Uma ofensiva contra doenças com causas estruturais

Comitê interministerial traça estratégia robusta para erradicar ou reduzir drasticamente 12 enfermidades ligadas à pobreza. Brasil tem oportunidade de ser líder global nesse combate, agora que há disposição renovada para enfrentá-las

por Gabriel Brito, Outra Saúde

“Nosso compromisso é eliminar essas doenças, além da transmissão materno-infantil de HIV/aids, por meio da integração das políticas públicas de ministérios, alguns de cunho social, outros tecnológicos, articulando sociedade civil e movimentos sociais. Me perguntam se não é sonho, um desejo onírico, mas essas doenças foram eliminadas nos países desenvolvidos. É factível, não só para países ricos e desenvolvidos”, explicou Dráurio Barreira, diretor do Departamento de HIV/aids, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis (Dathi).

Na última terça, 6/2, o Governo Federal lançou um ambicioso objetivo para combater as doenças socialmente determinadas. Capitaneada pelo ministério da Saúde em parceria com outras 13 pastas, o Programa Brasil Saudável, concebido pelo Comitê Interministerial para a Eliminação da Tuberculose e Outras Doenças Determinadas Socialmente (CIEDDS), lista 12 enfermidades que contarão com uma nova abordagem na sua prevenção. O objetivo é erradicá-las ou ao menos mantê-las sob controle até 2030, em acordo com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.

Em linhas gerais, doenças socialmente determinadas são aquelas cuja origem pode ser identificada pelas condições socioeconômicas de seus portadores. “Estudo tuberculose há 30 anos e é um momento histórico, de reconhecimento de que os determinantes sociais são tão ou mais importantes que os agentes infecciosos no surgimento e impacto na vida das pessoas. Quem conviveu com pessoas portadoras de tais doenças sabe a falta que faz um prato de comida ou um dinheiro pra chegar à unidade de saúde. Um inquérito mostrou que 48% das pessoas com tuberculose tiravam 20% de renda da família durante o processo de diagnóstico e tratamento. Pela primeira vez, também mostramos que a fome a outras condições de vida são as causas principais dessas doenças”, sintetizou Ethel Maciel, secretária de Vigilância Sanitária do ministério da Saúde.

Quebrar a invisibilidade

O evento, realizado no Centro Internacional de Convenções de Brasília, reuniu movimentos sociais compostos por pessoas portadoras de doenças como HIV/aids, Vírus Linfotrópico da Célula T Humana (HTLV, retrovírus da mesma família do HIV), hepatites, que encheram seu plenário e aplaudiram Adijeane Oliveira, liderança do HTLVida, em sua fala ao lado das autoridades. “O Brasil Saudável é uma reivindicação e conquista de todos esses movimentos, que insistentemente apontaram a desigualdade social como parte do processo de adoecimento. Temos uma lacuna muito grande de dificuldade de acesso. É muito duro viver com HTLV, ter 38 anos e estar presa num corpo adoecido, cheio de limitações. Sem falar a parte psicológica. Dói viver com aids, hepatite. Impacta muito na nossa vida. Faço parte de uma família de quatro filhos, nós quatro temos HTLV, e perdi um irmão recentemente por isso”, afirmou.

Como se pode ver no site do Ministério da Saúde, o escopo das doenças a ser atacada se relaciona com as chamadas doenças tropicais negligenciadas. Trata-se, resumidamente, de doenças evitáveis e curáveis, mas que se propagam no tecido social em razão da ineficiência do Estado e da estrutura de exclusão social que afasta seus portadores de diagnóstico e tratamento. Estima-se cerca de 60 mil mortes por tais doenças entre 2017 e 2021 no Brasil.

“O HTLV mata, adoece e nos deixa esquecidos. E ainda digo: sou privilegiada. Tive acesso à cadeira de rodas, a um diagnóstico rápido, aos 14 anos. São diversas doenças que acometem os brasileiros. Temos estimativas assustadoras. É muito triste ver essas doenças contarem com pouquíssimo investimento. São dezenas de doenças tropicais negligenciadas, e infelizmente o HTLV ainda não é parte da lista. Precisamos de testagem, acompanhamento, vigilância molecular. Temos uma epidemia silenciosa, mas as pessoas desconhecem e assim deixam de cuidar”.

Destaque importante do evento, a presença da ministra de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I), Luciana Santos, indicou caminhos que permitem não só avançar no controle de tais doenças como estimular a produção científica nacional. “O programa prioriza enfrentar fome e pobreza para mitigar essas vulnerabilidades, defesa de direitos humanos e proteção social em territórios prioritários, intensificar qualificação e comunicação com trabalhadores e sociedade civil a respeito dessas doenças. Incentivo à CT&I e ampliação de ações de saneamento, pois já sabemos que a cada real investido economizamos 4 em saúde, é um aspecto estruturante. O comitê interministerial quer promover ações de aceleração da eliminação de tais doenças a partir da compreensão de se tratar de temas complexos, o que explica a unidade entre vários ministérios”, afirmou.

A ministra anunciou que o Fundo Nacional de Ciência e Tecnologia abrirá editais para selecionar projetos que tragam soluções para o combate a tais doenças. Da divulgação científica à produção de insumos úteis a tais políticas, aqui fica claro porque a ação é interministerial. Além disso, corrobora posições do Brasil em fóruns internacionais, como OMS e o G-20, o qual preside neste ano.

“Tais medidas são políticas de Estado. Não vamos ficar isolados e estamos nos inserindo de novo no mundo. Estamos abertos à transferência de tecnologia. E vamos trabalhar em editais de saúde que dialoguem com os objetivos do Complexo Econômico Industrial de Saúde”, completou Luciana Santos.

Protagonismo global

Nesse sentido, chamou atenção a articulação internacional do evento de apresentação do Brasil Saudável. Tedros Adhanom e Jarbas Barbosa, diretores da OMS e OPAS, respectivamente, estiveram presentes ao evento, que ainda contou com o ministro da Saúde da Indonésia, outro país que convive com doenças tropicais negligenciadas, Budi Gunadi Sadikin.

“Senti-me encorajado porque estamos trabalhando com pessoas convencidas de que podemos vencer essas doenças, trabalhando de forma inclusiva, como um movimento, mais que um programa de governo. Na Indonésia, tenho dificuldade de trabalhar com outros ministérios, em especial a economia, que representa as pessoas mais poderosas do país. Mas é trabalhando juntos que podemos resolver esses problemas”, disse Sadikin, que por tabela ainda apresentou uma tradicional disjuntiva brasileira, onde os orçamentos para políticas públicas estão sempre no alvo de dogmas econômicos.

Por sua vez, Jarbas Barbosa lembrou de histórias de pioneirismo de países do continente americano na erradicação e superação de doenças socialmente determinadas. Apesar do otimismo com a iniciativa, destacou a desigualdade como vetor principal de sua permanência nos países da região. “O desafio é identificar barreiras de acesso das pessoas aos tratamentos. Diagnóstico e tratamento gratuitos são avanços imensos, mas populações pobres, originárias, marginalizadas, não têm acesso por barreiras invisíveis. Tenho certezaque este programa servirá de inspiração para outros países”, asseverou.

A visão de Jarbas foi corroborada por Tedros Adhanom, a partir de uma chave de que tais políticas devem significar um avanço na inteligência dos próprios Estados na preparação de seus sistemas públicos de saúde e sua força de trabalho. Mais que isso, podem avançar na promoção do controle social de sistemas como o SUS. “As doenças não se tratam uma de cada vez. Precisamos de respostas holísticas, que coloquem as pessoas no centro do sistema e serviços de saúde, não a doença. Essas doenças podem ser manejadas no âmbito da atenção primária, os profissionais de saúde podem estar treinados para detectar seus sintomas. Os benefícios vão muito além do combate às doenças elencadas aqui no plano, gera dividendos superiores a isso”, explicou.

O diretor da OMS ainda mostrou ânimo em relação às posturas recentes do Brasil em fóruns internacionais, onde Nísia foi enfática em defender a soberania sanitária de países em desenvolvimento. A produção da vacina contra a dengue do Instituto Butantan foi saudada com otimismo por Tedros, que sugeriu a possibilidade de o Brasil ser um fornecedor internacional. “Fico feliz com a representação da União Africana aqui, pois a experiência brasileira ajudará este continente e fortalece a cooperação sul-sul, cujos países tem muitas coisas comum”, agregou.

Por sua vez, Nísia foi direto ao ponto das mazelas estruturais brasileiras para justificar o novo programa de governo. “O último país a encerrar a escravidão manteve uma imensa desigualdade e sua república demorou quase 100 anos para reconhecer direitos dos povos indígenas. Quando falamos de determinantes sociais em saúde, falamos de classe, de diferenças étnico-raciais, que estão na raiz de tantos problemas de saúde. Esses determinantes, no fundo, impactam todas as doenças, para além das que estão no programa. Impactam em doenças crônicas, em tratamentos como de câncer. Mas com engajamento podemos fazer com que se tornem história”, resumiu.

Como mostra a declaração de Dráurio Barreira, otimismo é o que não parece faltar nos corredores do governo. “Há 120 anos, no Rio de Janeiro, que tinha alcunha de cemitério dos estrangeiros, pobre e recém-saído da colonização, com apoio do governo federal da época e vontade política de um prefeito (Pereira Passos), com determinação do diretor de saúde pública da época, um tal Oswaldo Cruz, foi possível eliminar a peste bubônica, a varíola e a febre amarela em 3 anos. E não foi fácil, porque naquela época também tínhamos os negacionistas, como simbolizado na revolta da vacina. Com a liderança de Lula, dos estados e municípios, o compromisso de sociedade civil e academia, podemos eliminar todas essas doenças. Um governo que consegue erradicar a fome, a miséria, educar o povo e trazer saúde à população deixará um legado para a história. É isso que pretendemos”, celebrou.

Foto: Mré Gavião | Ascom MPI

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