Movimento ecológico e as esquerdas: o desafio de superar a catástrofe ambiental e as injustiças sociais. Entrevista especial com Alana Moraes

“A ecologia pode oferecer, para as esquerdas, outras imagens possíveis de organização e ação”, afirma a pesquisadora

No IHU

“As esquerdas progressistas latino-americanas contemporâneas ainda têm apostado no programa do desenvolvimento, no crescimento perpétuo, para garantir a estabilidade dos governos e o que imaginam ser a soberania nacional”, diz Alana Moraes, doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na palestra “Classes sociais e ecologia: para onde vão as esquerdas?”, promovida pelo Centro de Promoção de Agentes de Transformação (CEPAT). O evento integra o ciclo de debates on-line “Habitabilidade da Terra: fraturas, emergências e releituras”.

O modo de os governos progressistas compreenderem as questões ambientais, destaca a entrevistada, implica na aposta, na aliança e no consenso de seguir investindo no agronegócio, na mineração, na extração petrolífera e no desenvolvimento de obras de infraestrutura sobre os territórios. “A aposta extrativista estabelece zonas sacrificáveis, isto é, territórios que podem ser violados, destruídos, alagados, em nome do crescimento nacional, em nome do fornecimento de energia para garantir o que seria o progresso da indústria, das cidades, dos países”, adverte.

Na videoconferência a seguir, publicada no formato de entrevista, Alana Moraes sublinha os desafios políticos e sociais de transformação para gerar novas formas de habitar o planeta. “Isso significa dizer que o relato da catástrofe ambiental também não pode se consolidar como um problema técnico. Isto é, a ideia de que bastam novas tecnologias de energia renovável, novas sementes geneticamente modificadas, novos agroquímicos, que tornem plantas mais eficientes, para que a humanidade possa solucionar o ‘contratempo’ da crise ambiental”. E acrescenta: “Em vez de pensarmos uma imagem de transformação, que acontece em um grande momento épico de tomada de poder, podemos pensar transformações que acontecem como polinizações em um regime de visibilidade de baixa intensidade, mas que se expande e se fortalece na medida em que faz proliferar a diferença e não a homogeneização das monoculturas ou dos programas unificados”.

Alana Moraes é graduada em Ciências Sociais, mestre em Sociologia e Antropologia e doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É pesquisadora do Laboratório de Tecnologia, Política e Conhecimento (Pimentalab) da Unifesp e da LAVITS (Rede latino-americana de estudos sobre vigilância, tecnologia e sociedade), onde desenvolve ações de pesquisa e extensão.

Confira a entrevista.

IHU – Como relaciona a luta de classes e a ecologia para refletir sobre as esquerdas?

Alana Moraes – Este tema tem a ver com a relação entre as esquerdas e a ecologia, ou com a relação entre as lutas socioambientais e a noção de classes sociais, de luta de classes. Essa é uma noção central na constituição da cultura política das esquerdas de tradição marxista e socialista. Vou me referir especialmente a essa tradição teórica e política em sua relação com o movimento ambiental, com o ambientalismo e a ecologia, considerando que as esquerdas são muitas.

Ecologia e esquerdas: dois fracassos

Pensar a relação entre a ecologia e as esquerdas, como sugeriu frequentes vezes Bruno Latour, é partir assumindo dois fracassos históricos importantes. De um lado, o movimento ecológico, durante o século XX, não conseguiu fazer com que sua pauta e sua forma de atuação produzissem mobilização e adesão social volumosas, relevantes, que estivessem à altura do colapso socioambiental em curso durante o século XX. Esse colapso, que foi sendo produzido de forma mais acelerada depois da Segunda Guerra Mundial, depois da chamada Grande Aceleração, é um momento de virada importante, um ponto histórico, porque a partir da Segunda Guerra Mundial o uso dos combustíveis fósseis foi disseminado de forma massiva no mundo. É o período em que a população, no mundo todo, passa a viver em áreas urbanas e o consumo de bens materiais e a circulação de mercadoria se ampliam. De outro lado, as esquerdas socialistas, tanto do Norte quanto do Sul global, não foram capazes de incorporar, em suas pautas, formas de atuação, programas e estratégias, de forma comprometida, o problema da catástrofe ecológica e suas consequências no que se refere às injustiças sociais, isto é, as desigualdades e as violações.

Esses dois grandes fracassos juntos parecem ter contribuído bastante para a situação alarmante de uma quantidade de evidências sem precedentes que nos dizem, de muitas formas, que já ultrapassamos muitos dos limites estipulados na década anterior em relação às mudanças climáticas. São evidências que também se expressam em eventos climáticos extremos, que produzem cada vez mais desastres históricos e inéditos, os quais são cada vez mais preocupantes no tocante ao aumento da temperatura dos oceanos, da redução da biodiversidade, das alterações dos ciclos meteorológicos de chuvas e secas. Estamos presenciando a tragédia do que está acontecendo no Rio Grande do Sul, mas também na Líbia e em diversas partes do mundo.

Os eventos climáticos se expressam de maneira bastante radical, alterando o território, a vida de populações e ecossistemas inteiros. Novas cepas virais surgem pela expansão da fronteira agrícola e da pecuária industrial. Acabamos de sair de uma experiência inédita e histórica de pandemia e tudo isso acompanhado por deslocamentos forçados de populações, perdas humanas irreparáveis, vulnerabilização de populações mais pobres, violações de direitos socioterritoriais dos povos da terra. Ou seja, não faltam evidências da catástrofe em curso.

IHU – O que falta para tratar dessas questões de outro modo?

Alana Moraes – Não é um problema de informação ou de evidência. O que falta, entretanto, é uma perspectiva de ação coletiva capaz de fazer frente a esse cenário de aceleração da catástrofe em curso. Nos termos marxistas, poderíamos falar da falta de um sujeito coletivo que possa conduzir essa transformação, um sujeito coletivo que nem a tradição socialista nem os movimentos ecologistas foram capazes de produzir durante o século XX.

Latour sugere que este novo sujeito coletivo seja chamado de terrano. Para ele, são os povos vinculados à terra, ao planeta Terra, que deveriam atuar na defesa do planeta, contra aqueles que têm planos de saírem da Terra, de colonizarem Marte, a Lua etc., que são os extraterrestres.

Eduardo Viveiros de Castro sugere que esse sujeito coletivo já existe e são os povos indígenas. [Dipesh] Chakrabarty diz que esse sujeito coletivo é a espécie humana que precisa se constituir como sujeito propriamente político, portador de interesses comuns na defesa da terra contra a catástrofe ambiental.

IHU – Como o sujeito coletivo pode dar conta do desafio histórico de transformação?

Alana Moraes – Bruno Latour e [Nikolaj] Schultz, sociólogo dinamarquês, escreveram recentemente um livro chamado “Memorando sobre a nova classe ecológica: Como fazer emergir uma classe ecológica, consciente e segura de si” (Vozes, 2022). Eles usam a ideia de classe ecológica, que é, evidentemente, um esforço de juntar duas tradições, a ecologia e o marxismo. Para eles, a noção de classe é importante e pertinente porque se constitui a partir do conflito entre um “nós” e um “eles” que possuem interesses divergentes e de um “nós” que é capaz de conduzir o movimento de transformação histórica.

Nesse livro, eles dizem que o grande problema hoje é que a certeza da catástrofe parece paralisar a ação ao invés de produzir algum movimento. Mais do que isso: hoje, não há um alinhamento evidente e óbvio entre as representações de mundo, as energias a serem desencadeadas e os valores a serem defendidos. Ou seja, podemos pensar que a crise climática nos faz encarar uma crise que também é política e epistemológica. É uma crise de mundos que não vai ser sanada com investimento na verdade, contra os negacionismos. Ela vem revelando dissensos e conflitos inconciliáveis em relação aos modos de habitar a terra.

São conflitos que vêm desencadeando um novo ciclo colonial de expropriação, de contaminação, de aniquilação, conduzido pelas políticas extrativistas e neoextrativistas que têm a ver tanto com a expansão do agronegócio e com a importância que o agronegócio e a indústria alimentícia vêm assumindo no mundo, quanto com a centralidade das políticas energéticas. É uma política extrativista que vem atuando contra povos e as relações desses povos com seus territórios. Ou seja, o problema é que neste novo diagrama de conflitos, os antigos antagonismos da luta de classe socialistas parecem não funcionar tanto.

IHU – Por quê?

Alana Moraes – Porque o mundo moderno, industrial, e seus modos de produção, que fez emergir a classe operária em seu paradigma produtivista, bem como seus modos de apropriação da terra, revela-se como o motor da destruição planetária. O colapso climático é também o colapso do mundo industrial, produzido e gestado durante o século XX. O famoso lema socialista “tudo para todos” parece cada vez mais irracional na medida em que o planeta parece não suportar mais o “tudo”. Essa ideia de bem-estar, muito difundida entre tradições socialistas durante o século XX, no fundo defendia uma ideia de justiça e de democracia que fosse garantidora do acesso, para a classe proletária, ao mesmo mundo de bens e consumo das classes dominantes. A modernização e o progresso, ideias importantes também gestadas durante o século XX, seriam o caminho natural para a superação da pobreza e da desigualdade. O desenvolvimento das forças produtivas, outro conceito fundamental para as tradições marxistas e socialistas, conduziriam a classe operária à emancipação.

A Guerra Fria foi exatamente o desenrolar dessas ideias de modernização gestadas no século XX. Ela não foi exatamente uma disputa entre dois mundos, mas uma concorrência feroz entre socialistas e capitalistas para saber quem reunia as melhores condições materiais para produzir mais, para expandir o modo de vida industrial, para usar mais recursos, para demonstrar melhor capacidade técnica de exploração da terra, de produção energética e militar e de gestão de pessoas e recursos. Ainda que ideologicamente essa concorrência entre o mundo socialista e o capitalista funcionasse nos termos da oposição liberdade e igualdade, sendo os socialistas os defensores da igualdade e os capitalistas, os da liberdade, do livre mercado, do ponto de vista das infraestruturas materiais que produzem a vida na relação com o mundo esses dois polos funcionavam a partir da mesma matriz, a da modernização e expansão do mundo industrial produtivista. A concorrência da Guerra Fria forja o século XX e produz um novo consenso, uma nova síntese, que passa a operar ideologicamente uma série de políticas direcionadas ao terceiro mundo.

O paradigma do crescimento econômico perpétuo, isto é, a ideia de que os países precisam crescer, é relativamente recente na economia. A consolidação da ideia de crescimento econômico perpétuo se relaciona com o contexto final da Guerra Fria. O paradigma do crescimento passa uma mensagem fundamental de que não há mais necessidade de conflito porque os mercados regulados do capitalismo, no pós-guerra, entregariam, desde que se garantissem bens pacíficos e estáveis, os frutos da modernização e do desenvolvimento. Em outras palavras, a ideia de desenvolvimento econômico foi importante para pacificar o terreno de iminente conflito, revolta e revolução na América Latina, durante as décadas de 1960 e 1970. Esse também foi o período de maior expansão industrial na América Latina. Os regimes ditatoriais autoritários mobilizaram essa ideia de desenvolvimento, de progresso, de crescimento, como força ideológica de legitimidade no continente.

Classes sociais e ecologia: para onde vão as esquerdas?

IHU – O que os dois fracassos mencionados têm em comum?

Alana Moraes – Um dos primeiros aspectos importantes foi que ambos produziram e aceitaram a divisão que separa questões ambientais de questões sociais. Nas esquerdas socialistas, a questão ambiental até é uma questão relevante, mas a questão central da luta de classes é a questão social: luta por justiça, contra as desigualdades, por saúde, educação. Para os movimentos ligados à ecologia, especialmente as vertentes mais conservacionistas, existe a ideia de proteger ou salvar a natureza da ação humana. Mais uma vez colocam-se, de um lado, os humanos e, de outro lado, a natureza. Ambos entendem a natureza como uma externalidade. Ou seja, trata-se da ideia de que existe uma separação fundamental entre as questões humanas, culturais, políticas e as questões ecológicas, ambientais, da natureza.

As esquerdas socialistas não conseguiam perceber a mensagem fundamental de uma das principais fábulas dos escritos de Marx, aquela que conta sobre o início do capitalismo a partir do texto dele sobre o roubo de lenha. Marx relata o momento no qual pessoas mais pobres, camponeses que se relacionavam com a terra, passam a ser proibidas de se relacionar com os ecossistemas, com os bosques onde habitavam e estavam inseridas, isto é, onde tinham uma relação com o mundo natural, que era um mundo de grande reciprocidade. Ao perder sua autonomia e terem seus modos de vida deteriorados, as pessoas se tornam operárias.

O capitalismo só foi possível, portanto, a partir do momento em que se deteriorou a relação entre as pessoas e seus ecossistemas. O movimento de proletarização foi um movimento que precisou arrancar as pessoas dos seus mundos, das relações ecossistêmicas. A luta pela manutenção de um modo de vida que é garantido por essa autonomia foi uma luta histórica daqueles que se tornariam a classe operária: a luta pelo tempo livre, pelas formas de solidariedade que garantiam o mundo em comum, como mostra o historiador marxista E. P. Thompson, quando escreve sobre o processo de formação da classe operária inglesa.

Ecologistas conservacionistas

Os ecologistas conservacionistas, por sua vez, também não perceberam que a biodiversidade do mundo natural, na maior parte das vezes, é criada, mantida e se relaciona de forma intensa com comunidades humanas. As lutas ambientais mais exitosas foram aquelas capazes de construir comunidades entre humanos e não humanos, como, no caso do Brasil, a luta de seringueiros, de pequenos extrativistas na Amazônia, a luta encampada por Chico Mendes, uma das maiores lideranças ambientais e ecológicas deste país. Ou a luta por autonomia territorial dos povos indígenas, dos quilombos, que só puderam sobreviver por um profundo conhecimento ecológico das pessoas que ali viviam. Ou seja, a separação entre humanos e natureza é moderna e não organiza os mundos dos povos da terra que vivem em um regime de biointeração profunda, como denomina o pensador quilombola Nêgo Bispo. Ou seja, não é possível pensar a natureza isolada das relações humanas.

Natureza e relações humanas

O que nos interessa é pensar o que Nêgo Bispo chama de biointeração, isto é, a relação de implicabilidade profunda entre o mundo natural e as relações humanas. São muitas as questões que dificultam a relação entre as tradições da ecologia e das esquerdas marxistas. As esquerdas progressistas latino-americanas contemporâneas ainda têm apostado no programa do desenvolvimento, no crescimento perpétuo, para garantir a estabilidade dos governos e o que eles imaginam ser a soberania nacional. Isso implica, por sua vez, na aposta, na aliança com o agronegócio, com a mineração, o petróleo, com as grandes obras de infraestrutura, que avançam sobre territórios. Essa aposta, aliás, tem se constituído como um consenso entre governos de diversos espectros ideológicos.

Consensos versus outras formas de habitar o mundo

O consenso em torno do extrativismo é estabelecido tanto por governadores conservadores – o governo Bolsonaro foi ultraextrativista – quanto por governos de esquerda na América Latina.

A aposta extrativista estabelece zonas sacrificáveis, isto é, territórios que podem ser violados, destruídos, alagados, em nome do crescimento nacional, em nome do fornecimento de energia para garantir o que seria o progresso da indústria, das cidades, dos países. Mas, cada vez mais, os governos vêm se deparando com comunidades, territórios e povos que resistem à expansão da marcha do progresso e apresentam outras formas de habitar o mundo. Esses grupos apresentam um mundo que, inclusive, questiona categorias fundamentais da equação progressista extrativista, como a noção de pobreza.

Existem relatos importantes, como o da Ana Laide [Soares Barbosa], pescadora, pedagoga e educadora popular do movimento Xingu Vivo, que atuou contra a construção de Belo Monte. Ela recorda o episódio paradigmático de quando a Dilma [Rousseff] inaugurou Belo Monte. No discurso feito à população do Xingu, a então presidente disse que, finalmente, a obra faria com que as pessoas saíssem da pobreza. Ana Laide diz que naquele momento a comunidade começou a pensar sobre a pobreza porque eles não eram pobres. O fato de a comunidade não ter shopping center, nem carro nem ar-condicionado, não significa pobreza. Ao contrário, foi a implantação de Belo Monte que produziu uma série de violações que aprofundaram a desigualdade e dificultaram a relação das pessoas com a pesca e com o rio. Foi a construção de Belo Monte que produziu um novo cenário de pobreza naquela região. Então a própria ideia de pobreza está sendo questionada pelas populações que estão sendo afetadas e atingidas por grandes obras energéticas de infraestrutura que se estabelecem nessas zonas sacrificáveis, zonas que podem ser deterioradas em nome de um suposto bem comum nacional.

IHU – Como avalia o debate sobre mudanças climáticas hoje?

Alana Moraes – Os debates sobre as mudanças climáticas e a catástrofe ambiental precisam abandonar a aposta feita pelos movimentos ecologistas nos fóruns intergovernamentais e as noções abstratas de aquecimento climático e de movimento planetário de proteção da natureza. Isso porque, de certa forma, essa visão apaga as histórias singulares de conflitos reais, de atores, de práticas de conhecimento e relações de poder em territórios específicos. O aquecimento climático não é uma noção abstrata; acontece nas lutas cotidianas em territórios e atores específicos e possui histórias muito singulares. Isso significa dizer que o relato da catástrofe ambiental também não pode se consolidar como um problema técnico. Isto é, a ideia de que bastam novas tecnologias de energia renovável, novas sementes geneticamente modificadas, novos agroquímicos, que tornem as plantas mais eficientes, para que a humanidade possa solucionar o “contratempo” da crise ambiental.

Os debates sobre as mudanças climáticas precisam partir do reconhecimento da escrita colonial que se atualiza em novas formas técnicas no que vem se vendendo como transição energética ou energia limpa, mas que segue operando zonas de sacrifício.

Lula tem gostado de repetir a fábula do Vale do Silício como a grande panaceia da transição energética no mundo. Os carros elétricos, por exemplo, dependem do aumento de mais de 900% da mineração do lítio. Esse mineral se encontra em territórios localizados majoritariamente na América do Sul, os quais já estão sendo afetados pela devastação e contaminação ecossistêmica em função da sua extração. Ou seja, o que se imagina sendo energia limpa obviamente não é nada limpa.

Crise climática

Muitos autores e ativistas estão insistindo que a crise ambiental e climática é herdeira de uma catástrofe ancestral, o colonialismo. Ou seja, não se trata de uma catástrofe que vai acontecer em um futuro próximo, mas da perpetuação de uma catástrofe que já aconteceu no passado. Malcom Ferdinand, autor de “Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho” (Ubu Editora, 2022), sugere que a ecologia decolonial deve partir das tradições de lutas do Caribe e da América Latina contra o domínio colonial. São lutas que questionam a maneira colonial de habitar a terra e de viver juntos. Para ele, ecologia decolonial faz dessa fratura colonial a questão central da crise ecológica. Segundo ele, o que pode fecundar a relação entre lutas ecológicas e lutas de tradição revolucionárias é a aposta na imbricação ecológica e política da constituição colonial da modernidade nas maneiras de habitar a terra, que estão sendo questionadas pela crise ecológica. Essas tradições de lutas revolucionárias coloniais sinalizavam e sinalizam que o capitalismo não se constitui como um sistema que organiza o modo de produção e a circulação de mercadorias no mercado. Antes, ele é um conjunto de infraestruturas, de modos de governar a vida, de governar a relação das pessoas com seus meios, de maneira a produzir um regime ecológico de conversão do mundo vivo em recurso.

Luta de classes

O capitalismo é um regime ecológico; ele produz a ecologia da escassez, que converte o mundo vivo em recurso. Ele depende da criminalização das autonomias possíveis da aliança entre humanos e não humanos, dos territórios indígenas, quilombolas, de pequenos extrativistas, pescadores e ribeirinhos. Ou seja, a luta de classes hoje pode ser tomada por uma luta que opõe aqueles que insistem em converter o mundo em recurso contra aqueles que lutam para manter, para criar, para proliferar mundos de relações interdependentes, relações multiespécies. São mundos nos quais um rio não é apenas algo fundamental para a manutenção da vida, por conta das águas e dos peixes, mas porque um rio pode ser um ancestral, um lugar de encontro entre humanos e espíritos, um lugar vivo de memória.

A luta de classes pode ser pensada como uma luta entre a simplificação ecológica contra práticas biodiversificadoras, entre tecnologias de extração contra tecnologias que garantem e ajudem a proliferar a autonomia dessas relações entre espécies e/ou em uma luta entre a expansão da metropolização da vida contra a desmetropolização da vida. Isso significa pensar sobre como vamos reelaborar as nossas demandas energéticas ou alimentares sem precisar sacrificar territórios que ficam fora das cidades, para que um pequeno grupo possa viver com acesso ilimitado a bens, energias, mercadorias, aparelhos, automóveis, alimentos, que são provenientes dos quatro cantos do mundo, a qualquer momento.

Guerra entre mundos

Podemos pensar, finalmente, que a luta de classes é uma guerra de mundos inaugurada pelo empreendimento colonial; é uma guerra que ainda está em curso. Expoentes dos estudos negros radicais dizem que o neoliberalismo é, na verdade, uma plantocacracia global; o termo vem da plantation colonial. No fundo, vivemos a expansão da tecnologia da monocultura, da plantation, que foi estabelecida nos séculos XVI e XVII durante o processo de colonização. Os plantocratas, donos das plantations coloniais, querem controlar e concentrar toda a terra, a água, o ar, animais e plantas, e empurrar as pessoas para as fábricas.

Transformação

Em vez de pensarmos qual sujeito político será capaz de conduzir um horizonte de transformação diante do novo regime climático, seria mais interessante pensarmos a partir da diversidade de formas de vida existentes no planeta, isto é, a partir de associações colaborativas entre grupos e espécies. Nesse sentido, a ecologia pode oferecer, para as esquerdas, outras imagens possíveis, inclusive de organização e ação. Em vez de pensarmos organizações centralizadas, seria mais interessante pensar um conjunto de associações de colaborações distribuídas sem comando central. Em vez de pensarmos uma imagem de transformação, que acontece em um grande momento épico de tomada de poder, podemos pensar transformações que acontecem como polinizações em um regime de visibilidade de baixa intensidade, mas que se expande e se fortalece na medida em que faz proliferar a diferença e não a homogeneização das monoculturas ou dos programas unificados. A ecologia pode nos oferecer horizontes interessantes de transformação que não necessariamente dependam de um sujeito político, mas, sim, de uma ecologia de práticas diversas que apostem muito mais na diversidade do que na homogeneização.

Foto: Laura Lopes/AFP.

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