Políticas públicas para a agricultura familiar e a agroecologia
No artigo anterior desta série procurei mostrar as dimensões, as características e o papel da agricultura familiar no universo da produção rural brasileira, em particular o da produção de alimentos. Apontei também as mudanças ocorridas nas últimas décadas, com a redução das dimensões e da significância desta categoria social. No presente artigo vou analisar as políticas públicas que condicionaram as mudanças antes descritas. Não há lugar para análises detalhadas de cada uma nem há espaço para comentar todas as políticas, de tal forma que me limitarei a indicar seus elementos mais críticos.
Diferenças entre intenção e gesto
A criação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e do Programa de Apoio à Agricultura Familiar no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, bem como os sucessivos programas de Reforma Agrária, desde o governo do presidente Sarney, tinham um objetivo implícito, nunca assumido formalmente, de ampliar a participação do campesinato na produção de alimentos, quer pelo aumento da produção dos agricultores familiares existentes como pela criação de novos produtores. Por outro lado, havia um objetivo social relevante de buscar melhorar o nível de renda dos agricultores familiares como um todo, já que era notória a situação de pobreza e de miséria em grande parte deste público.
Estas políticas tinham outro ponto importante: a definição do modo ideal de produção para que os agricultores familiares pudessem aumentar a sua produção e sua renda. Os sucessivos governos que formularam, ampliaram e ajustaram estas políticas tiveram forte apoio das organizações dos agricultores familiares e dos Sem-Terra: a CONTAG, a FETRAF (depois CONTRAF) e a Via Campesina (englobando o MST, o MPA e o MMC). Este apoio foi, em vários momentos, crítico às políticas adotadas, quer por considerarem as medidas insuficientes na forma quer no volume de recursos a elas destinado.
Mas os movimentos nunca puseram em questão o ponto chave que orientou as políticas. Para os governos e para os movimentos sociais no campo o método para fazer prosperar a agricultura familiar era a adoção de um modelo de produção centrado no uso de insumos químicos, sementes melhoradas e maquinário, e uma maior integração com o mercado. Este modelo, chamado na literatura nacional e internacional de Revolução verde, e adotado pelos grandes produtores do agronegócio, era visto como a única possibilidade existente. O modelo alternativo da agroecologia era visto como irrelevante ou, no máximo, como algo dirigido a um nicho de produtores e de consumidores de alta renda.
Os críticos a esta estratégia foram poucos, localizados em espaços minoritários na academia e em ONGs defensoras da agroecologia, como a que eu fundei em 1983, a AS-PTA. A crítica básica tinha várias vertentes: o fato notório em inúmeras experiências internacionais do efeito deletério do modelo agroquímico sobre o público-alvo, gerando uma diferenciação entre um grupo minoritário de “viáveis” e uma maioria de “inviáveis”.
Entre vários intelectuais, inclusive de esquerda, este impacto era visto como inevitável e até desejável. O destino dos “inviáveis” teria que ser tratado em um outro universo, o das políticas sociais, que amortecessem as dificuldades dos pobres rurais, “enquanto a economia do país criava condições para absorvê-los em outros setores produtivos” (apud Pedro Malan, ministro da economia de FHC, com o qual concordavam vários intelectuais de esquerda que participaram da formulação ou reformulação das políticas agrícolas nos governos de Lula e de Dilma).
A visão estratégica deste forte grupo de intelectuais e de políticos era a de uma agricultura “modernizada” pelos padrões do modelo agroquímico e motomecanizado, centrada na grande produção de monoculturas, com uma agricultura familiar com papel secundário e orientada para alguns nichos de produção, como hortaliças. O modelo sócio-produtivo implícito era o dos Estados Unidos, com uma agricultura familiar residual, da ordem dos 3 a 4% dos produtores.
Em setores da esquerda, este movimento de expansão do agronegócio era visto como uma etapa no processo de implantação do socialismo, que, em algum momento no futuro, expropriaria as grandes fazendas para substituí-las por kolkozes e sovkozes nativos, ou seja, por empresas estatais. Outros defenderam um sistema futuro de propriedades coletivas, supostamente inspiradas em experiências cubanas ou nicaraguenses (nos dois casos a realidade era bem outra, mas cada um vê o que quer ver).
Nem todos os políticos que governaram neste longo período de quase 30 anos tinham esta visão “modernista” e cínica, que promovia um desenvolvimento que os autores sabiam ser excludente e que levaria ao extermínio da agricultura familiar. Muitos acreditavam piamente que poderiam promover o agronegocinho e manter e mesmo expandir a base da agricultura familiar.
Os dirigentes dos movimentos sociais do campo certamente estavam entre eles. A minoria de acadêmicos e militantes da agroecologia não deixou de apontar as consequências sociais, econômicas e ambientais nefastas do modelo sendo defendido por todos, direita e esquerda, com vários matizes e subtextos, mas com coerência nas medidas sendo aplicadas.
Ao longo de todos estes anos o que predominou nas políticas públicas foi o apoio ao grande agronegócio. Sem este apoio poderoso do Estado, o agronegócio não teria sobrevivido. Prova disso é o quase um trilhão de dívidas de empréstimos. Apesar de inúmeras anistias e renegociações que reduziram em vários momentos os montantes devidos a frações diminutas, o agronegócio sempre voltou a se endividar, pois isto tem provado ser um bom negócio. O agronegócio foi ainda privilegiado por isenções de impostos, suspensão de multas ambientais, subsídios nos juros bancários.
Tudo se fez para dar ao agronegócio a rentabilidade que não tinha nem tem em condições normais de mercado. Isto não é uma jabuticaba brasileira. Nos EUA e na União Europeia o conjunto de favores econômicos faz com que cada dólar ou euro produzido pelos respectivos agronegócios tenha uma contrapartida de valor semelhante da parte dos Estados. Ainda assim, em um caso como no outro as dívidas do setor são monstruosas.
Os benefícios fiscais e outros foram bem mais amplos para os maiores produtores, muito embora os agricultores familiares que aderiram ao modelo tenham recebido sua quota de benesses. Fica a pergunta sobre por que o maior sucesso do agronegócio e o relativo insucesso do agronegocinho, verificada na expansão do primeiro e na redução do segundo ao longo dos anos.
Há várias razões. Em primeiro lugar a agricultura familiar tem piores condições naturais de produção e pequena disponibilidade de terra, por razões históricas explicadas em artigos anteriores.
Em segundo lugar, na lógica do modelo produtivo agroquímico e motomecanizado, quanto maior a escala, maior a produtividade do trabalho, muito embora a lucratividade por unidade de área possa ser menor do que em sistemas agroecológicos.
Em terceiro lugar, o agronegócio aprendeu rapidamente que os maiores lucros estavam na produção de matérias primas para o mercado internacional, contando com o dólar forte e os preços das comodities mais altos do que os produtos para o mercado interno. A agricultura familiar levou um tempo para aprender que, com os altos custos do modelo agroquímico e as decorrentes dívidas bancárias, produzir alimentos para um mercado interno deprimido pela pobreza não era uma boa aposta. Hoje, o agronegocinho aderiu à lógica dos grandes e também se voltarem para as commodities. Mas um número considerável quebrou neste caminho, como vimos no artigo anterior.
O que foi dito acima tem que ser relativizado pelo fato de que a grande maioria da agricultura familiar sequer entrou neste processo de modernização na direção do agronegocinho. O grande motor deste processo foi o crédito do PRONAF e ele não alcançou nem a metade dos agricultores familiares, com exceção de dois anos no primeiro governo Lula, como veremos mais adiante. A grande massa dos agricultores familiares não tinha condições de acessar o crédito bancário ou não quis correr este risco.
Para concluir: seja por intenção, seja sem ela, as políticas públicas por ação ou omissão, afetaram negativamente a agricultura familiar e resultaram na redução do tamanho e do papel do campesinato no mundo rural brasileiro.
A política de crédito
No governo FHC, o PRONAF beneficiou principalmente a camada da AF mais capitalizada, já com acessos eventuais ou regulares ao crédito bancário, já parcialmente engajada no modelo agroquímico e motomecanizado, mas ainda vinculada à produção de alimentos para o mercado, e localizada em ampla maioria na região sul.
Em 2002/2003, menos de 400 mil agricultores familiares foram “beneficiados” por estes créditos. O governo Lula promoveu uma forte ampliação tanto dos recursos do programa como no número de beneficiários e, sobretudo, com uma distribuição muito mais ampla, tanto por região como por tipo de agricultura familiar.
O volume de crédito subiu de 2 bilhões em 2002 para 30 bilhões em 2015, enquanto o número de beneficiários chegou a um máximo de 2,2 milhões em 2006, caindo para 1,5 milhões no momento do golpe que derrubou Dilma Rousseff. Tanto o volume como o número de beneficiários voltou a se concentrar no sudeste e sobretudo no sul.
Na região nordeste prevaleceu esmagadoramente a participação de agricultores pobres (mas não a maioria dos mais pobres), que acessaram o chamado PRONAF B, espécie de microcrédito de investimento, com valores mais baixos do que os de custeio nas regiões sul e sudeste. Inicialmente, os agentes bancários tiveram papel importante na orientação do uso do crédito e algumas propostas “de gaveta” ganharam corpo, tais como a criação de gado bovino de leite com a compra de animais de raça e de alta produtividade.
Foi um desastre total, mas não durou muito. Com o tempo passou a prevalecer a intenção dos produtores, embora o direcionamento para bovinos tenha continuado. Foi dominante em muitos territórios o investimento em infraestruturas produtivas como estábulos, poços, cacimbas e açudecos e, sobretudo, cercas para os pastos e plantio de forrageiras. Não é possível dizer se foi o efeito do crédito com este fim que levou a uma considerável especialização de uma parcela mais bem aquinhoada em termos de área disponível e uma diminuição de áreas de lavouras permanentes, verificada em várias regiões.
A região nordeste teve a maior evasão de agricultores familiares de todo o Brasil, quase 350 mil. No entanto, não está tão clara a causa deste abandono do campo como no caso da região sul, tratado no parágrafo abaixo. Vai ser preciso aprofundar o estudo deste fenômeno e aqui só vamos alinhavar algumas possíveis causas, sem colocar ordem de importância.
Como primeira hipótese, há o envelhecimento da população rural, mas isto levou uma parte importante dos agricultores familiares do nordeste a obterem até dois salários-mínimos como aposentadoria do casal. Por experiência de longa vivência com comunidades de agricultores em vários estados da região, posso dizer que em muitos casos a aposentadoria não implicou no abandono do mundo rural. Muito pelo contrário, o envelhecimento e as aposentadorias significaram a permanência e o investimento nas propriedades.
Nos casos em que os velhos se retiraram da área rural ou da produção agrícola pode ter ocorrido a falta de sucessores nas propriedades, já que a migração dos jovens para cidades maiores na região ou no “Sul Maravilha” (São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília) foi um traço marcante dos fluxos populacionais por décadas.
Uma segunda causa pode ter sido a repetida incidência e intensidade das secas, cujos efeitos sobre os mais pobres e menos aquinhoados em termos de infraestruturas hídricas é sempre maior. Indicativo deste efeito é o fato de que nas comunidades onde houve mais ampla implantação de cisternas para uso caseiro ou para irrigação a evasão foi pouco significativa. É bom lembrar que este movimento de construção de cisternas não foi financiado pelo sistema bancário e pelo PRONAF, mas por programas como o P1MC (Programa Um Milhão de Cisternas) o P1+2 (Programa Uma Terra e duas Águas). Ambos os programas financiavam as construções nas propriedades através de doações geridas, sobretudo, pela sociedade civil organizada na ASA (Articulação do Semi Árido).
Uma terceira causa é o alto nível de insegurança e violência no mundo rural, e não só no Nordeste. Este crescente processo levou muitos agricultores familiare, velhos ou não, a irem residir nas “pontas de rua” nas aldeias, alguns mantendo um dificultado trabalho no campo e outros abandonando de vez a agricultura.
Finalmente, foram muitos os agricultores familiares que ficaram inadimplentes dos créditos PRONAF, mesmo com várias anistias e renegociações favoráveis das dívidas.
Não existem dados, ao meu conhecimento, dando números para cada uma destas causas, mas desconfio que os inadimplentes que deixaram o campo são os mais numerosos entre os 350 mil agricultores familiares a menos na região.
Na região sul, a mais significativa, em volume de recursos e em número de beneficiários, a forma de crédito mais utilizada foi o PRONAF C, mas também os D e E, cada um com limites mais altos para tomada de empréstimos. Dois terços dos agricultores familiares da região acessaram regularmente os créditos bancários e vários dos outros o fizeram de forma intermitente. Nesta região houve uma diferenciação forte entre os bem-sucedidos e os fracassados, sendo esses últimos perto de 185 mil famílias que deixaram de ser registradas no censo de 2017, 23% dos agricultores familiares existentes em 2006. Como não há dúvidas, nesta região, sobre a orientação prioritária do crédito (comodities milho e soja representaram 50% de todo o crédito PRONAF nos últimos anos e quase tudo na região sul), também se deve inferir que a inadimplência foi uma das causas maiores da evasão rural.
Na região sudeste, os créditos do PRONAF foram mais diferenciados, com o B prevalecendo no norte semiárido de Minas Gerais e no Vale do Jequitinhonha e, o PRONAF C prevalecendo no resto da região, com o Estado de São Paulo recebendo uma parcela maior de PRONAF D e E.
A região norte repete o perfil do uso de crédito do nordeste, com maior peso no PRONAF B e a região Centro Oeste se aproximou mais do perfil da região sul. Em ambos os casos o número de beneficiários foi bastante mais baixo de que no nordeste, sudeste e sul. Estas duas regiões tiveram um aumento no número de agricultores familiares entre os dois censos, de 68 e de 6,2 mil AFs respectivamente. No caso da região norte este foi o resultado do superávit de novos agricultores beneficiários dos programas de Reforma Agrária sobre o número dos que deixaram o campo.
Para resumir, o crédito foi a principal política de promoção do desenvolvimento da agricultura familiar desde os anos 1990 até agora, e continua sendo. Apesar de algumas aberturas para outra destinação a quase totalidade dos recursos de custeio do PRONAF foram voltados para promover a adoção do modelo agroquímico e motomecanizado, levando a agricultura familiar, sobretudo na região sul, a abandonar a produção alimentar pelas commodities e a sofrer pesadamente com o endividamento.
Já na região Nordeste o crédito PRONAF B foi fortemente orientado para infraestruturas de criação de gado bovino, resultando em uma diminuição da produção alimentar de base. Também nesta região e tipo de produtor a inadimplência foi um elemento importante na evasão rural verificada.
A política de Assistência Técnica e de Extensão Rural
Embora com muito menos abrangência do que o crédito, esta foi a segunda mais importante política de apoio à agricultura familiar nas últimas décadas.
Para começar, é bom lembrar que os maiores agentes da Assistência Técnica e de Extensão Rural (ATER), foram e são as Empresas de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER), vinculadas aos governos estaduais. As Emater, embora vivendo uma crise continuada em quase todos os Estados, ainda mantém escritórios em uma boa parcela dos municípios do país, com perto de 15 mil técnicos de campo. A orientação destas empresas estatais sempre foi voltada para a promoção do modelo agroquímico, embora pequenas exceções foram se ampliando em alguns estados, adotando o modelo agroecológico. Esta marca tem a ver, não somente com o amplo domínio da adesão ao modelo do agronegócio, desde os anos 1980 sendo estendido para a agricultura familiar (agronegocinho), mas também com o tipo de formação oferecida nas universidades de ciências agrárias de todo o país. Mesmo quando algum governo estadual decidiu fazer experimentos na direção da promoção da agroecologia, a nova prática ficou limitada pela falta de preparo dos técnicos disponíveis nas Emater.
A Assistência Técnica e Extensão Rural não estatal é muito menor e pode ser dividida entre cooperativas de técnicos, vinculadas aos movimentos sociais e ONGs independentes. Calculo que estas organizações não disponham de mais de uns 800 técnicos. A maior parte destes últimos foi formada na prática da promoção de processos de desenvolvimento agroecológico, com resultados variados e muita tentativa e erro. Ao contrário da promoção do agronegocinho, que tem técnicas e métodos bem definidos e estabelecidos, na promoção da agroecologia tanto as técnicas como as metodologias estão em gestação e carecem de uma elaboração mais aprofundada, sistematizando as já significativas experiencias existentes.
Os recursos federais da política de Assistência Técnica e de Extensão Rural foram dirigidos, no primeiro governo de Lula, de forma quase equilibrada entre as Emater e as cooperativas e ONGs.
A Política Nacional de Assistência Técnica e de Extensão Rural (PNATER), aprovada em seminário com ampla participação da sociedade civil em 2003, definiu a agroecologia como o modelo a ser adotado nos projetos financiados pelo MDA. Não há uma avaliação dos resultados destes investimentos e é muito pouco provável que as Emater tenham conseguido seguir esta orientação. Já as ONGs da Assistência Técnica e de Extensão Rural agroecológica certamente seguiram a orientação prevista pelo governo, mas também neste caso não temos uma avaliação de resultados.
A partir do segundo governo de Lula e nos de Dilma, os recursos do DATER/MDA foram sendo prioritariamente dirigidos para as Emater. A orientação para o uso destes recursos na promoção da agroecologia seguiu vigente. As Emater passaram a assinar contratos com o governo, recebendo um pacote para ser empregado da forma que cada estado achasse melhor. Tampouco se sabe qual o resultado destes investimentos.
O financiamento das entidades de Assistência Técnica e de Extensão Rural da sociedade civil passaram a ser feitos por contratos e os recursos disputados em chamadas públicas para projetos. Foram menos recursos para este segmento da Assistência Técnica e de Extensão Rural, mas posso dizer que a quase totalidade das ONGs de Assistência Técnica e de Extensão Rural vinculadas à Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) foi beneficiada.
Não é possível saber, com os dados disponíveis, quantos agricultores familiares receberam assistência técnica com recursos federais e qual a parte da promoção da agroecologia no uso destes recursos. Entre as ONGs de Assistência Técnica e de Extensão Rural acredito que o número seja inferior a 20 mil.
A política de Assistência Técnica e de Extensão Rural foi objeto de um permanente confronto entre a sociedade civil e o DATER, que explodiu na primeira conferência de Assistência Técnica e de Extensão Rural, no primeiro governo de Dilma Rousseff. Nesta conferência ficou constatada a enorme dificuldade de se executar os projetos de desenvolvimento agroecológico com os condicionantes colocados pelo DATER nas chamadas. Este conflito ficou conhecido como o “debate da operacionalização da política”. O Comitê de ATER do CONDRAF passou a elaborar o novo formato para as chamadas junto com os técnicos do MDA. Houve avanços na formatação, que ficou mais flexível, mas os entraves maiores persistiram, justificados pelo DATER como exigências da lei. Apelidei este processo, na época, de “colocar uma bola em um buraco quadrado”.
A meu ver, houve um erro de partida na definição da PNATER. Ao direcionar todos os recursos para a promoção da agroecologia a política ignorou as dificuldades em aplicar a decisão, em particular a falta de quadros técnicos capacitados nas práticas e métodos da agroecologia para a quantidade de recursos disponibilizada. Por outro lado, os formuladores da operacionalização da política no DATER não tinham conhecimento teórico ou prático sobre o como fazer a promoção da agroecologia e muitos sequer tinham uma posição favorável a esta proposta.
O resultado é que esta experiência foi bastante problemática e está na hora de se fazer uma revisão total da política e nas formas de sua aplicação, pensando nos condicionantes existentes na atual etapa da adesão à agroecologia, tanto em conhecimentos como em quadros adequados.
Política de Reforma Agrária
A Reforma Agrária tem uma história já longa. Ela teve inicio tímido no governo Sarney, foi ampliada no de FHC e mantida, com alguma intensificação, nos dois governos de Lula. Nos governos de Dilma Rousseff o processo de desapropriações e de implantação de assentamentos foi sendo rapidamente desacelerado. Segundo um dos diretores do INCRA neste período, a Reforma Agrária estaria já essencialmente realizada e novos assentamentos se voltariam para resolver situações localizadas, sobretudo onde houvesse conflito. A prioridade passou a ser “viabilizar os assentamentos”, o que reconhecia, implicitamente, que a parte da Reforma Agrária voltada para a produção não estava funcionando.
Quantos foram os assentados desde que a Reforma Agrária ganhou mais musculatura no governo FHC, até agora? Segundo o INCRA os dados são os seguintes:
FHC – 547 mil, com média anual de 68 mil
Lula – 614 mil, com média anual de 77 mil
Dilma – 134 mil, com média anual de 24 mil
Temer – 10 mil, com média anual de 4 mil
Bolsonaro – 9 mil, com média anual de 2,3 mil
Total – 1.314.000
Os números (arredondados) são impressionantes, mas escondem inúmeros problemas.
Por um lado, é preciso registrar que a Reforma Agrária foi sendo realizada nas terras onde havia a menor resistência do latifúndio e do agronegócio. A parte de terras públicas utilizadas para assentar agricultores familiares foi importante e como elas se encontram sobretudo nas regiões de fronteira agrícola, uma parte dos assentados foi sendo instalada em regiões distantes das suas áreas de origem (norte, centro-oeste), o que cria problemas de adaptação dos conhecimentos de cada um às novas condições ambientais e agrícolas.
Em segundo lugar, foi frequente a desapropriação de áreas de latifúndios oferecidas pelos próprios proprietários e que eram, evidentemente, as terras de má qualidade e degradadas.
Um terceiro problema foi a atribuição de lotes menores do que o indicado tecnicamente, para poder assentar mais agricultores familiares rapidamente. O próprio desenho dos lotes foi objeto de muita reclamação dos assentados, já que aconteceu com frequência uma distribuição burocrática, sem levar em conta as condições de cada lote. É claro que esta não foi a tônica, mas chegou-se a dizer que agricultores receberam lotes dentro d’água e outros pendurados em um penhasco.
Um quarto problema tem a ver com o segundo, a localização isolada de muitos assentamentos, mal servidos por estradas e meios de transporte e acesso à luz e água. Distantes de mercados e de serviços públicos essenciais como escolas e postos de saúde os assentados padeceram nos rincões perdidos, mais do que já era o quinhão da agricultura familiar.
Um quinto problema está ligado com a precariedade que prevaleceu em muitos assentamentos, seja nas casas ou quaisquer benfeitorias produtivas.
O sexto problema foi o enorme tempo transcorrido entre receber a terra e receber meios de produção, às vezes anos. Isto levou, com frequência, ao uso dos recursos naturais disponíveis como forma de sobrevivência, sobretudo o desmatamento para produção de carvão.
Finalmente, o sétimo problema tem a ver com os casos em que (e quando) houve financiamento para a produção e para a assistência técnica. Mais uma vez, tanto os créditos como a ATER dirigiu-se para a adoção do modelo agroquímico e os resultados foram ainda mais desastrosos do que entre os agricultores familiares não assentados.
O INCRA nunca publicou um estudo abrangente de avaliação da Reforma Agrária, realizado no início do governo Dilma. Tive acesso a uma síntese que confirma o que escrevi acima. Não houve sequência na aplicação das conclusões, entre outras a de privilegiar a produção agroecológica.
Todos estes problemas não deixaram de impactar negativamente o programa. Segundo algumas avaliações do próprio INCRA, que circularam oficiosamente, o índice médio de lotes sem ocupante até o início de Dilma II era de 25%. Outras avaliações apontam para um movimento de reconcentração de lotes e de substituição (com ou sem venda da terra) por novas famílias e que chegaria a outros 25%. Chegam a ser milagrosos os muitos exemplos de assentamentos bem-sucedidos e é bom notar que, desde 2010, a Via Campesina abraçou a proposta agroecológica como modelo a ser implantado em toda a agricultura brasileira e tem exemplos notáveis em vários assentamentos.
Repensar o modelo de Reforma Agrária adotado vai ser uma imposição desta realidade de fiasco relativo, mas também pela necessidade (que vamos discutir em outro artigo) de se promover a reocupação do agro pela Agricultura Familiar.
Seguros, preços mínimos e compras públicas
A política de seguro padeceu de um problema similar ao do crédito, ao qual foi atrelada. O crédito sempre esteve dirigido a financiar um produto determinado e não o conjunto das atividades nas propriedades de Agricultura Familiar e isto foi um fator importante no movimento de adoção de monoculturas pela Agricultura Familiar. O seguro também não considerou toda a propriedade, mas a parte dela que recebeu financiamento.
Na verdade, pode ser dizer que quem estava segurado era o crédito e não o agricultor. Por outro lado, se foi possível, com muita luta, obter modalidades de crédito não orientados para o emprego de agroquímicos e sementes melhoradas, o seguro estava ancorado na aplicação de práticas produtivas definidas como corretas pela EMBRAPA, e elas eram todas agroquímicas.
Esta dicotomia resultou, já na primeira safra do governo Lula, na recusa dos bancos em enquadrar as perdas advindas de uma seca na região sul como suscetíveis de cobertura pelo seguro. Todos os agricultores familiares que tiveram recursos do PRONAF C e aplicaram práticas agroecológicas ficaram a descoberto e muitos voltaram a aplicar as práticas convencionais para garantir o seguro.
Os ajustes do seguro para que venha a cobrir a produção agroecológica vão ser muitos e as soluções complexas.
Há pouco o que falar sobre a política dos preços mínimos a não ser que ela se deu em uma escala muito inferior às necessidades da Agricultura Familiar. Por outro lado, com a necessidade de se atrair agricultores familiares produtores de commodities de volta para a produção alimentar (que discutiremos em outro artigo), a política de preços mínimos para composição de estoques reguladores vai precisar ser muito atraente para que esta opção aconteça.
As compras governamentais através dos mecanismos como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional da Merenda Escolar (PNAE) vão ter que passar por uma revisão dos seus procedimentos, hoje unanimemente considerados burocráticos e mal adaptados. A ideia básica destes programas é correta, mas sua aplicação ficou aquém das expectativas, quer por problemas operacionais quer por terem uma dimensão limitada. O mais interessante deles, o PAA, nunca beneficiou mais do que 500 mil agricultores, 12% da média dos AF existentes nas últimas décadas.
Agroecologia e produção orgânica
Embora as políticas públicas orientadas para favorecer a transição agroecológica tenham sido bastante restritas nas suas dimensões elas merecem uma análise por serem o caminho para o futuro, inclusive em decisões da equipe de transição do novo MDA.
A meu ver, o movimento agroecológico coordenado pela ANA, onde estão presentes todos os movimentos sociais do campo brasileiro, cometeu um equívoco similar ao do debate sobre a política de ATER.
Frente a uma pergunta da presidente Dilma Rousseff para a representação das mulheres da CONTAG na Marcha das Margaridas de 2011, a resposta foi: “queremos um programa de promoção da agroecologia”. Dilma Rousseff pediu que lhe apresentassem uma proposta e o governo financiou um amplo debate envolvendo a sociedade civil, coordenada pela ANA, a convite da CONTAG, e membros de diversos ministérios. Este espetacular exercício levou mais de três anos e o resultado foi a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), assinado por Dilma Rousseff no começo do seu segundo governo.
De debates nas bases do movimento até encontros estaduais e nacionais, o PNAPO se traduziu depois um Plano (PLANAPO). Foram discutidas todas as políticas que pudessem ter alguma conexão com o tema da promoção da agroecologia: crédito, seguro, ATER, pesquisa, mercado, educação técnica e universitária, compras governamentais, meio ambiente. O objetivo era, não apenas definir cada uma das políticas, mas concatená-las em conceitos unificados e operacionalização coerente. A meta era chegar a uma proposta de transformação total da AF e ainda inibir algumas das piores práticas do agronegócio, através de um programa de redução do uso de agrotóxicos.
A ambição era desmedida em dois níveis: o primeiro era a pouca experiência acumulada tanto no governo como na sociedade civil, inclusive na academia, no que tange várias destas políticas. O segundo era a baixa adesão à esta proposta nas várias instâncias do governo. Para ser minimamente aplicável a política e o Plano teriam que ser aprovados por inúmeros departamentos de muitos ministérios e a sua aplicação iria cobrar a reorientação maciça de recursos públicos. E, provavelmente, implicaria também em mudanças em vários pontos da legislação vigente.
Isto nunca aconteceu. A única política que foi discutida em instâncias do governo com o objetivo de adequá-la aos princípios e propostas do PLANAPO foi a de ATER. Isto se deu porque, como já foi discutido anteriormente, esta política vinha sendo objeto de luta entre convencionais e agroecologistas desde 2003, nos espaços do comitê de ATER do CONDRAF e do DATER/MDA.
A intenção de Dilma Rousseff (e provavelmente da própria CONTAG) era mais concreta e modesta: formular um programa limitado de agroecologia e não uma macro política de múltiplas vinculações com diferentes ministérios e dirigida à totalidade da agricultura familiar. Dilma Rousseff chegou a formular a ideia de um programa objetivando ampliar a base de produtores agroecológicos e orgânicos de 50 para 200 mil em três anos. Não cabe aqui discutir se mesmo este objetivo muito mais modesto era viável ou não (a meu ver ele não era).
Na prática, ocorreu o que é mais comum na ação governamental: todos os recursos existentes, dispersos em departamentos e programas de vários ministérios foram agregados arbitrariamente debaixo de um carimbo formal “PNAPO” e o plano foi lançado com pompas e glórias na segunda conferência nacional de agricultura familiar. Foi uma “vitória política” para o movimento agroecológico, capitalizado pelo governo, mas com zero efeitos concretos na promoção deste modelo produtivo.
A meu ver há uma terceira razão para não tentar esta macro mudança geral e radical nas políticas que afetam a Agricultura Familiar. Mesmo que tudo fosse aprovado por todo mundo no governo, havia ainda um mundo de definições mais concretas sobre o como levar à prática tanta mudança. Por outro lado, condicionantes mínimos para que este processo avance não estão dados e não se darão harmonicamente e de forma generalizada. As mudanças ocorrerão aos pedaços, irregularmente e em ritmos distintos, até que os acúmulos parciais permitam pensar em ajustar o conjunto de forma coerente.
Um dos problemas mais graves deste excesso de ambição está no impasse entre a necessidade de técnicos preparados nas práticas e métodos da transição agroecológica em qualidade e quantidade suficiente para facilitar a conversão da Agricultura Familiar neste caminho. E este problema não se resolve do dia para a noite.
Insisto neste ponto porque o novo MDA já nasce sob a égide de uma definição pró agroecologia e que o PLANAPO é citado como algo a ser posto em prática imediatamente. Como soe acontecer nestes casos de divórcio entre o desejável e o possível, o governo acaba operando em divórcio entre a intenção e o gesto.
A meu ver, a presidente Dilma Rousseff estava certa. Ela não entende de agroecologia, mas não lhe faltou bom senso. O que precisamos fazer agora é formular um programa restrito nos seus objetivos e metas e, sobretudo, discutir os mecanismos para implementá-lo.
*Jean Marc von der Weid é ex-presidente da UNE (1969-71). Fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA).
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Imagem: Thomas Bauer CPT/H3000