No Xeque na Democracia / Pública
Passou praticamente despercebida no último mês a decisão da Universidade de Rio Verde, de Goiás, de retirar da lista de leituras para o vestibular o livro Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios por pressão do deputado bolsonarista Gustavo Gayer, do PL, que o chamou de “pornográfico” em um vídeo em suas redes sociais. O vídeo viralizou, e a Universidade decidiu excluí-lo “ao tomar ciência do título e da polêmica gerada”, segundo afirmou em nota.
O autor, Marçal Aquino, reclamou mais da universidade do que do deputado: “O que me choca é a comissão do vestibular e a universidade aceitarem essa tutela tão inapropriada e retirar o livro da lista do vestibular”, disse o escritor, cuja obra, lançada há quase vinte anos e adotada em centenas de escolas e cursinhos, passa muito longe, claro, de qualquer referência pornográfica.
Mas a pornografia não é, de jeito nenhum, o ponto desse movimento que cresce a passos rápidos nos Estados Unidos e que parece estar aterrizando aqui no Brasil – é claro que os bolsonaristas estão mais uma vez imitando algo made in USA.
Segundo um levantamento do PEN, organização que defende autores ameaçados, a lista de livros proibidos nos EUA no segundo semestre de 2022 chegou a 874 títulos banidos por universidades, escolas e livrarias, um aumento de 28% em relação ao semestre anterior.
Muitos deles foram proibidos por leis amplas que defendem “valores”, impulsionadas por ativistas e políticos republicanos, como no Texas e na Flórida, onde a legislação imposta pelo presidenciável De Sanctis ficou conhecida como “Stop Woke Act” – voltaremos a ela.
Segundo o levantamento do PEN, temas como violência, abuso, dor, morte e luto passam a ser alvo de autoridades que não sabem muito bem como responder a legislações vagas que pretendem salvaguardar “nossas crianças”. Mas ao olhar atentamente os números, é inegável o que essas decisões escondem, duas palavrinhas que o nosso Supremo considerou crime no Brasil: 26% dos livros banidos versam sobre personagens ou temas LGBTQIA+, e 30% falam sobre raça, racismo, ou têm personagens negros.
Por causa da legislação na Flórida, uma editora de livros didáticos reescreveu a famosa cena protagonizada pela costureira negra Rosa Parks em primeiro de dezembro de 1955, marcando o início do movimento pelo fim do segregacionismo nos Estados Unidos.
Ficou assim:
“Rosa Parks mostrou coragem. Um dia, ela estava no ônibus. Pediram a ela para mudar para outro assento. Ela não mudou. Ela fez o que acreditou ser o correto”.
A versão excluiu qualquer menção ao motivo pelo qual Rosa Parks seria obrigada a mudar de assento: a cor da sua pele. Nem menciona a lei do estado do Alabama que obrigava a segregação entre negros e brancos nos ônibus.
Isso porque o Stop Woke Act exclui da educação estadual da Flórida textos que contenham menções que podem levar os estudantes a sentir responsabilidade, culpa ou angústia pelo que membros da sua raça fizeram no passado. O termo “woke” é definido pelo dicionário de Oxford como “estar consciente sobre temas sociais e políticos, especialmente o racismo”, mas é usado nos círculos de extrema direita para tachar quem toca nesses temas de “inimigo” dos valores tradicionais americanos.
Pelo mesmo motivo, o podcast 1619, do New York Times, um divisor de água na opinião pública americana sobre o papel da escravidão na formação do país, também teve sua versão em livro banida de diversas escolas, segundo o PEN. O belo podcast, que aqui no Brasil inspirou o Projeto Querino, da Rádio Novelo, revisita momentos essenciais da história oficial e demonstra cabalmente como os negros foram protagonistas de alguns dos pilares dos Estados Unidos moderno – da democracia à cultura pop.
O que é assustador no movimento “anti-woke” é justamente a maneira natural como ele consegue transitar pela era do populismo digital; no caso de Gayer, bastou um vídeo para criar uma onda de rechaço que levou à censura de um livro em toda uma universidade. Da mesma maneira, nenhuma dessas legislações teriam passado nos EUA se não houvesse um ganho político real, embasado na revolta digital dos eleitores e eleitoras, que são animados a se rebelar contra algo muito concreto e muito pequeno e, assim, exercer seu pequeníssimo poder de mudar alguma coisa na sociedade, “protegendo os seus”. E dá-lhe like, corrente de WhatsApp e retuite.
Com maestria, a extrema direita consegue trazer para o mundo real uma das facetas mais marcantes da internet, a “clusterização”, ou o efeito de “bolhas”, unindo aqueles que não estão satisfeitos com o andar da carruagem.
É a mesma lógica que embasa (e garante o financiamento) de uma empresa como a paulista Brasil Paralelo, que emprega mais de 200 funcionários para reescrever momentos históricos do nosso país através de teorias e personagens de pouca credibilidade acadêmica, sempre com um viés cristão, patriarcal, tradicionalista e, até, bandeirantesco (inventei a palavra, me desculpem).
Só que, quando falamos de “des-wokizar” (hoje estou impossível) conteúdo escolar ou científico, trata-se de um passo além. O esforço de criar narrativas paralelas da história ou do conhecimento científico tem por trás a noção de que não existe, de fato, uma verdade única, e que tudo o que se tem são versões dadas por diferentes grupos; cabe a cada um escolher a sua turma e entregar-se a ela.
Nesse sentido, o principal trabalho de fundo da extrema direita é acabar com os grandes consensos que embasam a sociedade contemporânea: noções básicas devem ser repensadas; cada um deve buscar a sua verdade, ou a verdade de seu grupo, e educar seus filhos, consumir, e votar de acordo. É criar cisões sociais em lugares onde antes não havia.
Criar diferença, animosidade, antagonismo, é uma aposta política, pois traz votos e carguinhos, mas também uma aposta econômica, pois também abre oportunidades de negócios que reforcem a identidade desse ou daquele grupo – vide o sucesso financeiro do Brasil Paralelo.
Trata-se do aprofundamento radical da “clusterização” algorítmica das redes sociais. Hoje em dia, a vida já não mais imita a arte; a vida imita o Facebook.