Procurador Julio Araujo: “É necessário reconhecer, revisitar a História e buscar formas de reparação”

Tania Pacheco

Procurada por um grupo de historiadores e professores universitários, que vinham pesquisando as relações do Banco do Brasil com a escravidão nos seus primeiros anos, a partir de 1808, a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do MPF no Rio de Janeiro assumiu o desafio: investigar a questão e buscar a necessária reparação.

Se entre nós a associação do Banco à escravização causou manifestações de surpresa, a verdade é que a responsabilização de pessoas, governos e instituições quanto ao tema já se tornou algo corriqueiro em muitos os países. Tanto que a decisão do Ministério Público brasileiro foi noticiada positivamente em veículos como a BBC Brasil, o jornal inglês The Guardian, o francês Le Monde, o espanhol El País, o belga La Libre, a francesa TV5 Monde e, em podcast, a BBC britânica (a partir de 27:25).

Como cita o procurador Julio Araujo na entrevista que republicamos abaixo, diversas universidades estadunidenses também já assumiram suas responsabilidades, e o The Guardian não só reconheceu as relações de seu fundador com a escravidão, como anunciou a realização de um Programa de Reparação.

Segundo Julio Araujo, há exemplos ligados também à reparação da colonização, como da Namíbia em relação à Alemanha ou, em Portugal, um movimento que pede a derrubada do Marco do Descobrimento, em Lisboa. Diz ele: “É necessário não só reconhecer, como revisitar a História e buscar formas de reparação.” E botar o tema na agenda da sociedade brasileira, para ele, é um passo importante nesse sentido.

O Banco do Brasil já se posicionou através de sua Presidenta, Tarciana Medeiros, reconhecendo publicamente a necessidade de a instituição assumir seu papel no debate sobre a questão, junto ao MPF. A investigação será debatida em audiência marcada para o dia 28/10, às 14 horas, no auditório do MPF no Rio de Janeiro.

Abaixo, a ótima entrevista concedida por Julio Araujo a Humberto Adami, ex-presidente e atual vice-presidente da Comissão da Verdade da Escravidão da OAB. E, após, reprodução de carta aberta enviada por Frei Davi, em nome da Uneafro, ao MPF.

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Carta Aberta da EDUCAFRO Brasil em apoio ao 
Ministério Público Federal frente ao Banco do Brasil

Ao(às) Excelentíssimos(as)
Procuradores(as) da República

“A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil” (Frase [profética] contida no livro “Minha Formação”, do célebre abolicionista Joaquim Nabuco)
“Existe um nexo estreito entre a imprescritibilidade, este tempo jurídico que se escoa sem encontrar termo, e a memória, apelo do passado à disposição dos vivos, triunfo da lembrança sobre o esquecimento”
(STF, HC nº 82424/RS, Rel. Min. Moreira Alves)
“Lembremo-nos de muitas pessoas que trabalharam contra a sua vontade na nossa empresa durante os anos da Segunda Guerra Mundial”
(Placa no pátio interno do prédio administrativo da Siemens AG em Berlim)

A EDUCAFRO Brasil, representada por sua Mantenedora, FAECIDH – Francisco de Assis, Educação, Cidadania, Inclusão e Direitos Humanos, pessoa jurídica de direito privado sem fins econômicos, com sede no Rio de Janeiro e São Paulo, na Rua Riachuelo, 342, CEP 01.007-000, Centro, São Paulo/SP, inscrita no CNPJ sob o nº 10.621.636.0001-04, reconhecida como organização da sociedade civil brasileira pela Organização dos Estados Americanos – OEA, vem, através da presente manifestação, apresentar as razões de fato e de direito, além de fundamentação de ordem política, econômica, e social, delineadas sob uma perspectiva histórica, a fim de auxiliar Vossas Excelências no sentido da viabilização de eventual Termo de Ajustamento de Conduta com o Banco do Brasil, levando-se em conta sua determinante participação na exploração que resultou no holocausto que foi a escravidão negra no Brasil.

“A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. Essa é a frase mais célebre do livro “Minha formação”, do abolicionista brasileiro Joaquim Nabuco. Esse livro foi escrito no final do século XIX, portanto pouco mais de uma década depois de abolida a escravidão no Brasil. Em 1888, o Brasil foi o último país ocidental a livrar-se oficialmente do trabalho forçado. A escravidão tornou-se mesmo parte fundamental da alma do nosso país. Cremos que mesmo Nabuco, que se antecipou a Gilberto Freire nas reflexões sobre a influência do trabalho escravo na cultura brasileira, talvez não supusesse que no ano de 2023 suas palavras ainda fariam tanto sentido.

A população afro-brasileira ainda é a grande maioria nos bolsões de pobreza – com ZERO de investimentos do Banco do Brasil, ontem e hoje – e a sofrer sob a imposição da pobreza. Nesse diapasão, os corpos negros permanecem sendo esmagadoramente os alvos preferenciais não apenas da letalidade policial – escandalosamente a maior do Planeta Terra – como também da epidêmica violência generalizada da escassez de todos os bens produzidos por seus trabalhos.

A quantidade de pessoas negras nas universidades segue sendo consideravelmente inferior à de brancos, mesmo com as lutas e conquistas das  ações afirmativas/reparatórias como a política de cotas – lamentavelmente em percentuais ainda muito inferiores à proporção da população negra (56,1% – IBGE) em relação ao total de brasileiros/as.

Homens e mulheres negras permanecem ganhando salários consideravelmente inferiores que os de pessoas brancas, mesmo ocupando os mesmos cargos e exercendo as mesmas funções/atividades. Ademais, os(as) cargos/funções de direção e chefia, tanto na iniciativa privada como no setor público, seguem sendo esmagadoramente ocupados por não negros(as) – apesar dos recentes e ainda incipientes avanços trazidos pela agenda “ESG” (Environmental, Social and Governance) e pela gradativa (e crescente) incorporação da(o) noção/conceito de “responsabilidade social empresarial”.

O Decreto nº 11.443/23 reserva às pessoas negras percentual mínimo de 30% na ocupação em Cargos Comissionados Executivos (CCE) e Funções Comissionadas Executivas (FCE) na Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional. No entanto, dá prazo até 31 de dezembro de 2025 para que os órgãos federais venham a  cumprir este percentual. Qual administrador público que assume a direção de um importante órgão, não se sente impelido a preencher todos os cargos de confiança imediatamente? O resultado deste e outros graves equívocos, do decreto, está aí para quem quiser enxergar: nos ministérios que o governo LULA recentemente cedeu ao centrão, ele exigiu que os partidos do centrão respeitassem este decreto? O Banco do Brasil respeita esse decreto ou está esperando dezembro de 2025?

Na seara da educação, o percentual de negros(as) analfabetos, no conjunto  da população brasileira é vertiginosamente superior ao de pessoas brancas. Do mesmo modo, dentre aqueles(as) que possuem apenas o ensino médio e, ainda, aqueles(as) que possuem apenas o ensino fundamental – assim como no que diz respeito às crianças, adolescentes e jovens que compõem os dados relativos à evasão escolar.

Há que se falar, ainda, dos números referentes à falta de habitação/moradia e/ou daqueles(as) que vivem em residências precárias – cujos percentuais demonstram, de maneira inequívoca, as deletérias consequências da presença do racismo estrutural e institucional também nesta seara, sendo, pois, as pessoas de pele preta/escura, aquelas que mais padecem com a falta de um local minimamente digno para viverem com suas famílias.

O mesmo pode e deve ser dito no tocante à ausência dos mais básicos serviços públicos essenciais, a exemplo do fornecimento de energia elétrica, água potável, saneamento básico, gás (de cozinha), telefonia e internet – donde, uma vez mais, a grande maioria dos desassistidos também é composta por negros e negras, cuja vulnerabilidade e precariedade de suas existências materializa reminiscências do holocausto da escravidão negra dos Séculos XVII, XVIII e XIX.

Já no que concerne ao âmbito da saúde, também a população negra é a que mais padece nas intermináveis filas i) para a realização de exames/diagnósticos médicos de média e alta complexidade, e mesmo no tocante aos mais simples; ii) para tratamentos médicos de média e alta complexidade, e mesmo os mais simples; iii) intervenções cirúrgicas de média e alta complexidade, e mesmo as mais simples; iv) para a realização de transplantes – dentre outros(as). Há que se falar, ainda, que são os(as) negros(as) os principais assistidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), e, portanto, aqueles(as) que mais sofrem com a precariedade dos serviços por ele prestados, dado o seu histórico/atávico subfinanciamento. No mesmo sentido, são, as pessoas de pele preta/escura, aquelas que mais sofrem com dramas tão antigos quanto inaceitáveis como a mortalidade infantil, a violência obstétrica, além de doenças intimamente relacionadas com a pobreza, a exemplo da malária, dengue, doença de chagas, anemia(s), além de outras moléstias decorrentes da contaminação por verminoses/parasitas.

Na mesma senda, são, os(as) negros(as), as maiores vítimas de surdez, em decorrência da ausência de realização de exames básicos/primários ainda na gestação e nas(os) primeiras(os) semanas/meses de vida (como o chamado “exame do pezinho”). Também no tocante a comorbidades comuns a grande parte da população brasileira, a exemplo do diabetes e da hipertensão, são os(as) negros(as) as maiores vítimas fatais e aqueles(as) que mais padecem de graves sequelas (como amputações, AVCs, complicações cardíacas, hepáticas, renais etc).

As políticas afirmativas enfrentam grande resistência no meio político, especialmente dentre os partidos considerados de direita e de centro, além das “elites” socioeconômicas e da classe média, todos (também) em sua grande maioria formados por brancos.

A maioria acachapante dos pobres deste nosso sofrido país, não por acaso, tem a pele escura. Noutras palavras, os mais de 350 anos do holocausto da escravidão negra seguem evidentemente refletidos na pobreza dos afrodescendentes no século XXI.

E essa é uma via de mão dupla, pois a pobreza é hoje a maior responsável pela escravidão contemporânea. E, claro, a maioria dos escravos contemporâneos no Brasil é formada por negros(as) e mulatos(as). Embora o país tenha avançado – menos do que poderia/deveria – nos últimos anos no campo social, continuamos com altíssimos e chocantes/estarrecedores índices de pobreza e, notadamente, de desigualdade. Logo, evidentemente, a pobreza, sem dúvida, leva as pessoas a uma situação de vulnerabilidade, presa fácil em relação ao trabalho escravo contemporâneo. Ninguém se submete a uma condição degradante de trabalho se tiver uma outra opção – à exceção do suicídio, que, também não por acaso, acomete mais negros(as) do que brancos(as), com destaque para os impressionantes/alarmantes e crescentes números de casos dentre os(as) povos/comunidades tradicionais quilombolas.

Aliás, fundamental tecer algumas considerações especificamente no tocante à população negra rural, particularmente no que diz respeito às comunidades tradicionais brasileiras, em especial quilombolas, pescadores, marisqueiros e ribeirinhos.

Nesse diapasão, vale ressaltar que a própria existência secular dessas comunidades tradicionais, especialmente as comunidades remanescentes de quilombos, (obviamente) deriva da opressão da escravidão negra no Brasil e de sua herança maldita, qual seja, o racismo estrutural e institucional – no qual está fortemente mergulhado o Banco do Brasil –  que impuseram e permanecem impondo até hoje o isolamento quase total dessas populações negras rurais nos mais inóspitos recônditos do chamado “Brasil profundo”, como única forma de resistência e sobrevivência, esquecidos pelas politicas públicas eficazes.

Não por acaso, grassam nessas comunidades assustadores e inaceitáveis indicadores socioeconômicos, a exemplo de analfabetismo, mortalidade infantil, renda média per capita, desemprego, moradias/habitações precárias, além da completa ausência dos mais básicos serviços públicos essenciais, como fornecimento de água potável, saneamento básico, energia elétrica, telefonia, acesso à internet, dentre outros.

Frise-se, ademais, o fato do poder público, de maneira racista e perversa, é omisso e letárgico na garantia dos direitos inerentes a tais comunidades, conforme se depreende dos intermináveis processos de demarcação e titulação dos seus respectivos territórios, que se arrastam há décadas junto ao INCRA ou a órgãos estaduais com competência/atribuição legal para tanto (como o Instituto de Terras do Pará e a Secretaria de Desenvolvimento Rural da Bahia). Por outro lado, este mesmo poder público mostra-se extremamente célere na expedição de licenças ambientais, mediante processos de licenciamento ambiental ilegais/fraudulentos, autorizando grandes empreendimentos econômicos, nacionais e internacionais, a instalarem-se e operarem/funcionarem dentro dos territórios quilombolas, explorando-os economicamente sem deixar qualquer tipo de contrapartida em benefício das comunidades, apenas e tão-somente um devastador legado de destruição e morte gerado por gigantescos e escandalosos impactos socioambientais.

Não se pode negar os pequenos avanços do ponto de vista legislativo e de formulação e execução de políticas públicas voltadas para mitigar e reparar essa abjeta realidade à qual se encontra submetida a população negra do nosso país, em todos os campos/segmentos até aqui delineados. Todavia todas estas iniciativas caracterizam-se, fundamentalmente, por sua incipiência, “timidez” e insuficiência, dado o gigantesco e estarrecedor estoque histórico/ancestral de exclusão, omissões e acúmulo de desigualdades que marcam a atuação do Estado e a sociedade brasileira, motivados (consciente e/ou inconscientemente) pela presença atávica do racismo. O Banco do Brasil sempre permaneceu de costas para essas gritantes realidades.

Por todo esse cenário ora exposto, que traduz a realidade de desigualdade e sofrimento do nosso povo negro urbano e rural, herança maldita dos mais de 350 anos de escravidão, exploração e holocausto, a EDUCAFRO Brasil vem a público, através da presente Carta Aberta dirigida a Vossas Excelências, MANIFESTAR O MAIS ABSOLUTO E IRRESTRITO APOIO AO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL NO TOCANTE À (NECESSÁRIA/FUNDAMENTAL) INICIATIVA DE INSTAURAR UM INQUÉRITO CIVIL PARA INVESTIGAR A PARTICIPAÇÃO/ OMISSÃO DO BANCO DO BRASIL NOS MAIS DE 350 (TREZENTOS E CINQUENTA) ANOS DE ESCRAVIZAÇÃO, TORTURA, MASSACRE E GENOCÍDIO DE PESSOAS NEGRAS EM NOSSO PAÍS.

Trata-se de medida histórica, e em consonância com os cada vez mais atuais e consensuais conceitos de Responsabilidade Social Empresarial e de “ESG” (Environmental, Social and Governance), que dialoga com o direito à verdade e à memória, não apenas da população negra deste país, e sim de toda a sociedade brasileira e mundial – afinal de contas um povo sem memória e sem acesso à verdade tende a repetir a história, seja como tragédia ou como farsa.

Assim, concluímos essa manifestação pública de apoio ao Parquet, lembrando o papel fundamental que a referida instituição bancária – sociedade de economia mista (portanto patrimônio de todo[a] brasileiro[a]) – teve para a manutenção e perpetuação do “mercado da escravidão”, bem como dos tão impressionantes quanto vexatórios lucros astronômicos que obteve como principal intermediador/ operador financeiro desta commodity, qual seja, os corpos e as vidas de homens e mulheres negras, sequestrados dos seus países de origem no continente africano e traficados em solo brasileiro para serem explorados/ escravizados tanto no meio rural como urbano, além de “cultivados”/ ”reproduzidos” em cativeiro tal qual animais.

Logo, deve, pois, o Banco do Brasil, quer voluntariamente, quer por imposição do MPF e/ou do Judiciário brasileiro, explicações/ informações e, sobretudo, REPARAÇÃO à sociedade civil deste país, em especial à população afro-brasileira, por sua lamentável e vergonhosa participação (como protagonista) no holocausto da escravidão negra do Brasil.

Atenciosamente – ao tempo em que renova os votos de elevada estima e apreço,
Pela EDUCAFRO Brasil:
Frei David Santos, OFM – Diretor Executivo

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