Pensador aponta: noção quechua de sumak kawsai nos chega por traduções. Seu sentido forte vem, tenso e fértil, no encontro com a cosmovisão originária: “Corpos vivos em uma Terra viva. Não podemos incidir nela como a retroescavadeira”
Não é difícil constatar hoje o ingresso da Natureza na política. A pauta ambiental faz parte de todos os grandes encontros internacionais e a consciência dos riscos e perigos da crise climática, do aquecimento global e do esgotamento dos recursos naturais não escapa às preocupações de qualquer pessoa minimamente conectada com o nosso tempo.
Essa aceleração da destruição do planeta está intimamente ligada ao modo como se desenvolveu o mundo capitalista; ligada ao calor produzido pelas criptomoedas; aos brinquedinhos aeroespaciais e outras aberrações inventadas para distrair os obscenos bilionários que hoje controlam as mentes e especulam com os algoritmos das bolsas de valores, das plataformas de streaming, dos games e das redes sociais.
A maneira como as universidades e centros de pesquisa alocam seus recursos financeiros e humanos também reproduz essa mesma lógica, na qual os viventes, humanos e não humanos, estão absolutamente subordinados aos interesses do mercado e das grandes corporações.
O adoecimento das mentes e dos corpos, assim como o esgarçamento do tecido social, é terrivelmente ilustrado pelo ataque generalizado a escolas em todo o mundo ocidental. A esse quadro de desamparo, respostas, ainda um tanto invisíveis nas grandes mídias, brotam frágeis mas vivas por toda parte. Faz parte desse movimento vital a obra contundente de um dos mais importantes pensadores do Brasil contemporâneo, Ailton Krenak.
Autor de alguns best-sellers como Ideias para adiar o fim do mundo, A vida não é útil e Futuro ancestral, publicou também o ebook Caminhos para a cultura do Bem Viver, disponibilizado gratuitamente.1 Trata-se de transcrição de fala realizada por esse grande pensador em junho de 2020. Na ocasião, Krenak foi convidado a falar sobre o Bem Viver (Buen Vivir em espanhol ou Sumak Kawsay em quechua) e vai, ao longo de sua reflexão, se apropriando desse fundamento, tão caro aos povos andinos.
Não custa lembrar que se trata de conceito-chave tanto na Constituição do Equador, de 2008, como da Constituição da Bolívia, de 2009. Por exemplo, no artigo 275 da Constituição do Equador lê-se:
O regime de desenvolvimento é o conjunto organizado, sustentável e dinâmico dos sistemas econômicos, políticos, socioculturais e ambientais que garantem a realização do buen vivir, do sumak kawsay. […] O buen vivir exigirá que as pessoas, comunidades, aldeias e nacionalidades gozem efetivamente de seus direitos e exerçam responsabilidades no âmbito da interculturalidade, do respeito pelas respectivas diversidades e da convivência harmoniosa com a natureza.
Por não ter equivalência direta em línguas coloniais, esse regime de desenvolvimento inscrito na Constituição equatoriana têm sido palco de calorosos debates. Não se trata de entrar nos meandros dessa discussão, mas de lembrar que esses conceitos expressos numa língua não colonial deslocam e qualificam o debate civilizacional na América do Sul, fazendo com que outras cosmovisões fecundem nossas perspectivas críticas, e produzindo também inevitáveis equívocos, ou melhor, equivocações.
Usamos “equivocação” no sentido que lhe é dado por Viveiros de Castro, quando afirma:
Uma equivocação não é apenas uma “falha em compreender” […], mas uma falha em compreender que compreensões não são necessariamente as mesmas, e que elas não estão relacionadas a modos imaginários de “ver o mundo” mas aos mundos distintos que são vistos…2
Para lidar com esses “mundos distintos que são vistos”, Viveiros de Castro reconhece a importância da tradução. Para o antropólogo,
Traduzir é situar a si mesmo no espaço da equivocação e ali habitar. Não é desfazer a equivocação (uma vez que isto seria supor que a mesma jamais existiu em primeiro lugar), mas precisamente o oposto é verdadeiro. Traduzir é enfatizar ou potencializar a equivocação, isto é, abrir e alargar o espaço imaginado como não existente entre as línguas conceituais em contato, um espaço que a equivocação precisamente ocultava. A equivocação não é aquilo que impede a relação, mas aquilo que a funda e a impulsiona: uma diferença de perspectiva. Traduzir é presumir que uma equivocação já existe; é comunicar por diferenças…3
Assim é sumak kawsai, ao ser “equivocado”, ou seja, ao ser traduzido, em buen vivir e em bem viver por Ailton Krenak…
No início de sua explanação sobre o bem viver, Krenak propõe uma experiência a seu interlocutor. Após constatar que a pandemia criou certa suspensão, produzindo algum “repouso” nas automações da vida contemporânea, ele provoca:
Eu convido vocês a […] pegarem algum elemento da natureza, como folhas, pedras, terra, um pouco de água, ou outros. […] Então, mediados por esses materiais, podemos ficar nessa ligação com o que é mineral, com o que é vegetal, com esses elementos da natureza, porque eles estão no nosso corpo também. […] Podemos fazer uma conexão sensorial, em outros termos, com o propósito desse nosso encontro, porque assim ele fica mais potente e mais animador para todos nós.
O bem viver, pressupõe primeiramente, para Krenak, a disposição ao contato, a uma experiência sensorial com elementos da natureza para que o encontro seja “animador”, um sopro de vida. Logo após, Krenak se refere à “origem do bem viver”:
A origem do Bem Viver tem uma importância tão grande, pois ela chegou para a maior parte de nós, aqui no Brasil, que temos uma língua, que é o Português, mediada por uma outra língua, que é o Espanhol ou Castelhano, fazendo referência a uma prática ancestral dos povos que viviam nessa cordilheira dos Andes. Eles são os nossos parentes Quechua, Aymara, uma constelação de povos que viveram séculos nessa cordilheira e que tinham, em comum, uma cosmovisão, em que essa cordilheira viva, cheia de montanhas e vulcões, todos aparentados uns dos outros, tem um significativo nome de Pachamama, Mãe Terra, coração da Terra.
De maneira clara, Krenak começa traçando uma genealogia, atentando para o fato de que, em certo sentido, o termo chega à “língua comum” do brasileiro mediada pelo espanhol para se referir a uma “prática ancestral” contida numa “palavra que é Sumak Kawsai”. Segundo Krenak:
O Sumak Kawsai é uma expressão que nomeia um modo de estar na Terra, um modo de estar no mundo. Esse modo de estar na Terra tem a ver com a cosmovisão constituída pela vida das pessoas e de todos os outros seres que compartilham o ar com a gente, que bebem água com a gente e que pisam nessa terra junto com a gente. Esses seres todos, essa constelação de seres, é que constituem uma cosmovisão.
A mundovisão expressa na definição de Krenak é precisada no capítulo posterior, intitulado “O que não é o Bem Viver”. Uma vez mais o pensador indígena coloca a questão a partir da diferença entre línguas-culturas, ao observar que…
Quando tiraram daquela cosmovisão uma ideia traduzindo para o Espanhol e a chamaram de Buen Vivir, e depois, para o Português, como Bem Viver, a gente já fez tantas pontes, que nós nos aproximamos muito mais de uma coisa que é ocidental. Essa proposta ocidental não tem a ver com a cosmovisão ameríndia, mas foi a experiência mais avançada que a Europa conseguiu promover depois da II Guerra Mundial.
Krenak demarca desse modo diferença entre a “proposta ocidental” do bem estar social e a “cosmovisão ameríndia”, controlando a equivocação ao assinalar o espaçamento que as “tantas pontes” inevitavelmente produzem. Ao longo dos curtos e contundentes capítulos subsequentes, Krenak vai fecundando a expressão com afirmações como estas:
Bem Viver não é definitivamente ter uma vida folgada. O Bem Viver pode ser a difícil experiência de manter um equilíbrio entre o que nós podemos obter da vida, da natureza, e o que nós podemos devolver. É um equilíbrio, um balanço muito sensível e não é alguma coisa que a gente acessa por uma decisão pessoal. (p.8)
O Bem Viver não é distribuição de riqueza. Bem Viver é abundância que a Terra proporciona como expressão mesmo da vida. A gente não precisa ficar buscando uma vantagem em relação a nada, porque a vida é tão próspera que é suficiente para nós todos. (p.17)
Se não formos capazes de nos inspirar para criar corpos vivos para uma Terra viva, nós não vamos experimentar o Bem Viver. O Bem Viver são corpos vivos em uma Terra viva. A gente não pode incidir sobre a Terra como se a gente fosse uma máquina retroescavadeira. (p.19-20)
Assim, no final desse gigantesco ebook de trinta e poucas páginas, Krenak volta ao convite inicial, agora indicando a potencial irmandade existente entre a folha, a pedra, o tronco tocado e o corpo, talvez um pouco mais sensível e animado. Desperto para a luta contra a nefasta medida provisória do Marco Temporal.
Notas
1. https://www.biodiversidadla.org/Recomendamos/Caminhos-para-a-cultura-do-Bem-Viver
2. A antropologia perspectivista e o método de equivocação controlada. Tradução de Marcelo Giacomazzi Camargo e Rodrigo Amaro. Aceno – Revista de Antropologia do Centro-Oeste, p. 247-264, 5 (10), 2018.
3. Idem, ibid.
Foto: Ailton Krenak – Divulgação