção, ampliação e plenitude de direitos. Na época, várias de nós, brasileiras de pensamento crítico, tentamos levar à presidência esse desconforto, até escrevi artigo com Estela Aquino no jornal O Globo sobre o assunto, por exemplo.

Estivemos muito ativas, mas Dilma teve uma posição bastante indefectível e manteve o nome. No máximo, assumiu um compromisso de ampliar um pouco as atividades de assistência da Rede Cegonha e deu um pouco mais de consequência a essa rede, mas sem eliminar o gravíssimo fatiamento e uma priorização própria a um conjunto de demandas, e não à totalidade das demandas das mulheres.

É o pano de fundo da crítica, num momento de grandes expectativas de avanços e limpeza dos erros e retrocessos do governo Bolsonaro, o que o governo tem sido muito ativo em eliminar. Mas também devemos refletir criticamente sobre o que erramos, como vem fazendo Lula, que de forma muito honesta elege hoje a participação popular e a democracia como centrais em seu terceiro mandato e reconhece o que foi fragilizado em relação aos primeiros governos petistas.

Portanto, espelhando-se no exemplo de Lula, repensar a estratégia da Rede Cegonha seria muito desejável, daria um significado de avançar rumo à integralidade, a uma retomada da política nacional de atenção integral à saúde da mulher, construção de metas sanitárias que pudessem estar associadas a essa política e questões não mais toleráveis. Não é tolerável, por exemplo, a gravíssima situação de disponibilidade dos aparelhos de mamografia no Brasil. A chance de uma mulher do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste realizar uma mamografia é muito menor do que aquelas das regiões Sudeste e Sul. Isso é intolerável do ponto de vista da justiça sanitária. É intolerável tantas lacunas de hospitalização de doenças que requerem internações e cirurgias entre essas regiões. Por isso é importante definir metas sanitárias urgentes, que o SUS tem de perseguir.

É importante evitar a morte materna, claro, precisamos de estratégias, construir metas sanitárias a serem acordadas entre estados e municípios e avançar em relação ao pacto social do SUS. No entanto, na medida em que nós comecemos a fatiar, a criar programinha disso, rede temática daquilo, não teremos na ponta – isto é, nos estados e municípios – o acesso a uma consolidação daquilo que chamamos de saúde integral das mulheres.

Seria, portanto, uma limitação do próprio caráter universalista do sistema.

Significa que os municípios captam recursos que são destinados a esses fragmentos de assistência, hipertrofiam a sua vocação de oferta de serviços para aquilo que tem dinheiro e o restante das mulheres ficam descobertas. O próprio serviço de saúde do município não se consolida dentro dos princípios do Sistema Único de Saúde, na medida em que abdica de um processo de organizar e obedecer a integralidade.

São todos os desafios que estão postos e nesse sentido me parece pertinente abrir o debate na sociedade, no interior do SUS, entre os gestores do SUS, encabeçado pelo Ministério da Saúde, com participação dos conselhos, dos movimentos sociais, pra que a gente possa buscar uma resposta.

O SUS não comporta mais esse fracionamento de orientações assistenciais. É importante uma abordagem especial de determinada metodologia e problemas sanitários. Mas existem outros caminhos, não vamos retomar a verticalização programática, pois é caminho já superado e já devidamente avaliado, que não se mostrou favorável ao processo de organização do serviço, coerente com a integralidade, a universalidade e a justiça sanitária.

Quando você comentou o revogaço iniciais de Nísia ao Outra Saúde, mencionou que para além da portaria do aborto, de grande repercussão midiática e social, o governo Bolsonaro e seus ministros operaram sistematicamente contra o conjunto de direitos da mulher na saúde. Como foi isso e qual a síntese que você faz sobre o governo anterior no âmbito da saúde da mulher?

A questão do aborto é bem dramática. Há alguns casos permissivos no Brasil, como o risco de vida materna, que dá à mulher direito à realização do chamado aborto terapêutico, o aborto médico. Outro caso é em relação às mulheres violentadas, o que se permitia desde o código civil da década de 40 (sabemos que essa concessão se deveu mais à ideia de proteção da honra do marido do que a uma questão de liberdade da mulher. De qualquer maneira, abriu-se a concessão). Mas ao longo dos anos e das décadas, as mulheres não tinham acesso a essa interrupção da gravidez, apesar da permissão legal. No final dos anos 80, depois de muitas lutas das feministas, o SUS começa a oferecer serviços de aborto legal. Inicialmente, em São Paulo sob a prefeitura de Erundina. Já no governo FHC, chega ao SUS de forma nacional. Quer dizer, havia a permissão legal, mas não havia acesso real ao serviço. Retrato de uma disputa histórica na qual o Estado não queria se responsabilizar pelo direito das mulheres.

No final dos anos 90 em diante, começa a presença evangélica na política, cuja pauta principal é o combate ao aborto e sua legalização. Na cabeça dessas lideranças, Bolsonaro sempre foi uma liderança, sempre representou no Congresso a luta contra os direitos das mulheres. Quando Bolsonaro assumiu o poder, eles tiraram imediatamente as políticas permissivas ao aborto, depois de várias e várias tentativas, inclusive nos governos chamados populares de Lula e Dilma, e suas normas técnicas pra orientar a realização de aborto. Nós não podemos esquecer que essa bancada, pra negociar os seus votos, condenava o uso do termo gênero, por exemplo. Tínhamos de tirar de documentos oficiais do ministério da Saúde a palavra gênero porque a bancada evangélica, a bancada antiaborto, exigia, com sua noção de “ideologia de gênero”, algo que não existe conceitualmente.

Assim, era previsível que essas políticas fossem varridas do SUS. E foi o que aconteceu. Quer dizer, um retrocesso em questões que associavam gênero, aborto, direitos sexuais e reprodutivos, diversidades sexual. Do ponto de vista do direito à saúde propriamente dito, que a Constituição nos garante, o governo Bolsonaro atrasou muito também, porque esse bloco não estava só na defesa da pauta de costumes. Havia também a defesa do mercado. Fortalecimento do SUS, a melhoria do financiamento, a garantia de qualidade, universalidade, como a Constituição reza, não eram do interesse deles.

Tudo que pudesse fragilizar o SUS e ampliar o espaço do mercado era feito. Não podemos esquecer, é emblemático: quando a crise se abateu sobre o governo Dilma, Eduardo Cunha colocou um jabuti dentro de um decreto que seria sancionado pela presidenta, que permitia a entrada de capital estrangeiro na saúde. Isso passou pelo Congresso Nacional, mesmo com toda uma crítica que fizemos sobre a gravidade em relação à consolidação do SUS. Hoje nós temos o impacto negativo dentro da saúde brasileira, um capital financeiro predatório, que já impacta no trabalho dos profissionais de saúde, já impacta na oferta de planos e serviços privados de saúde.

Isso foi trazido por aquele grupo. Eduardo Cunha tem origem no mesmo grupo de Bolsonaro e ambos visavam favorecer explicitamente o mercado. Ainda no início do governo Temer, com o ministro Ricardo Barros, se propôs os planos populares de saúde, que significariam o enfraquecimento completo do SUS, além de iniciativas de criar mecanismos privados de gestão do SUS. Foi nesse sentido que caminhou o governo Bolsonaro na saúde, de uma forma mais geral.

É muito emblemático o caso da saúde da mulher. A política de saúde integral, conquistada desde os anos 80 pelos movimentos feministas, advoga pela integralidade das demandas e necessidades em saúde e não apenas o privilegiamento das funções reprodutivas que acabam reduzidas à maternidade. Bolsonaro fez ressurgir, na sua saga destrutiva, o velho “materno-infantil”, lamentavelmente. E pior, restrito à atenção básica, como se o problema do acesso e da qualidade do parto não tivesse enorme importância!

Em qual direção gostaria de ver o ministério da Saúde caminhar nos próximos tempos?

Para ousar, como os tempos exigem, é necessário mudanças que apontem novas culturas, práticas e operações transversais demandantes de processos robustos de articulação intrassetorial, ou seja, de todas as estruturas do Ministério da Saúde.

Por outro lado, precisamos dar concretude à ação intersetorial, envolver políticas e programas de saúde dos diversos ministérios responsáveis por real impacto na condição de saúde. A luta do Movimento Sanitário, que conquistou o direito à saúde, é apoiada no conceito ampliado de saúde, no processo de determinação social da saúde.

Devemos problematizar a transformação de mecanismo de repasse financeiro aos municípios. Os incentivos financeiros de hoje reproduzem os velhos programas verticais que impedem a integralidade na ponta, onde encontram o usuário-cidadão que chega inteiro e é fragmentado pelos serviços de saúde.

O município deve receber recursos suficientes para atender de forma adequada, oportuna e com qualidade a sua população. E comprometer-se com metas sanitárias! Somos um sistema cujas responsabilidades federativas são claras.

Ao analisar estes crônicos, incômodos e persistentes problemas, talvez o momento seja adequado para a implementação de um modelo de políticas transversais para o SUS, articulando responsabilidades e atribuições das diversas áreas e setores do Ministério. Esse modelo institucional tem potencial de repercutir positivamente nos órgãos gestores estaduais e municipais e no modus operandi na gestão do SUS.

O futuro exige, reafirmo, que a saúde das mulheres seja definitivamente desvinculada do reducionista conceito de materno-infantil, que não seja encarcerada apenas na atenção primária, já que requer tecnologias assistenciais e de vigilância à saúde distintas. Requer formação de profissionais e produção de pesquisa e conhecimento. Requer mecanismos participativos de interlocução com movimentos sociais, academia…

Reforçando a abordagem horizontal fundada nas articulações intrassetoriais, tomo como exemplo a saúde de grupos especiais ou mais vulneráveis, adotando estratégias e olhares de interseccionais de raça, gênero, classe social etc. Nestes grupos estariam mulheres, população LGBTQIA+, população negra, população em situação de rua, ribeirinhos e demais povos do campo e das florestas, ciganos etc. O processo de articulação deverá mobilizar não apenas os setores internos do ministério da Saúde (intrassetorial) como também os demais setores do governo (intersetoriais) que tanto defendemos como estratégia para incidir sobre o processo da determinação social da saúde.

Espero que isso tudo que falamos aqui seja refletido pelos gestores de saúde. É uma preocupação oportuna de todos nós da saúde coletiva.

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