Na opinião do constitucionalista Lenio Streck, as críticas direcionadas ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, por decisões contra bolsonaristas investigados por tentativa de golpe partem de uma “inversão discursiva”, deixando em segundo plano ações do governo anterior que buscavam minar a democracia.
No Conjur
Na quinta-feira (8/2), ao autorizar ação da Polícia Federal e medidas cautelares contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), militares e ex-ministros de Estado, todos suspeitos de planejar um golpe, Alexandre proibiu o contato entre investigados, “inclusive por meio de seus advogados”.
Esse trecho gerou manifestações enérgicas da advocacia, que considerou a proibição um equívoco e disse que restringir a comunicação dos advogados viola as prerrogativas da profissão.
“Para além da defesa das prerrogativas advocatícias, o que me perturba é o risco de uma inversão discursiva, em que o ponto central (tentativa de golpe e tudo o que o ex-presidente fez para minar a democracia) fique relegado a um ponto secundário. A contradição principal se transforma em contradição secundária. O vilão se transforma em vítima”, diz Lenio.
Para o constitucionalista, a “inversão discursiva” cai em uma armadilha bastante propagada por setores bolsonaristas, que tentam transformar pessoas “fundamentais para o salvamento da democracia”, que é tarefa que exige energia, em integrantes de uma espécie de “ditadura de toga”.
“Não me parece adequada essa comparação feita em alguns veículos de comunicação, redes sociais e até mesmo em círculos advocatícios. Em síntese, não são a mesma coisa ‘golpe e golpistas’ e ‘STF e decisões de Alexandre de Moraes’. Mas não são mesmo. Os democratas não podemos cair em qualquer armadilha discursiva.”
“Sou um intransigente defensor da democracia e das prerrogativas dos advogados. Minha história mostra isso. Meu receio é exatamente essa inversão discursiva. O principal fica obscurecido pelo secundário. Esquece-se a razão ou as razões que levaram a tudo isso”, conclui Lenio.
O príncipe e o juiz
O constitucionalista recorre à literatura para exemplificar o que diz. Na peça “Henrique IV”, de Shakespeare, o filho de Henrique IV agride o Lorde Chefe da Corte da Inglaterra. Como consequência, o juiz que foi esbofeteado prende o príncipe.
Mais adiante na obra, o agressor, agora já rei, reencontra o juiz e diz não ter esquecido a prisão. O Lorde Chefe da Corte da Inglaterra, então, explica: se o juiz representa o rei e o Estado, a agressão foi também, e principalmente, contra o rei e o Estado.
“Shakespeare talvez tenha compreendido melhor o papel institucional de um poder de Estado do que muita gente hoje. Shakespeare explica melhor do que os juristas os ataques ao STF. O príncipe não esbofeteou o lorde juiz. Esbofeteou o reino da Inglaterra. O resto é muito simples. Muito”, diz Lenio.
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