Ditadura criou centro de tortura em Minas e espalhou medo entre o povo Krenak

Reformatório Krenak passou a funcionar em 1969 na cidade de Resplendor, na região do Rio Doce; cerca de cem indígenas de diversas etnias de todo o país foram encarcerados no local

Por Bruno Mateus, O Tempo

João Bugre, um então jovem de 16 anos, foi acordado com cinco fortes e precisas batidas na janela da casa onde morava com o tio Jonas. “O cabo Vicente está querendo te ver”, disseram os policiais. Acuado, João foi ao encontro de Antônio Vicente, então cabo da Polícia Militar de Minas Gerais. “Podem levar esse índio preso. Ele estava bebendo por aí”, foi o que João escutou.

Ali, no meio de uma noite quente de março de 1970 em Resplendor, às margens do rio Doce, começa um pesadelo que duraria 12 meses. Antes de ser jogado na cadeia, porém, João passou três dias e três noites em um cubículo onde mal conseguia esticar o corpo franzino no piso duro e malcheiroso. Água e comida eram raridade.

Constituído de duas edificações, uma delas reservada ao ambiente administrativo e alojamento dos guardas, o presídio para onde João Bugre foi levado tinha nome: Reformatório Agrícola Indígena Krenak, ou simplesmente Reformatório Krenak.

Inaugurado pela ditadura com apoio da polícia e da Funai, em janeiro de 1969, o local serviu de espaço para repressão, tortura, trabalho escravo e maus-tratos a indígenas de 15 etnias, de ao menos 11 Estados de todo o país. Pelo menos 100 indígenas, entre homens e mulheres, foram encarcerados nos três anos de funcionamento da prisão, desativada em 1972.

Naquele mesmo ano, os Krenak foram forçados – em mais um episódio de expulsão de suas terras – a deixar Resplendor, numa ação da ditadura para liberar a área para fazendeiros, e se alojarem na Fazenda Guarani, em Carmésia, a 300 km do território Krenak, na região do Rio Doce.

“Meu irmão Euclides foi torturado, meu tio Jacó também foi. Teve isso tudo. Depois jogaram a gente em Carmésia. A gente sofreu muito”, conta a anciã Dejanira Krenak. Na Fazenda Guarani, eles e outros indígenas continuaram confinados e vigiados. Os Krenak só retornaram a uma pequena parte de seu território em 1980, numa caminhada que durou 95 dias.

No centro de tortura em Resplendor, João Bugre cumpria uma rotina típica de um campo de concentração – dormia em beliches de madeira frágil em uma pequena cela com outros dez indígenas. Quando a cama despedaçava, o chão era o destino dos corpos maltratados. Os indígenas eram obrigados a trabalhar e a plantar o próprio alimento – geralmente arroz, mandioca e inhame. Se conversassem nos idiomas próprios, eram repreendidos com violência.

Soldados armados e cães treinados para atacar faziam rondas sem parar. “Vi vários indígenas sendo espancados. Teve um que apanhou igual cachorro, depois foi amarrado na grade da cela por mais de um dia. Os policiais ficavam me rodeando, me fazendo medo, me acusando do que eu não tinha feito”, recorda-se.

Foto capturada de vídeo. Desfile da Guarda Rural Indígena (GRIN), durante a ditadura, mostrando publicamente técnica do pau de arara. Arquivo COVEMG

A sombria história da prisão Krenak se mistura a outra experiência intolerável, a Guarda Rural Indígena (Grin), criada em setembro de 1969 com o objetivo de treinar indígenas para atuarem na repressão à própria comunidade, enfraquecendo a cultura e os laços entre eles. Fardados como policiais, aprendiam técnicas de tortura, noções de instrução militar, educação moral, equitação e tiro.

O jornalista Rubens Valente traz, no livro “Os Fuzis e as Flechas: História de Sangue e Resistência Indígena na Ditadura” (Companhia das Letras), um depoimento do chefe da Grin, o capitão da PM Manoel dos Santos Pinheiro, ao “Jornal do Brasil” em 1972: “Fui em quem criou a Grin e idealizou Krenak. (…) Fui convidado pela Funai para trabalhar com os índios em Minas Gerais”.

Companheira de João Bugre há 33 anos, Lia Krenak – ou Tomiak, que no idioma itchok borum significa Lua – lembra do tio que integrou a Grin: “Ele morria de vergonha, escondia as roupas da Grin em um baú, não deixava ninguém ver, mas era obrigado a fazer parte. Para o meu povo, esse período representa muito sofrimento”.

Condenação

Em 2015, o Ministério Público Federal em Minas Gerais ajuizou ação civil pública contra a União, o Estado de Minas Gerais, a então Fundação Nacional do Índio (Funai), renomeada recentemente Fundação Nacional dos Povos Indígenas, a agora já extinta Fundação Rural Mineira (Ruralminas) e o oficial militar reformado da PM de Minas Gerais, Manoel dos Santos Pinheiro, que, na época dos fatos, detinha a patente de capitão da PM de Minas.

A ação parte de três episódios centrais: a criação da Guarda Rural Indígena, a instalação do Reformatório Krenak e o deslocamento forçado para a Fazenda Guarani, em Carmésia, que também funcionou como centro de detenção arbitrária de indígenas. Em setembro de 2021, a Justiça julgou a denúncia parcialmente procedente e condenou o Estado brasileiro.

Entre as medidas de reparação à etnia Krenak solicitadas pelo MPF/MG estão o pedido público de desculpas, que deverá ser feito pela União, Funai e Estado de Minas Gerais mediante consulta prévia aos Krenak, a conclusão do processo de demarcação da região dos Sete Salões, território sagrado para o povo Krenak localizado na margem esquerda do rio Doce e parcialmente ocupado por fazendeiros, e a existência de relação jurídica entre o ex-capitão Pinheiro e a União Federal, a Funai e o Estado de Minas Gerais. A disponibilização pública dos documentos que tratam da série de violações dos direitos da etnia Krenak, outra demanda do Ministério Público Federal em Minas Gerais, já foi atendida pela União.

Segundo o procurador da República Edmundo Antônio Dias, do MPF em Minas Gerais, que atua na área de defesa dos povos indígenas e demais povos e comunidades tradicionais, as medidas de reparação ao povo Krenak são fundamentais “porque tomar consciência de graves violações a direitos humanos, repará-las e preservar a memória do legado de violência que encerram são instrumentos de prevenção à repetição de ciclos autoritários”.

Segundo o capítulo “Violações de Direitos Humanos dos Povos Indígenas”, do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, ao menos 8.350 indígenas foram mortos na ditadura militar.

Em Resplendor

No mês passado, João Bugre conduziu a reportagem de O TEMPO ao local onde foi instalado o Reformatório Krenak. Em 1979, o centro de repressão foi destruído por uma enchente do Rio Doce, restando apenas vestígios e escombros, impossíveis de serem encontrados naquela tarde calorenta de terça-feira em meio ao mato alto e aos pés de bananeira.

Passados mais 50 anos da injusta prisão, é difícil para João falar sobre o que viveu. Em sua casa na Aldeia Krenak, para onde ele voltou há três anos, ele se emociona ao recordar os horrores da ditadura: “Ela roubou minha juventude e muito mais. Não consegui estudar, aprender bem meu idioma, perdi até o rumo. Me destruíram de uma vez só. Até hoje fico pensando por que fizeram isso comigo”. Os traumas ainda o perseguem. “A gente acha que está bem, mas por dentro não está. Você acha que não está solto, sempre tem alguma coisa te segurando”, lamenta.

Hoje, João Bugre aprende a ler e escrever na escola, inclusive no idioma itchok borum. Da cultura e da luta de seu povo, jamais se esqueceu. João abre um largo sorriso quando lhe chamam por “Borum Rim” – algo como “indígena preto” em português. Embora tenha tentado, a ditadura nunca lhe arrancou o orgulho de ser Krenak.

Imagem: João Bugre procura vestígios do centro de repressão montado pela ditadura militar no território Krenak, em Resplendor, na região do Rio Doce — Foto: Mariela Guimarães/O Tempo

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

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