“Arcabouço”: o que era ruim pode piorar. Por Antonio Martins

Rentistas e bancadas fisiológicas do Congresso agem combinados para impor camisa-de-força a Lula 3. Haddad aquiesce e governo parece incapaz de reagir. Se aprovado, projeto pode frustrar reconstrução do país e ampliar desgaste da política

No Outras Palavras

“Cria cuervos y te sacarán los ojos”, alerta com sabedoria um ditado espanhol. Ao apresentar, em 30 de março, uma proposta de “arcabouço fiscal” que limita o investimento público e fecha principal caminho para iniciar a reconstrução do país, o ministério da Fazenda abriu uma caixa de horrores. Sentindo-se fortalecido pelo fato de o governo renunciar aos recursos que viabilizariam uma agenda de mudanças, dois setores – a oligarquia financeira e a maioria fisiológica do Congresso – animaram-se a exigir mais. O resultado foi o texto que o relator do tema na Câmara, deputado Cláudio Cajado (PP-BA), conhecido pelas relações com o bolsonarismo, anunciou que apresentará como substitutivo ao PLP 93/2023 (expressão legal do “arcabouço”). A votação pode ocorrer já na próxima semana.

A proposta original de Haddad, vale recordar, sustentava-se sobre um dos mitos essenciais da ideologia neoliberal: o de que os Estados “só podem gastar o que arrecadam”. E ia além: impunha diversas trancas às despesas públicas, de modo que crescessem sempre abaixo do aumento da receita tributária. A versão de Cajado reforça o ferrolho de três maneiras complementares.

Primeiro, coloca sob o “arcabouço” três tipos de despesa até então não incluídas: os recursos necessários para pagar o novo piso salarial das enfermeiras, os destinados ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (Fundeb) e os eventuais aumentos de capital das empresas públicas. Produz-se, em consequência, o efeito “cobertor curto”. Ao menos os dois primeiros itens tendem a subir mais que a média dos gastos públicos. Como o “arcabouço” impede uma elevação do orçamento geral, terão de ser comprimidas as demais despesas – com Ciência e Tecnologia ou Assistência Social, por exemplo. Serão protegidos apenas o salário mínimo e a Bolsa-Família.

Segundo, ficam ainda mais gravemente limitados os gastos públicos classificados pela contabilidade ortodoxa como “investimentos” – construções ou aquisição de tecnologia, por exemplo. Na proposta original, caso a arrecadação de impostos superasse as despesas num valor maior do que o previsto pela lei, a diferença poderia ser canalizada para este tipo de gasto. Agora, nem isso: em vez de financiar novas obras, ao menos 30% da “economia” terá de ser esterilizada no pagamento de juros aos credores da dívida pública.

Por fim, o relator – escolhido a dedo pelo presidente da Câmara, Arthur Lira – impõe um conjunto de “punições” ao Executivo, caso as metas não sejam alcançadas. Nesse caso, serão acionados “gatilhos” sucessivos, que bloquearão a criação de novas funções no serviço público, a criação de auxílios aos desfavorecidos, concessão de incentivos fiscais e até mesmo a realização de concursos públicos ou a correção das perdas salariais do funcionalismo…

O sentido geral das mudanças é nítido. Agora, já não se trata apenas de limitar, mas de estigmatizar o gasto público, chegando quase a sua criminalização. Em tais condições, as mãos de Lula ficarão atadas. Será difícil imaginar, por exemplo, como empreender a restauração do projeto original do SUS, a construção de escolas públicas de excelẽncia. Muito menos, os investimentos necessários para transformar urbanisticamente as periferias, despoluir os rios urbanos, oferecer transporte público digno, reconstruir uma rede ferroviária moderna ou fazer a Reforma Agrária e iniciar a transição agroecológica do campo brasileiro.

Mas um tipo de gasto não será penalizado. O Estado brasileiro continuará emitindo dinheiro sem limites, para alimentar o rentismo financeiro. Para o 0,1% que dele se beneficia – auferindo os juros mais altos do mundo –, há um orçamento especial (o do Banco Central), que não passa pelo crivo do Congresso, nem depende de arrecadação. Nessa despesa – cerca de R$ 500 bilhões ao ano, ou um orçamento anual do ministério de Ciência e Tecnologia a cada 2,5 dias, Haddad e o Congresso não ousam tocar.

Não é fácil enfrentar a classe dos bilionários, nem o apetite dos deputados e senadores por dinheiro. O governo brasileiro tem as condições macroeconômicas para emitir moeda em favor dos 99%, mas não os meios políticos. Como antecipou Outras Palavrasa batalha para vencer o atual “teto de gastos” seria dura. Mas o Executivo optou por não ir à luta – talvez porque os partidos no governo tenham se esquecido de que o conflito é fonte de mudanças, e a consciência e a mobilização popular são o que mantém a política viva.

Houve, nos movimentos sociais, quem tentasse mudar a proposta do ministro Haddad num sentido oposto ao do deputado Cajado. A Frente pela Vida – uma articulação que reúne dezenas de entidades em defesa do SUS – propôs, por exemplo, que a Saúde e a Educação fossem excluídas do “arcabouço”. Fiou-se na fala de Lula, segundo a qual Saúde e Educação “não são gastos”. Alguns parlamentares de esquerda agiram no mesmo sentido – e vale destacar o papel protagonista desempenhado por Lindbergh Farias e Gleisi Hoffmann, do PT. Mas, atuando em sentido contrário, o ministério da Fazenda buscou, o tempo todo, o entendimento com os grandes operadores financeiros e os parlamentares que lhes prestam serviços. Ao invés de estimular os deputados que tentavam abrir espaço para o investimento público, o governo os tolheu. Lindbergh foi excluído, pela bancada de seu partido, da CPI do 8 de Janeiro, onde sua experiência jogaria papel.

Sempre muito bem informada, a jornalista Mônica Bergamo relatou há dias que Lula anda ansioso e entristecido. Teme que as promessas feitas em campanha sejam inalcançáveis, dados os bloqueios que os poderosos impuseram à ação do presidente da República, quando voltada a contrariar interesses estabelecidos. Seu sentimento é legítimo. O capitalismo age, todos os dias, para esvaziar a democracia, reduzindo-a ao que José Saramago comparou a uma fachada oca. Mas pode-se chamar de autossabotagem os atos que o sujeito inflige a si mesmo quando, contra sua percepção consciente, insiste em fazer o que sabe prejudicá-lo, ou teme dar os passos necessários e possíveis para se livrar das condições que o oprimem. Ansiedade e tristeza são consequências clássicas.

Para as angústias pessoais, há sempre redenção possível. Mas os erros políticos precisam ser corrigidos enquanto é tempo.

Foto: Tânia Rêgo | Agência Brasil

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