Ação civil pública requer reparação por danos coletivos de natureza material e moral sofridos pelas comunidades indígenas Kaingang e Mbyá-Guarani no período
Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul
O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou, no último dia 26 de março, ação civil pública para que a União, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Estado do Rio Grande do Sul sejam condenados a reparar os danos coletivos de natureza material e moral sofridos pelas comunidades indígenas Kaingang e Mbyá-Guarani, localizadas no Rio Grande do Sul. Na ação, o MPF destaca a remoção forçada dos indígenas de seus territórios tradicionais, ocorrida na década de 60 do século passado, o trabalho análogo à escravidão a que foram submetidos e a espoliação dos recursos naturais dos seus territórios, especialmente durante o período que compreendeu a ditadura militar no Brasil, após 1964.
Durante as apurações, o MPF constatou que os povos indígenas no Rio Grande do Sul foram submetidos a condições de existência capazes de ocasionar o seu extermínio, configurando condutas previstas na Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas) e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), promulgadas no Brasil por meio de decretos. Remoções forçadas, tortura, constrangimentos a executar trabalho forçado, encarceramentos arbitrários, vedações arbitrárias a reuniões e à livre circulação pelo território nacional marcaram a vida dessas comunidades no período, conforme registra a ação.
A atuação do MPF foi suscitada por várias entidades da sociedade civil, como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o Conselho Estadual dos Povos Indígenas (Cepi), o Conselho de Missão entre Povos Indígenas (Comin) e o Fórum Justiça, que apresentaram documentos fundamentais para a instrução do inquérito civil que culminou com o ajuizamento da ação civil pública.
Militarização e arrendamento – Os depoimentos e documentos colhidos no inquérito civil retratam os caminhos das duas etnias, Kaingang e Guarani-Mbyá, no período final do extinto Serviço de Proteção ao Índío (SPI) e nos primeiros anos da Funai. No norte gaúcho, a exploração econômica rudimentar das terras indígenas, organizada pelos chefes de posto, deu lugar à organização centralizada em Brasília desses territórios como “fazendas” – baseada na ideia de maximização do lucro de lavouras e madeireiras para sustentar a estrutura administrativa da Funai.
Os recursos enviados ao antigo Departamento Geral de Patrimônio Indígena (DGPI), oriundos da exploração direta ou do arrendamento de terras e contratos com madeireiras, raramente retornavam às comunidades, como deixam transparecer os depoimentos dos indígenas elencados no texto da ação. Por outro lado, tais regimes de exploração intensiva, opostos à tradição Kaingang e Mbyá-Guarani, dependiam da imposição de mão de ferro nas terras indígenas, conforme mencionado pelo MPF.
“A imposição desse modelo escravocrata nos Postos Indígenas no Rio Grande do Sul estava baseado na ingerência na auto-organização das comunidades indígenas”, destaca o MPF na ação. Segundo as apurações, a nomeação dos caciques e seus subalternos pelos chefes de posto se dava em troca de parte dos lucros obtidos nas lavouras e serrarias, o que acabou por espelhar, dentro das comunidades, a organização militarizada: “o cacique nomeado pelo chefe do posto indicava seu coronel, major, capitão, tenente, sargento e cabo, que policiavam a comunidade e garantiam a ordem ditada pelos interesses externos”.
Conforme a investigação do MPF no decorrer do inquérito civil, a parceira entre chefes de postos e caciques perdurava por vários anos, suscitando a criação de “dinastias” de cacicados “espúrios” nas terras indígenas. “Essa estrutura militarizada criada dentro das aldeias servia também como forma de impor medo e reprimir eventuais insurgências por parte dos integrantes das comunidades, mediante o aprisionamento e a prática de castigos físicos que alcançavam o nível de torturas”, argumenta o MPF.
O direito de ir e vir, típico de qualquer sociedade democrática, também era violado nas aldeias indígenas. “Era terminantemente proibido a qualquer indígena sair das aldeias sem que obtivesse do chefe de posto a denominada ‘portaria’, documento que conferia uma autorização de saída e que fixava o prazo do retorno do indígena”, destaca a ação, a partir dos depoimentos colhidos. Além disso, foi apurado que o indígena que não se apresentasse no prazo estabelecido “era submetido aos mais diversos castigos”, registrou o MPF ao investigar a violação aos direitos das comunidades indígenas cometidas pelos órgãos que deveriam protegê-las.
“Reforma agrária” – A apuração do MPF também verificou o profundo trauma deixado nas comunidades indígenas pela chamada “reforma agrária” de 1962, realizada pelo então governo do Estado do Rio Grande do Sul. À época, parte dos territórios indígenas estavam sob a administração do Estado, o que permitiu a sua extinção ou diminuição drástica por meio de decretos estaduais, em evidente contradição com a Constituição Federal de 1946, então vigente.
“Tal conduta ocasionou a remoção compulsória de diversas famílias indígenas de suas terras tradicionalmente habitadas, sendo obrigadas a saírem de suas casas da noite para ao dia, transportadas em caminhões e ‘despejadas’ em outras aldeias”, informa o MPF. “Aos indígenas, foi imposta uma situação de total indignidade, que fomentaria futuros conflitos internos e com os colonos assentados”, registra a ação.
Para o MPF, “esse grande evento de usurpação das modestas terras indígenas faz lembrar que as violações de direitos relatadas na ação civil pública resultam de uma visão preconceituosa das sociedades indígenas, que as vê como inferiores por terem valores e modos de vida diferentes da sociedade envolvente”. “Essa visão integracionista e violenta”, complementa, “ transitava pelos diferentes espectros políticos da sociedade brasileira até a década de oitenta do século passado, quando a Constituição Federal de 1988 firmou um novo paradigma, que acolheu a diversidade étnica e cultural como valor a ser preservado no Brasil”.
A ação civil pública foi distribuída à 9a. Vara Federal de Porto Alegre, sob o nº 5013584-03.2024.4.04.7100.
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Imagem: Arte: Secom/PGR