Faíscas com bolsonaristas, apoio de aliados, críticas ao agronegócio: veja os destaques do depoimento de João Pedro Stedile na CPI do MST

Participação de líder sem terra durou quase sete horas e se deu sob clima de rivalidade e deboche com ala conservadora

Por Cristiane Sampaio, no Brasil de Fato

Foi entre ataques e manifestações de apoio que o economista e líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) João Pedro Stedile prestou depoimento na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do MST, na Câmara dos Deputados, na terça-feira (15). Ao longo de quase sete horas de sabatina, o militante destacou as causas que sustentam a criação e as ações da entidade, defendeu a histórica luta popular por reforma agrária, alfinetou a parte mais conservadora do agronegócio e respondeu de forma altiva a diferentes críticas provenientes da ala bolsonarista, responsável pela convocação que gerou sua ida ao colegiado para ser interrogado pela CPI na condição de testemunha.

Logo na largada, após uma das primeiras perguntas feitas na audiência, Stedile frustrou a base de parlamentares bolsonaristas ao amortecer o impacto de uma colocação do relator da CPI, deputado Ricardo Salles (PL-SP). Lançando mão de um dos argumentos mais simbólicos dos discursos extremistas que professam o ódio contra o MST no país, o parlamentar questionou qual a visão do economista a respeito do que chamou de “pessoas que se valem de processos de invasão de terra para reverter parte desse trabalho em benefício pessoal”.

Para a excitação dos ânimos, a resposta de Stedile veio através da menção ao sociólogo alemão Karl Marx: “Numa sociedade capitalista, todas as classes, sejam a burguesia, a pequena burguesia, a classe trabalhadora, o campesinato, os trabalhadores em geral, têm uma fração lúmpen. O que é lúmpen? É aquele oportunista que quer viver do trabalho dos outros, quer explorar o trabalho dos outros. Então, esses lumpens existem em toda a sociedade. Você vai encontrar entre burgueses – os narcotraficantes, por exemplo, são bilionários e são lumpens –, na classe média, nos profissionais liberais, entre advogados, jornalistas, deputados, entre trabalhadores e entre camponeses”.

Deboche

Foi nesse instante que o líder do MST protagonizou um dos pontos altos da sessão da CPI nesta terça. Stedile destacou as características que marcam a forma de organização do movimento, citando aspectos como o senso coletivo, a escolha por processo de decisão sempre colegiada, e não individual, a divisão de tarefas, a disciplina e a formação educacional e intelectual dos militantes. O comentário deu espaço também a um sofisticado deboche político, traço da personalidade de Stedile que ficou evidente em diferentes cenas da sabatina.

No momento em que citou as características da entidade, o economista soltou um recado dirigido ao deputado Kim Kataguiri (União-SP), um dos fundadores do Movimento Brasil Livre (MBL). A entidade rivaliza com o MST e produziu diferentes lideranças conservadoras e extremistas juvenis nos últimos nove anos, desde quando foi gestada no país.

“Entre os princípios organizativos, tudo tem que ser coletivo. Tudo tem que ser em forma de comissão porque é o coletivo que protege [a gente] do oportunismo de falsos líderes. Não adotem essa terminologia de ‘presidente’, ‘tesoureiro’, ‘secretário’. “Os princípios organizativos são universais. Valem para movimento de trabalhadores e valem para o movimento do Kim. Espero que ele esteja anotando. Qualquer movimento social popular tem que adotar esses princípios”, ensinou Stedile, arrancando risos da plateia.

Outro ponto de realce durante a audiência se deu quando o líder sem terra salientou o estímulo que o MST dá aos seus militantes para que se graduem na universidade. Ele mencionou que, como resultado desse esforço histórico, a organização já conseguiu formar cerca de 250 advogados, por exemplo. E destacou a importância que teve, nesse processo, o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), criado em 1998, durante o governo FHC (1994-1994), a partir de uma pressão que vinha de lutas sindicais e sociais. Stedile definiu o Pronera como uma “conquista fantástica” do movimento e pontuou que a política foi instituída por influência da antropóloga e esposa do então presidente da República, Ruth Cardoso. “[Pessoa] de quem eu gostava muito”, frisou.

Ney [Strozake], os companheiros que estão aí, são todos advogados filhos de assentados [da reforma agrária]. Você pode acreditar? Se não tivesse o Pronera, estariam no cabo da enxada ou teriam virado lumpens”, ironizou Stedile, ao apontar para o grupo de advogados do MST que o acompanhava na sessão. O comentário emocionou parte do público presente na sabatina. A menção também se deu diante de um plenário emudecido e de um Ricardo Salles visivelmente constrangido: Ney Strozake, um dos assessores jurídicos do MST, é também advogado do ex-ministro do Meio Ambiente em alguns processos.

Pouco antes disso, enquanto Stedile citava o Pronera, um burburinho se formou na comissão por conta de comentários de opositores que interceptaram a fala do depoente. Na sequência, o presidente da CPI, Zucco (Republicanos-RS), fez uma intervenção pedindo para o plenário “voltar” [a ter atenção]. “Vamos voltar para a aula, pessoal”, reagiu lá de trás o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), ao zombar da ala bolsonarista e provocar risos entre alguns jornalistas que estavam nas proximidades.

Agronegócio

O agronegócio mais conservador foi o destino de muitas das menções críticas que Stedile fez ao longo das horas de sabatina. Em um dado momento das respostas dirigidas aos deputados da CPI, o líder destacou que esse segmento do ruralismo hoje vive fissuras diante da gestão petista que está no poder – parte do setor atua no governo Lula, como é o caso do ministro da Agricultura, o pecuarista Carlos Fávaro, que é senador eleito pelo Mato Grosso e está licenciado do mandato.

“O agronegócio está dividido. A metade que tem juízo apoiou o Lula. A outra parcela é a Aprosoja [Associação Brasileira dos Produtores de Soja, um dos braços políticos do setor], que só pensa em ganhar dinheiro. Parte do agronegócio já tem consciência dos limites e já está migrando para outra agricultura, a chamada agora de ‘práticas regenerativas’, para substituir pesticidas por defensivo agrícola agroecológico. Parcela do agronegócio ainda vai para o céu”, brincou Stedile. “Mas o agronegócio burro, que só pensa em lucro fácil, está com os dias contados”, continuou.

Embates

Não ficaram de fora também os momentos de maior embate de ideias ou acirramento das emoções. A sessão foi permeada de faíscas que ilustraram as disputas políticas as quais opõem a ala bolsonarista e os apoiadores do MST. Em um dos lances da sabatina, o deputado Rodolfo Nogueira (PL-MS) questionou Stedile sobre se o líder “acredita que tem um alvará de impunidade” para supostamente “incitar crimes” no país. “Eu nunca incitei crime nenhum”, respondeu o economista, no que foi interrompido pelo parlamentar, que disse que “invasão de terra é crime”.

Stedile aproveitou para realçar a diferença entre “ocupação” e “invasão”, sendo esta última uma expressão costumeiramente utilizada no debate público por políticos mais conservadores para criar confusão sobre o tema. “Invasão de terra é crime, como fazem os fazendeiros do Mato Grosso do Sul invadindo terra indígena. O que o MST faz é ocupação de terra, como uma forma de pressionar para que se aplique a Constituição. Invasão de terra ou de qualquer bem público é quando alguém faz isso em proveito próprio, e aí se caracteriza como esbulho possessório e é criminalizado pelo Código Penal”, comparou Stedile.

O dirigente do MST deu sequência ao raciocínio destacando aspectos legais que cercam a questão: “O que o nosso movimento faz, reconhecido pela jurisprudência, não é invasão. É ocupação, e a ocupação aqui não é esbulho possessório, tanto é que, para o seu desespero, das muitas ocupações que houve nesses 40 anos em todo o Brasil, ninguém foi preso ou condenado”. “Se vocês querem acabar com a ocupação, desapropriem as grandes propriedades improdutivas, porque aí tem terra pra todo mundo”, emendou.

Em outra cena, quando entrou em debate a ida de Stedile à China na comitiva do ex-presidente Lula que visitou o país em abril deste ano, o relator questionou se há na potência oriental “algum movimento análogo ao que é o MST no Brasil”. “Não, porque em 1949 eles fizeram reforma agrária. [Para] vocês que querem tanto derrotar o MST, a fórmula é simples: façam a reforma agrária que no outro dia desaparece o MST”, alfinetou o depoente.

Solidariedade

Meia hora antes do início da audiência, a chegada de João Pedro Stedile à Câmara atraiu olhares de todos os que estavam nas proximidades da entrada da Casa, onde o líder sem terra foi recepcionado por dezenas de pessoas que ali se amontoavam para prestar solidariedade. Deputados federais, lideranças religiosas, sindicalistas, integrantes de diferentes movimentos populares se aglomeraram e, em coro, entoaram gritos de guerra e canções sobre a reforma agrária como forma de abraçar Stedile com palavras de apoio. A partir dali, o entrevistado seguiu até a sala da CPI acompanhado por um cortejo que atravessou os corredores e o deixou na entrada do plenário. “Estamos aqui em nome do modelo de sociedade que a gente busca para prestar o nosso apoio a quem ajuda a organizar o povo no Brasil”, disse o pastor Luís Sabanay.

“O que me move a estar aqui é que eu quero a terra para quem nela planta.  Eu quero a natureza viva porque nós não comemos a natureza morta. E o que me move em estar aqui é porque, para além de não deixar a mão de ninguém escapar, é [importante] estarmos juntos num momento como este. É dizer que o MST nos move porque ele nos ensina o que minha religião já traz no seu dia a dia, que é [a ideia de que] nós precisamos da natureza porque sem ela não tem orixá”, disse Makota Celinha, coordenadora-geral do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira (Cenarab), que ganhou uma saudação pública de Stedile logo no início da sessão.

Deputados que não pertencem ao quadro da CPI também se somaram ao cortejo para abraçar Stedile e desejar força ao depoente. “O MST é um movimento pelo qual todos nós prezamos, que luta pela democratização da terra, demonstra ao povo brasileiro que é preciso combater a ultradireita, defender a democracia, dividir renda. É um movimento que mora no nosso coração, por isso vim aqui para, em nome dele, cumprimentar todo o MST”, disse o deputado Rogério Correia (PT-MG).

Políticos de outras instâncias também compareceram ao local com o mesmo objetivo. É o caso  da deputada estadual de Pernambuco Rosa Amorim (PT), que é filha de assentados e tem vínculo com o MST. “Temos uma bancada eleita da reforma agrária em vários estados do país e, neste momento tão importante, que também é uma batalha da luta institucional, a gente tem que estar aqui para prestar a nossa solidariedade. Hoje nós vamos dar um recado ao Brasil sobre o que o MST faz e produz”, ressaltou.

Uma presença que atraiu holofotes no local foi a do governador do Ceará, Elmano de Freitas (PT). Tendo vindo a Brasília para cumprir agendas em alguns ministérios, ele foi à Câmara dos Deputados para cumprimentar Stedile na CPI, onde permaneceu por alguns instantes. Em conversa com o Brasil de Fato, Elmano destacou a atuação do movimento no sertão cearense.

“No Ceará, nós conhecemos de perto o movimento dos sem-terra, que tem construído agroindústria na cadeia produtiva do leite, na região do Quixeramobim, que tem desenvolvido agroindústria na área de caprinos e ovinos, na área do mel, gerando oportunidades a milhares de famílias que viviam em situação de extrema pobreza e hoje vivem com dignidade, têm filhos fazendo faculdade, fazendo escola em tempo integral. Portanto, os sem-terra no Ceará, como é no país inteiro, representam uma organização do povo mais simples para poder viver com dignidade”, disse o governador.

Ainda na linha de prestação de solidariedade à entidade, diferentes parlamentares do campo progressista usaram bonés do MST durante a reunião da CPI como forma de prestar uma homenagem a Stedile e à organização. “Uso com muito orgulho e como forma de reconhecer a luta pela reforma agrária no Brasil”, disse Fernanda Melchionna (PSOL-RS). O deputado Nilto Tatto (PT-SP) também se somou ao grupo. “Usar o boné do MST na CPI que quer criminalizar o movimento é um ato de resistência, solidariedade e agradecimento por tudo que a entidade já fez pelo povo brasileiro”, declarou à reportagem.

Nos bastidores, os militantes que compareceram ao local foram penalizados com um fato inusitado que despertou a atenção de jornalistas e de uma parte do público que frequenta as comissões legislativas: a mesa da CPI reservou para a sabatina o plenário 4 da Câmara, que comporta oficialmente 80 pessoas e não é um dos maiores da Casa. Enquanto isso, também chamou a atenção o fato de ter ficado vazio ao longo da tarde o plenário 2, um dos maiores, que tem capacidade para 150 pessoas.

Além de ter impedido que a maior parte dos apoiadores de Stedile adentrasse a CPI para acompanhar a sabatina de perto, a situação levantou a suspeita de que a medida foi proposital e teve, por parte dos bolsonaristas, o intuito de evitar grande apoio popular presencial ao líder do MST. O Brasil de Fato tentou saber o motivo da escolha pelo plenário 4 diretamente com Zucco, mas não conseguiu acesso ao presidente da CPI.

MST

Em conversa com o Brasil de Fato logo após o encerramento da sabatina, a militante Ayala Ferreira, uma das lideranças do Setor de Direitos Humanos do MST, avaliou que Stedile demonstrou superioridade diante de parlamentares da CPI em termos de capacidade política e conhecimento do assunto.

“Nossa leitura é de que ele deu uma aula, o que já imaginávamos que ocorreria. Ele não veio aqui pra convencer aquele setor agromilitar, bolsonarista da importância da reforma agrária e da relevância do MST nessa pauta. Veio pra dialogar com a sociedade brasileira, com todas as pessoas que acompanharam [a sabatina] pelas nossas redes, pelas páginas que divulgaram [o depoimento] pra ver tudo o que temos dito: que o MST vai fazer 40 anos de história e luta pela democratização da terra destacando a necessidade da reforma agrária”, disse Ayala.

Em nota pública enviada à imprensa logo após a sessão da comissão, a direção nacional do MST demonstrou avaliação positiva da participação de João Pedro Stedile no colegiado, mas também fez críticas à condução dos trabalhos por parte da CPI. “Esta CPI tramita há três meses, sob comando de parlamentares bolsonaristas, na tentativa de criminalizar o MST e impedir a retomada da Política Nacional de Reforma Agrária, além de tentar desgastar o governo federal. No entanto, a baixeza e falta de legitimidade e seriedade dos deputados bolsonaristas está levando ela a ser encerrada antes do esperado por esses próprios parlamentares”, diz o texto.

Veja aqui o vídeo do Brasil de Fato com os principais destaques das manifestações de Stedile ao longo da sessão:

Edição: Vivian Virissimo

Stedile prestou depoimento na CPI do MST com exemplar da Constituição Federal estampado diante dos olhos, na mesa que dirige os trabalhos da comissão / Alex Mirkhan/Brasil de Fato

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