Vozes silenciadas: quem quer calar a luta dos sem-terra?

Intervozes analisa a cobertura da imprensa sobre a Comissão Parlamentar de Inquérito criada para perseguir o MST

Eduardo Amorim, Brasil de Fato

Desde o último 17 de maio, a história da criminalização da luta pela terra no Brasil ganhou mais um capítulo. Neste dia, foi instalada, na Câmara dos Deputados, uma CPI sobre o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Com tudo que representa o MST e a composição extremamente conservadora do Congresso Nacional, o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social decidiu monitorar a cobertura da imprensa sobre o tema.

Nesta nova edição da série Vozes Silenciadas, retomamos o assunto da nossa primeira publicação da série, lançada em 2011 acerca da então Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) sobre o MST. Desta vez, acompanhamos a cobertura simultaneamente com o desenrolar dos acontecimentos. Em parceria com o Brasil de Fato, a partir de hoje, vamos publicar artigos semanais para compartilhar este monitoramento.

Nossa análise inclui o acompanhamento da versão online dos impressos O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e O Globo; do Jornal Nacional; dos portais R7, do Grupo Record, e Agromais, do Grupo Bandeirantes; e da Agência Brasil, veículo da (tão massacrada no período recente) comunicação pública. Na primeira etapa desta pesquisa que se inicia agora, ainda antes do início da CPI de 2023, vimos nos dias 17 e 18 de abril que 100% das matérias utilizam termos que criminalizam o MST: “invasores”, “barbárie”, “atos criminosos”, “invadiu propriedades”, “invasão de terras”, “crime”, “MST invade fazendas”, “a invasão traz prejuízos”, “a invasão já está prejudicando”, “invasões em abril”. As matérias causam as seguintes impressões em relação ao Movimento: 86,4% negativa; 9,1% equilibrada; 0% positiva e, em 4,5%, não houve posicionamentos mais explícitos que nos permitissem identificar.

Nas matérias analisadas, 66% das fontes ouvidas são contrárias ao movimento, enquanto 34% fazem um contraponto. Em 24% das matérias, apenas ataques ao MST foram publicados. Em mais da metade da cobertura (52%), é produzido um discurso em prol da propriedade privada. Enquanto isso, apenas 4,5% contextualizam a reforma agrária; somente 29% discutem temas como grilagem de terras, agrotóxicos e crimes ambientais e apenas 18% das matérias abordam a agricultura familiar e cuidados com o meio ambiente.

A escolha dos dias desta primeira etapa da análise buscou incluir a cobertura sobre a jornada de lutas intitulada pelo MST de “Abril Vermelho”: uma forma de dar visibilidade à necessidade da reforma agrária e lembrar o massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido no dia 17 de abril de 1996, no sul do Pará, quando 19 trabalhadores sem-terra foram assassinados.

Temos alguns aprendizados que trazemos do Vozes Silenciadas de 2011 e de nossas conversas com o MST, como o fato de percebermos que antes do período de funcionamento da Comissão já se formava uma narrativa importante. Naquele período, a criminalização do MST se deu principalmente na preparação para a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI). Depois de instalada, ela não foi o foco da cobertura, tendo prevalecido o tema das eleições presidenciais de 2010 (disputada, no segundo turno, por Dilma Rousseff e José Serra). O Abril Vermelho foi o tema relacionado ao MST que mais ganhou destaque (ainda assim, apenas 42 matérias de um total de 301; 24 delas citavam atos violentos dos quais o MST era colocado como autor, seja de forma direta ou através de variações da palavra “invasão’. Ou seja, o fato de os sem-terra terem sido assassinados em 1996 não era mencionado na maioria dos casos).

Portanto, em 2023, quisemos também analisar como foi a repercussão do Abril Vermelho, não só pela sua relevância para o Movimento, mas também por ser o período em que estavam ainda em gestação as propostas da bancada ruralista para investigar o MST.

Falta diversidade no campo e na mídia

Voltar a estudar uma CPI do MST traz uma reflexão importante sobre o período que vivemos. Afinal, após a derrota de Jair Bolsonaro nas eleições de 2022, deixando para trás um período de pouca transparência e grande investimento em estratégias de desinformação por sujeitos políticos de relevância nacional, surgiu uma esperança de que o Brasil poderia exercer um papel de liderança internacional no enfrentamento às mudanças climáticas e na defesa de biomas como o da Amazônia.

Além da questão da criminalização dos movimentos sociais e do dilema da propriedade, é importante destacar que os sem-terra assumiram a bandeira da agroecologia e passaram a ser referência na produção e comercialização de produtos orgânicos e saudáveis, através de feiras e espaços alternativos como os Armazéns do Campo. Seria uma reação à importância da pauta ambiental no mundo a criação de CPIs como a do MST e mais recentemente uma voltada para fiscalizar ONGs que atuam na Amazônia?

A disputa ideológica pela reforma agrária ganha também a companhia de temas como a proteção dos biomas e dos povos originários já tão associados aos sem-terra. No outro lado, estão políticos e empresários que defendem a propriedade privada, organizados em grupos poderosos como a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Mesmo que as diversas CPIs com temáticas ambientais não sejam uma estratégia de gerar pautas negativas sobre o tema, é evidente que o caminho será longo e tortuoso para o Brasil se tornar referência mundial no debate das mudanças climáticas e de estratégias sustentáveis de produção agrícola e regeneração dos solos desertificados.

Neste sentido, é importante pensarmos em um termo que vem sendo utilizado no cotidiano pela mídia. O que é “agro”? Originalmente, existiam milhares de culturas agrícolas. Conforme descrito pelo engenheiro agrônomo e analista ambiental Walter Steenbock, no livro A Arte de Guardar o Sol, estas culturas se associavam em diferentes biomas, mas representavam símbolos dos povos tão ricos como a gastronomia, a música ou o modo de vida de uma região. A partir da década de 1950, a chamada Revolução Verde passa a propagar uma tecnologia que industrializa o modo de fazer produção agrícola e aproveita os restos de indústrias como a da guerra e a da mineração: é a chamada agricultura industrial com agrotóxicos, fertilizantes e outros produtos químicos, financiada por empresas que apoiaram diversas ditaduras na América Latina.

O crescimento na região do movimento agroecológico é impulsionado no Brasil pelo MST, que já tinha práticas e dinâmicas ambientais e assume no seu VI Congresso em 2014 que a única possibilidade para a agricultura brasileira que responda aos anseios e necessidades do povo passa não somente pela reforma agrária, mas também pela soberania alimentar e pela agroecologia. Portanto, são quase dez anos desde que o MST assumiu como bandeira a luta por agriculturas diversas, que incluem o feminismo e o debate de gênero e se contrapõem às monoculturas do “agro”.

Portanto, o termo “agro” não é tudo e parece simbolizar um reducionismo que tenta dificultar a compreensão das disputas ideológicas do presente. As agriculturas das centenas de povos indígenas brasileiros, das comunidades que receberam influência das diversas etnias que vieram para o Brasil da África, formam um conjunto riquíssimo e único de agriculturas (silenciadas ou não). O termo “agro” não somente vem sendo utilizado como forma de afirmar a uniformização das práticas através dos produtos químicos, mas também de silenciar as dinâmicas riquíssimas que hoje são vistas como fundamentais para o enfrentamento das mudanças climáticas como a dos sistemas agroflorestais indígenas em biomas brasileiros como o Cerrado, a Caatinga e a Amazônia.

O “agro”, portanto, longe de ser pop, está associado a poderes políticos, econômicos e culturais. Parte dos donos do agronegócio, por exemplo, são também donos da mídia, como apontamos na pesquisa MOM Brazil e iremos abordar em nossas próximas análises. Dessa forma, a ausência de diversidade na propriedade no campo e o silenciamento das agriculturas e conhecimentos tradicionais e ancestrais também estão relacionados à inexistência de pluralidade de visões de mundo na mídia. A falta de espaço – ou silenciamento – das bandeiras de luta dos movimentos sociais, muitas descontextualizadas pela imprensa, é simbólica da violação da liberdade de expressão e do direito à comunicação de parcela significativa da sociedade brasileira.

* Eduardo Amorim é jornalista, doutor em Comunicação pela UFPE e associado ao Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social

Edição: Thalita Pires

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