O lento avanço da maconha medicinal no Brasil. Por Paulo Fleury Teixeira

Médico analisa as últimas medidas e o futuro próximo do uso de canabinoides terapêuticos. Não vê boas perspectivas para 2024, no Congresso ou no STF. Mas enxerga, nas associações canábicas, um forte e importante movimento de desobediência civil

Em Outra Saúde

Estamos em um momento muito importante do processo de legalização da maconha no Brasil.

Já tem praticamente uma década que a Anvisa liberou a prescrição médica do Canabidiol (CBD), um dos canabinoides, os princípios ativos da maconha, ou Cannabis. Logo depois liberou também o uso medicinal do Tetrahidrocanabinol (THC), ainda que apenas para o uso compassivo, isto é, somente para casos graves e sem esperança com os tratamentos vigentes. Não há como não entender que esta foi uma liberação da maconha para o uso medicinal, já que os dois principais princípios ativos, os mais efetivos e os mais abundantes das plantas de Cannabis, em geral, são exatamente o THC e o CBD. Além disto, é sobretudo ou exclusivamente ao THC que se atribuem os riscos no uso da maconha. Portanto, se a Anvisa liberou o CBD e o THC para o uso medicinal, ela liberou também o uso medicinal de toda a planta. Contudo, apesar da liberação da prescrição e do uso, o plantio, a produção e a distribuição de produtos de Cannabis para uso medicinal, e até mesmo para a pesquisa, ainda estão sob restrições extremas pela Anvisa e ainda podem ser considerados como prática de tráfico de drogas, sujeita a todas as penas previstas no Código Penal.

Uma das principais consequências desta política indefinida e contraditória foi que, sobretudo nestes últimos 10 anos, ocorreu a emergência de um grande movimento de desobediência civil e de um imenso mercado paralelo de produtos de maconha, para o uso terapêutico, aqui no Brasil. São milhares de associações com pacientes, cultivadores, advogados, profissionais de saúde e outros interessados que estão, hoje, comprando ou plantando, produzindo e distribuindo produtos de Cannabis para fins medicinais, aqui no Brasil, sem autorização da Anvisa. São centenas de milhares de pacientes que hoje são atendidos por este mercado paralelo. E todos os que nele atuam, hoje, estão ao arrepio das normas da Anvisa e a grande maioria sem qualquer base legal. É o maior movimento, ou, certamente, um dos maiores movimentos, de desobediência civil do Brasil contemporâneo.

A justiça tem sido um elo decisivo neste movimento, pois, ainda que com grande dificuldade, tem, progressivamente, exercido a sua responsabilidade Constitucional, reconhecendo o posto fundamental e primacial do direito à vida e à saúde. Aos poucos está se estabelecendo a jurisprudência em favor de pessoas físicas e associações plantarem, elaborarem e distribuírem produtos de maconha, inclusive de alto teor de THC, para uso medicinal aqui no Brasil, em franca contraposição às normas e protocolos abusivamente e irracionalmente restritivos da Anvisa e de outras instituições da área de saúde. Já são mais de 4 milhares de pacientes e famílias que conquistaram o direito de produzirem sua própria maconha medicinal, em geral com alto THC, e já são algo como uma dezena de associações que, vindo da completa ilegalidade, também conquistaram, na justiça, o direito de plantar, produzir e distribuir produtos de maconha, também em geral com alto THC, para uso medicinal, aqui no Brasil. Até mesmo contra a posição expressa da Anvisa e também do Ministério Público, em alguns processos. Hoje estas associações “legalizadas” atendem várias dezenas de milhares de pacientes.

Os títulos jurídicos que garantem estes direitos, seja para pacientes individuais, seja para associações, são, ainda, inseguros. São Habeas Corpus ou outros instrumentos de excepcionalidade que podem facilmente ser suspensos pela própria justiça. De fato, agora no final do ano de 2023 uma associação do Rio de Janeiro perdeu, por solicitação da Anvisa, o direito legal de plantar, produzir e distribuir produtos medicinais de maconha aqui no Brasil. Espero que este caso seja revertido e que todas as associações e cultivadores tenham seus direitos reconhecidos. Em geral, contudo, os títulos jurídicos em favor do cultivo e distribuição de produtos artesanais de maconha, têm sido mantidos em instâncias superiores, como no Superior Tribunal de Justiça, progressivamente consolidando, realmente, uma jurisprudência em favor do mais amplo acesso à maconha medicinal aqui no Brasil.

Restam, ainda, várias centenas, ou alguns milhares, de associações e cultivadores espalhados por todo o Brasil, que atendem outras dezenas ou algumas centenas de milhares de pacientes, com produtos de maconha, em geral de alto THC, sem qualquer proteção judicial e, obviamente, fora das normas da Anvisa.

E nada indica que este movimento de desobediência civil vá arrefecer em 2024 e nos próximos anos. Ao contrário.

A regulação da Anvisa, primeiramente, como é bem característico dos países colonizados, foi apenas em favor de produtos de CBD importados. Antes de tudo e, na dúvida de como fazer, decidiu-se por mandar dinheiro para as metrópoles. Foi isto que a Anvisa fez, de princípio, mas, logo depois estendeu a autorização também para a indústria farmacêutica aqui no Brasil. Isto criou um amplo mercado, legal e institucional, de produtos medicinais de Cannabis dentro de padrões farmacológicos. Este mercado, legal e regulamentado pela Anvisa, atende hoje, segundo estimativas, um pouco mais de 300 mil pacientes, sendo uns 65%, ainda, através de produtos importados.

É um mercado de bilhões de dólares. E em franca expansão.

Em 2023, por exemplo, praticamente toda semana recebemos a notícia que um estado da federação ou que algumas prefeituras aprovaram uma lei para dar acesso a produtos de Cannabis – ou especificamente de CBD – aos pacientes, pelo SUS. Em muitos casos os planos de saúde também têm sido obrigados, por imposição legal, a fornecerem produtos de Cannabis ou CBD para os seus beneficiários.

É certo, contudo, que, no modelo normativo atual, esta expansão do acesso aos tratamentos com canabinoides se faz ao mais alto custo possível e com a mais baixa efetividade para os pacientes, infelizmente. Isto acontece porque prevalece a cultura, erroneamente sustentada e endossada por setores de saúde com responsabilidade pública, inclusive a Anvisa, de que o THC é um agente de risco alto para a saúde pública e que o CBD é um agente de baixo risco e até mesmo protetor contra alguns riscos do THC. Alguns chegam ao extremo equívoco de sustentar que só o CBD é, ou pode ser, medicinal.

Ocorre que o CBD é muito menos potente do que o THC, para a grande maioria dos efeitos, desejáveis e indesejáveis, dos canabinoides, o que deve realmente levar a uma baixa taxa de efeitos colaterais, mas também de efeitos positivos, em relação ao THC, nas mesmas doses. Nas mesmas doses, o THC é várias vezes mais potente do que o CBD. E o THC é, comumente, o princípio ativo mais abundante nas plantas de maconha. É natural, portanto, que os tratamentos com CBD exclusivo, ou com baixíssimo teor de THC, sejam mais caros e menos efetivos, em geral, do que aqueles com teores médios ou altos de THC. Some-se a isto o fato de serem produtos importados e de um oligopólio das empresas autorizadas pela Anvisa aqui no Brasil. O resultado é que muitos tratamentos se tornam muito caros e a maioria destas leis municipais e estaduais para garantir o acesso terminam sendo inviáveis economicamente e não se tornam realidade de modo a garantir tratamentos continuados e nas doses necessárias. Ou seja, não funcionam na prática.

De fato, o medo irracional em torno à maconha, e ao THC especificamente, as normas restritivas da Anvisa e o alto preço dos tratamentos com CBD induzem a prescrição e o uso de microdoses, de doses subterapêuticas, que raramente funcionam, levando, infelizmente, à inefetividade de tratamentos que, nas doses certas, seriam, hoje, a única alternativa de qualidade de vida e saúde para muitos destes pacientes. Verdadeiramente, para alguns milhões de pessoas aqui no Brasil.

A norma atual é tecnicamente equivocada e força a baixa efetividade e o alto custo.

É preciso que a gente se lembre sempre que a “ciência” proibicionista que até hoje ainda condena a maconha como droga perigosa é também aquela que estabelece que o CBD é seguro e o THC é danoso. Em ambos os casos, sem as evidências científicas suficientes para sustentar tais afirmações.

Com tudo isto, o fato é que, hoje, o uso medicinal dos de produtos de maconha no Brasil, de qualquer forma, continua sendo muito caro ou está submetido a processos administrativos ou jurídicos penosos – dentro de um ambiente ainda muito inseguro, com imensas contradições e barreiras legais e institucionais e ainda muito pautado pela ideologia de condenação criminal da planta. Todos sofrem as consequências disto. São muitas centenas de milhares de pessoas, que poderiam se beneficiar de tratamentos efetivos e de baixíssima toxicidade e que hoje são excluídos pelos altos custos e pelo cipoal jurídico e de informações desencontradas, falsas e contaminadas que ainda dominam esta área.

Com certeza, não é possível se resolverem estes nós dentro dos moldes normativos e legais atuais. Mas o setor de saúde pública, que seria o principal responsável pela área, tem estado, reiteradamente, mais do lado do preconceito e da ignorância do que das evidências clínicas e dados populacionais. Tanto a Anvisa, quanto o CFM e diversos CRMs, assim como o próprio Ministério da Saúde, nesta área, têm agido em contradição com suas atribuições institucionais, endossando preconceitos e mentiras e não abrindo um debate científico franco e sem cabrestos ideológicos sobre o assunto.

Este panorama atual não irá mudar, de modo significativo, no ano que vem – nem mesmo pelo processo que está em julgamento no STF, sobre o porte de drogas para uso pessoal. Com certeza, uma decisão neste sentido seria positiva e distensionaria, em parte, a questão dramática das mortes e prisões relacionadas a pequenas quantidades de maconha e, eventualmente, de outras drogas também. Mas sempre temos que nos lembrar que a lei antidrogas atual também foi saudada como progressista e humanizadora, ao distinguir claramente as figuras do usuário e do traficante. E deu no que deu: uma enxurrada de prisões de jovens periféricos.

De todo modo, as intenções são boas, a mensagem é positiva, mas a gente precisa entender que a política antidrogas é algo maior do que parece e que, portanto, a reação também é correspondentemente forte. É o que já se viu imediatamente no Congresso, antes mesmo da conclusão do processo, apenas pelo indicativo da posição majoritária em favor da descriminalização de uma pequena quantidade de maconha (talvez 60 gramas). Realmente, eu ainda duvido que este processo seja concluído em breve e duvido mais ainda que, caso isto aconteça, ele vá além de confirmar que o porte de pequenas quantidades de maconha para uso pessoal não é crime e, por exemplo, incorpore também o direito de cultivo de até 6 pés da erva. Ou quem sabe, o que seria ainda mais ousado e positivo, o desencarceramento dos presos por este motivo. Não acredito nisto. E realmente não vejo grandes mudanças por aí.

Obviamente, não espero qualquer avanço significativo a partir do Legislativo nacional, que hoje é de maioria conservadora e não aprovará nada a favor da população brasileira no que toca à questão da descriminalização das drogas, nem mesmo apenas da maconha e nem mesmo apenas para a maconha medicinal. Não creio que o Congresso avançará, nem com PL 390 que, de todo modo, apenas atende a uma pequena parte dos interesses e necessidades envolvidos nesta questão da maconha medicinal. Seja como for, ano que vem é ano de eleição municipal e ninguém deverá ter a coragem de tocar em assuntos espinhosos assim. Por outro lado, não creio também que conseguirão promover os retrocessos que estão ameaçando fazer em retaliação ao STF, aprovando uma lei que criminalize o porte de qualquer quantidade de drogas no Brasil. Creio que a intimidação será suficiente para o STF moderar o seu passo e talvez nem retomar ou, pelo menos, não concluir, em 2024, o julgamento da liberação do porte de pequenas quantidades de maconha.

Mas, por outro lado, não é possível a continuidade da situação atual, em que alguns têm direito, alguns estão se tornando milionários e superpoderosos no setor, enquanto a maioria ainda está sujeita ao constrangimento, à violência policial, à prisão e à condenação na justiça, inclusive. Não pode continuar esta situação em que milhões de pessoas estão excluídas de tratamentos que seriam muito benéficos a eles e muito menos tóxicos do que os medicamentos que elas estão sendo obrigadas a usar. E não pode continuar esta situação em que a população em geral está sendo iludida e manipulada com orientações e restrições contra os seus próprios interesses, contra a sua própria saúde.

Como eu sempre gosto de afirmar: “Se alguém pode, todo mundo pode também. Se um pode, todos podem!” Se um paciente ou uma família pode, todas podem, se uma associação ou empresário canábico pode, todas as outras pessoas, instituições ou empresas também podem.

Eu entendo que só há uma saída acertada, sanitária e socialmente responsável, que é o reconhecimento dos canabinoides,THC e CBD, especificamente, e da planta Cannabis como um todo, como recursos terapêuticos de baixíssima toxicidade, de máxima segurança, sem a identificação, através de evidência clínica, de nenhuma doença ou distúrbio permanente de órgão ou sistema do nosso organismo causado pelo seu uso e sem risco de intoxicação aguda grave (overdose) nas formas de uso atuais. A partir deste reconhecimento técnico fundamental, deve-se derivar que a maconha e seus produtos podem e devem ser de uso livre, como qualquer medicamento de uso livre – ou, melhor ainda, como qualquer fitoterápico de uso livre. Ou, ainda, como qualquer produto terapêutico de domínio popular e, portanto, fora de qualquer necessidade de regulamentações restritivas pela Anvisa.

Consequentemente, o plantio, a extração, a elaboração e o comércio deste tipo de produtos de maconha, para tratamentos, aqui no Brasil, pode e deve ser livre, como são os demais produtos terapêuticos de domínio popular que circulam livremente no país, vários deles com riscos reais à saúde pública muitas vezes maiores do que os riscos da maconha. Eu vejo que realmente existe espaço adequado para o autocultivo e o autotratamento, acompanhado por médico ou não; assim como para a produção e comércio de produtos de maconha de uso terapêutico livre, também com ou sem acompanhamento médico; assim como para a produção fitoterápica de acordo com os padrões da Anvisa e, também, para produtos de padrão farmacêutico, em geral, todos, de uso livre, sem necessidade de receita médica, ou com receita médica simples.

O SUS, por exemplo, pode e deve fornecer produtos de Cannabis, de CBD e também de THC, de padrão farmacológico, através da indústria farmacêutica, mas também deve fazê-lo através do modelo da Farmácia Viva e de diversos arranjos possíveis com cultivadores e produtores no território nacional. Com certeza, há espaço para todas estas formas de acesso a produtos de maconha para o tratamento de diversos sintomas e transtornos para os quais a erva ou os canabinoides podem ser indicados, onde há alguma indicação de sua efetividade. E podemos e devemos fazer isto devido à baixa toxicidade, ao baixo risco da maconha, dos canabinoides, do THC e do CBD, Especialmente se consideramos, em contraste, a alta toxicidade das outras drogas que, em seu lugar, hoje são largamente utilizadas pela população, também com ou sem receita médica.

Mas, tudo isto está travado, tudo isto não anda, tudo isto é impedido ou está sob ameaça legal, de imputação de crime, inclusive de tráfico de drogas, porque não há como se separar completamente a questão do uso medicinal da maconha daquela do seu uso social e da criminalização da planta. E, nesta questão da criminalização da planta, e das drogas em geral, impera a ideologia e a necropolítica genocida da guerra às drogas, desde as práticas de manipulação e violência moral e física das comunidades terapêuticas de base religiosa, até o genocídio e o encarceramento em massa da população jovem e negra das periferias pobres do nosso país. Tudo isto é permitido e endossado pela sociedade, especialmente pelo setor de saúde pública no Brasil hoje, em nome da guerra às drogas.

A guerra contra as drogas é uma parte muito importante do sistema de opressão social e terrorismo estatal que nos caracteriza tão dramaticamente como sociedade. Ela não é, e não pode ser entendida como, um fenômeno isolado. Ao contrário ela é uma parte, um elo, fundamental do nosso fascismo cotidiano. O extermínio e encarceramento em massa de jovens e as internações em comunidades religiosas com práticas fascistas, tudo isto adquire sentido quando mostra a sua verdadeira razão de ser. É um elo fundamental da política de opressão fascista que atravessa a nossa sociedade.

Para nós, aqui no Brasil e no mundo dos países pós-coloniais, secundários e terciários no sistema de poder capitalista mundial, o fascismo é presente grande parte do tempo ou é dominante o tempo todo. A nossa estrutura social, as nossas instituições de poder, a nossa justiça e a nossa polícia operam no marco do abuso e da violência institucional contra os grupos sociais mais vulneráveis e marginalizados. O terrorismo de Estado aqui é realmente a prática cotidiana. Assassinatos de lideranças sociais, de índios, de negros, nas aldeias, nas matas, nas favelas e periferias pobres em geral; assassinatos cotidianos pelo poder policial e forças paramilitares; práticas de tortura; abuso de poder e violência do aparato judiciário e policial… Tudo isto é fascismo. E não é de se estranhar que seja racista, misógino, homofóbico e, sobretudo, de opressão dos pobres.

A imposição violenta, terrorista, da exclusão social extrema sempre marcou a nossa sociedade, em toda a nossa história, mesmo nos nossos melhores momentos democráticos, e continua assim até hoje. Aqui isto é tudo normalizado. É até visto como desejável e elogiável. Igrejas, programas de TV, operações policiais e mandatos judiciais exalam, expressam e compõem uma ideologia de violência dentro e para além dos limites legais, contra os mesmos grupos-alvo bem conhecidos da nossa sociedade. Fomos e somos, sempre, fascistas. Mesmo nos nossos melhores momentos democráticos. Como dizia um rapper, “democracia na favela é prejuízo, aqui manda quem pode e obedece quem tem juízo”.

E toda a estrutura social em que vivemos repousa nesse fascismo cotidiano.

Sem isto, não existiriam as favelas e as periferias miseráveis que temos. A pobreza aqui é imposta e silenciada assim, na bala e na porrada, desde sempre. As favelas, as aldeias, as vilas, as periferias de extrema pobreza, as ocupações irregulares, as condições de trabalho desumanas, as condições de moradia muito precárias, a falta de esgoto, de água, a falta dos recursos básicos, a falta de uma educação e de uma saúde, públicas, de qualidade, isso tudo é mantido, é contido, é organizado, aqui no Brasil, certamente, com altas doses de terrorismo social e de Estado, com altas doses de violência legal ou ilegal. Isto é constante entre nós e, de tal modo que, como disse um outro rapper, aqui, nós vivemos uma guerra civil constante, apenas não declarada.

Ninguém pode ignorar que a ideologia e o sistema da criminalização das drogas é um elo fundamental desta guerra civil não declarada que, todo ano, faz várias dezenas de milhares de vítimas fatais aqui no nosso país. Além das centenas de milhares de encarceramentos e internações em clínicas de recuperação de drogados. São muitas vidas ceifadas, são muitas e muitas centenas de milhares de vidas de jovens e de suas famílias, com as vidas amputadas, interrompidas. Certos tipos de vida, de certos tipos de jovens… Mas são muitas, demais, para qualquer um ignorar. Muito mais ainda para as autoridades institucionais do setor de saúde pública ignorarem, já que nunca houve razão de saúde pública para justificar esta barbárie. Ao fazer isto, estas autoridades e instituições de saúde pública estão sendo coniventes com esta necropolítica, assassina e fascista.

Por fim, e por tudo isto mesmo, não é possível se pensar em qualquer avanço seja com relação à maconha medicinal ou à questão das drogas em geral, que, como vimos, são de algum modo indissociáveis, sem se pensar na reparação histórica em favor daqueles que têm sofrido mais com esta criminalização. Sobretudo para as comunidades e para os jovens de periferia, os índios, os negros, as mulheres e o povo pobre em geral e, principalmente, para aqueles que diretamente sofreram e estão sofrendo com as prisões e com as mortes, seja no lado dos “criminosos”, seja no lado dos “policiais”.

Infelizmente, por tudo o que descrevi acima, eu não vejo chances de uma grande mudança no que tange à política antidrogas, nem mesmo apenas no campo da maconha medicinal, para o ano que vem, aqui no Brasil, nem pelo executivo, nem pelo legislativo e nem pelo judiciário. Do mesmo modo que tinha certeza que isto seria impossível neste ano de 2023, em que estávamos consolidando a vitória política sobre o fascismo e o neoliberalismo. De todo modo, eu entendo que é fundamental que o setor de saúde pública e principalmente o Ministério da Saúde, compreendam a importância estratégica destas questões e assumam o protagonismo que têm que ter neste âmbito. Espero que se consiga estabelecer um debate científico aberto, que envolva e supere a ignorância e o preconceito que hoje dominam a própria Anvisa, assim como o CFM, os CRMs e algumas Associações Médicas, como aquelas de Pediatria e Psiquiatria e que avance para desenho de uma nova política para o setor. Com certeza os fóruns atuais não têm conseguido cumprir esta função. Ao fazer isto o Ministério da Saúde atenderá a uma grande necessidade, uma verdadeira lacuna e omissão do setor de saúde pública e poderá ser uma base para mudanças mais amplas nos anos seguintes.

Foto: Getty Images /BBC

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