Como matar – de novo – uma pessoa trans

Newsletter da Ponte, por Jessica Santos

Laura Vermont foi morta mais de uma vez. Na primeira, seu corpo sucumbiu a violência transfóbica da sociedade e da polícia, um caso permeado por mentiras, tentativa de fraude no processo e um enorme desrespeito pela vítima. As demais foram acontecendo ao longo da investigação e do processo judicial, quando sua identidade foi violada vezes sem fim.

No mês em que celebramos a luta contra a homofobia, a transfobia e a bifobia, o juri que absolveu os acusados pela morte de Laura foi recheada da mais pura e brasileira transfobia que nos faz, no final do dia, o país que mais assassina pessoas trans ano após ano. Tanto o juiz quanto o promotor do caso usaram o nome de registro de Laura ao longo dos dois dias de julgamento, adicionando mais uma camada de desprezo à memória de Laura, além de ferir a jurisprudência que defende que pessoas trans sejam identificadas pelo nome social, de acordo com sua vontade.

Cada vez que desrespeitamos a identidade de pessoas trans as matamos sem precisar praticar violência física. Eliminar a possibilidade de uma pessoa ser quem é se constitui como uma violência tão horrenda quanto a eliminação física. Como sociedade, sufocamos os meios para que pessoas trans possam se desenvolver e ter as mesmas oportunidades das pessoas cis. Sufocamos a vida plena sem precisar manchar nossas mãos de sangue.

Chiara Duarte Pereira também foi morta mais de uma vez, assim como Laura. Na primeira vez, facadas tiraram sua vida – muitos assassinatos de pessoas trans contam com requintes de crueldade. Nas demais, agentes públicos mataram sua identidade. Ao longo de 300 páginas de seu processo, em nenhum momento, investigadores, delegado, promotores e juízes citaram seu nome social, violentando a memória de Chiara.

Talvez para quem nunca precisou reafirmar sua identidade possa parecer exagero comparar à morte a violação da identidade de uma pessoa. Diminuímos o que não nos toca, o que não nos convém, o que não está no nosso quintal. É assim que matamos vezes sem fim Laura, Chiara e todas as pessoas trans que perdemos todos os dias sem ligar para sua identidade. Relegamos essas pessoas às margens e, depois, de forma hipócrita, nos chocamos quando seus corpos são mortos.

Os agentes da lei que praticaram essas mortes de Laura e Chiara reforçam a necropolítica sobre a qual o Estado se assenta. Neste sentido, fica claro, uma vez mais, que há corpos que podem ser ignorados, violentados, mortos e esquecidos. Nosso trabalho, enquanto jornalismo que defende os direitos humanos, é seguir contando essas histórias, falando esses nomes, defendendo essas memórias.

Chiara e Laura: jovens mulheres vítimas da transfobia. Colagem: Ponte

 

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