Nota Pública da PFDC: “60 anos do golpe civil-empresarial-militar”

O filósofo espanhol George Santayana escreveu certa vez: aqueles que não podem
lembrar o passado estão condenados a repeti-lo
. Santayana deixa clara a importância da memória na jornada para adiante. O reconhecimento do passado e o registro das faltas formam um mapa do que não repetir para chegar a um lugar melhor.

Costuma-se associar ao 31 de março de 1964 o início do golpe civil-empresarial-
militar que pôs fim à democracia no Brasil por 21 anos, promovendo a quebra da ordem jurídica, a ruptura do regime democrático e violações de direitos civis, sociais e políticos de toda a população brasileira.

Em 2024 completam-se, portanto, 60 anos de um dos maiores erros de nossa história. Seus efeitos ainda perduram, sendo necessário conhecer os acontecimentos daquele período para superá-los.

Já estão amplamente documentados atos de perseguição e crimes cometidos contra estudantes, professores, trabalhadores, empresários, políticos, membros de comunidades tradicionais e das forças armadas, servidores públicos, membros do clero, homens, mulheres e crianças de todas as regiões do país(i). Os governos que exerceram o poder ao longo de mais de duas décadas retiraram dos cidadãos uma série de direitos, com destaque para o de eleger livremente seus representantes; e cometeram, por meio de seus agentes, em conluio com segmentos sociais, atos criminosos tais como homicídios, torturas, estupros, sequestros, ocultações de cadáver e abusos de autoridade. Vários desses crimes contra a humanidade ainda carecem de pleno esclarecimento, com prejuízo às vítimas, às suas famílias e, por consequência, a toda a sociedade brasileira.

A fim de equacionar esse quadro e apoiar o aprofundamento da Justiça de transição no Brasil, o Ministério Público, em especial o Ministério Público Federal, tem se dedicado ao ajuizamento de ações e à tomada das demais medidas correlatas, entre as quais o processamento nas esferas cível e penal daqueles comprovadamente envolvidos nos atos criminosos(ii).

Contudo, ainda sem o efetivo conhecimento de toda a verdade histórica, experimentamos nos últimos anos uma série de acontecimentos que testaram as instituições republicanas que se busca reconstruir desde 1985.

Esse cenário decorre de um contexto de desvalorização da democracia como meio e fim, tendo relação direta com os desafios da Justiça de transição em nosso país. Nossa democracia não será plenamente estável sem o conhecimento, a análise e a discussão acerca das ações e omissões dos envolvidos no regime de exceção, bem como das consequências delas decorrentes. A real conciliação demanda, no lugar do esquecimento, a memória.

A Constituição da República de 1988 preceitua a lembrança do acontecido naqueles 21 anos. Assim também demanda a Convenção Americana de Direitos Humanos. É dever jurídico e moral do Estado preservar o registro do que houve naquele tempo. Verdade e memória integrais representam elementos imprescindíveis na construção de uma sociedade plural.

É indispensável a apuração de responsabilidades pelos crimes de lesa-humanidade cometidos entre 1964 e 1985. Sem responsabilização, perde-se o inestimável efeito didático sobre as gerações futuras. A impunidade é estímulo para o arbítrio; a responsabilização, seu freio.

A impunidade estrutural em casos de graves violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura militar pode também ter por efeito o estímulo a intentos golpistas. Nesse sentido, as tentativas, após as eleições gerais, de ações antidemocráticas em Brasília, em dezembro de 2022, seguidas da invasão das sedes dos Poderes da República, em 8 de janeiro de 2023, comprovam que o esquecimento deliberado, os segredos e a ocultação da história se mostram incompatíveis com a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, o pluralismo político, o acesso à justiça e o direito à informação, incentivando a impunidade.

Ignorar causas e consequências de ataques à democracia inviabiliza que este legado negativo seja ultrapassado e que se promova a construção de uma cultura de verdade e paz, de forma a evitar que se repitam novas violações, fomentando a justiça e concorrendo para a formação de uma sociedade aberta e plural, única medida admissível no regime democrático. Uma postura amnésica e inerte do Estado, que não tenha um olhar firme sobre o passado, prejudica a imagem do Brasil perante a comunidade internacional, contraria a tradição nacional de respeito aos direitos humanos nas relações internacionais e sujeita o país a sanções perante Cortes Internacionais.

Nesse sentido, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já reconheceu em duas sentenças a omissão do Estado brasileiro ao deixar de esclarecer fatos violadores de direitos(iii), e está prestes a examinar um terceiro caso(iv). Exigiu-se nas decisões, como imperativo jurídico e ético, a apuração dos fatos e o reconhecimento público das responsabilidades de órgãos civis e militares, tendo em vista as graves violações de direitos humanos verificadas.

São obrigações que devem ser observadas com coragem, sobriedade e respeito para com suas vítimas, sendo a maior delas a sociedade brasileira como um todo.

Os 60 anos do golpe civil-empresarial-militar são momento de recordação obrigatória, a fim de que jamais sejam esquecidos os sacrifícios que nos conduziram à dura reconstrução da democracia brasileira. Nesse sentido, conclama-se a todos que o regime democrático seja permanentemente valorizado, fortalecido e aprofundado, para que, diante de quaisquer intentos de aventuras autoritárias, possamos sempre repetir: nunca mais.

Carlos Alberto Vilhena
Subprocurador-Geral da República
Procurador Federal dos Direitos do Cidadão

Eugênia Augusta Gonzaga
Procuradora Regional da República
GT “Memória e Verdade” da PFDC – Coordenadora

Angelo Giardini de Oliveira
Procurador da República
GT “Memória e Verdade” da PFDC – Membro

Ivan Cláudio Garcia Marx
Procurador da República
GT “Memória e Verdade” da PFDC – Membro

Jorge Maurício Porto Klanovicz
Procurador da República
GT “Memória e Verdade” da PFDC – Membro

Rômulo Moreira Conrado
Procurador Regional da República
GT “Memória e Verdade” da PFDC – Membro

Vanessa Seguezzi
Procuradora da República
GT “Memória e Verdade” da PFDC – Membra

Ana Righi Cenci
Promotora de Justiça do MPPR
GT “Memória e Verdade” da PFDC – Membra

(i) Para mais informações, vide a íntegra do relatório da Comissão Nacional da Verdade, disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/.
(ii) Para um quadro geral das ações implementadas pelo Ministério Público Federal, vide a página especial sobre o tema: “https://justicadetransicao.mpf.mp.br/”.
(iii) Casos Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil e Herzog e outros vs. Brasil.
(iv) Caso Collen Leite vs. Brasil

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

dezoito − 1 =