Ouro e soja: produtos amarelados, tipo exportação, cujos destinos se entrecruzam nos continentes europeu e asiático, violando direitos de milhares de famílias indígenas brasileiras pelo caminho
O Brasil e mundo continuam estarrecidos com as imagens de crianças e adultos Yanomami esquálidos, sem músculos e sem saúde. Muitos sem a própria vida. Resultado da invasão, do apossamento e da exploração ilegal e criminosa da terra tradicional desse povo por meio da garimpagem em larga escala, empresarialmente financiada e governamentalmente protegida.
Como revelado pelo relatório Violência contra os povos indígenas no Brasil – dados de 2021, divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o que ocorre com o povo Yanomami não é um caso isolado. De acordo com o estudo, foram registrados, naquele ano, 305 casos de violência com invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio em 225 terras indígenas.
Paradoxalmente, o direito fundamental dos povos indígenas ao usufruto exclusivo de suas terras tradicionalmente ocupadas é devidamente registrado, reconhecido e protegido nos termos do artigo 231 da Carta Magna do Estado brasileiro. Este, ainda de acordo com o artigo 231, tem o dever de proteger tais terras, que são bens da União, conforme apregoa o artigo 20 da mesma Constituição.
Se na região norte do Brasil a mineração do ouro é o principal vetor de invasão e exploração ilegal das terras indígenas, na região sul o mecanismo criminoso que se destaca são os arrendamentos para produção de soja.
Nos últimos dias, vieram a público informações sobre a ocorrência de casos de desnutrição e até mortes de crianças na Terra Indígena (TI) Guarita, tradicionalmente ocupada pelo povo Kaingang, no Rio Grande do Sul. Para além da omissão relativa ao atendimento à saúde, são de conhecimento notório os conflitos decorrentes do uso e exploração ilegal da terra em questão por não indígenas da região, especialmente com a produção de soja.
A exemplo do que ocorre com os Yanomami em razão da exploração garimpeira, famílias Kaingang, em função do arrendamento de suas terras, são expropriadas e ficam sem espaço até mesmo para cultivar pequenas hortas ao redor de suas casas. O mercúrio usado pelos criminosos na extração do ouro na terra Yanomami dá lugar ao glifosato e a tantos outros agrotóxicos, semanalmente aspergidos sobre a oleoginosa e que contaminam as águas consumidas pelos Kaingang.
Como sabemos, do mesmo modo que o garimpo e suas consequências não são uma exclusividade da terra Yanomami na região norte, o arrendamento e a produção de soja também não são uma exclusividade da terra Guarita na região sul do país.
Ouro e soja. Produtos amarelados, tipo exportação, cujos destinos se entrecruzam pelos caminhos dos continentes europeu e asiático e que marcam negativamente a existência de milhares de famílias indígenas brasileiras.
A superação dessas mazelas vivenciadas pelos povos indígenas Brasil afora passa, necessariamente, pela expulsão dos garimpeiros e arrendatários não indígenas e pela efetiva proteção desses territórios, para que sejam usufruídos exclusivamente pelos povos que tradicionalmente os ocupam, nos estritos termos determinados pelo artigo 231 já citado.
Para além disso, espera-se também que o governo recém-eleito adote medidas urgentes e inovadoras que possibilitem, inclusive, o financiamento a fundo perdido da produção, coleta e comercialização de alimentos, artesanatos e outras formas de subsistência, de acordo com os usos e costumes de cada povo indígena em nosso país.
Os bilionários e recorrentes subsídios do Estado brasileiro aos latifundiários por meio dos financiamentos contratados via “Planos Safras” anuais têm servido para fomentar, incentivar e potencializar o assédio, a invasão e a exploração criminosa das terras indígenas no Brasil. Está no tempo do Estado brasileiro subsidiar as formas próprias de subsistência dos povos indígenas de nosso país.
Somente assim haverá condições, subjetivas e objetivas, para se extirpar o garimpo e o arrendamento, as duas faces da mesma moeda da exploração criminosa das terras indígenas no Brasil.
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Cleber César Buzatto é licenciado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição (FAFINC), especialista em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (UFG), cursando Direito, ex-secretário executivo e adjunto do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e membro da Equipe Florianópolis do Cimi Regional Sul.
Nelson Xangrê, liderança indígena histórica do povo Kaingang. Foto: Alas Derivas