Casos de racismo, abuso de autoridade e denúncias em relação a uniformes das escolas colocaram modelo na berlinda
Por Gabriel Carriconde, no Brasil de Fato
A Advocacia-Geral da União (AGU) adicionou mais um capítulo à polêmica das escolas cívico-militares do Paraná ao declarar sua inconstitucionalidade.
Este posicionamento foi apresentado em um parecer encaminhado ao Supremo Tribunal Federal (STF) como parte de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) movida por partidos políticos como PT, PSOL e PC do B.
A lei estadual que implementou esse modelo de ensino foi questionada por não estar alinhada com a legislação educacional nacional.
A história desse embate remonta a 2020, quando o Paraná adotou o formato cívico-militar, seguindo um decreto nacional de Jair Bolsonaro, ainda em 2019. No entanto, em julho de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva revogou o programa a nível federal, o que embasou o parecer da AGU.
Apesar dos esforços para defender os resultados positivos do modelo, os relatos vindos das escolas pintam um quadro diferente. Além das questões constitucionais, denúncias de abuso de autoridade, casos de racismo e desperdício de recursos públicos têm sido frequentes.
Um dos problemas mais sérios é a imposição de regras estéticas consideradas abusivas pelos estudantes. Desde a proibição de piercings até a obrigatoriedade de um corte de cabelo específico, o ambiente escolar tem sido descrito como uma “prisão” por alguns alunos e pais.
Desperdício
Recentemente, veio à tona o caso de mais de 95 mil uniformes escolares inutilizados, gerando um possível desperdício de recursos públicos. Essa situação foi destacada pelo líder da oposição na Assembleia Legislativa do Paraná (Alep), deputado estadual Requião Filho (PT).
Segundo Requião Filho, “é inadmissível que recursos públicos sejam desperdiçados dessa forma. São mais de 95 mil uniformes inutilizados, o que representa um desrespeito ao dinheiro do contribuinte e uma falha grave na gestão pública.” O parlamentar ressaltou a importância de uma investigação completa sobre o caso e a responsabilização dos envolvidos.
Abuso de autoridade
As reclamações não param por aí. Relatos de abuso de autoridade por parte de ex-militares em cargos de gestão, como o caso de dois policiais militares aposentados denunciados por crimes de ameaça e violência contra adolescentes, também causam preocupação.
O cenário é ainda mais complicado quando se trata da empresa responsável pela confecção dos uniformes. A Triunfo, contratada pelo governo, está sendo investigada pelo Ministério Público do Paraná por possíveis irregularidades. A empresa é acusada de não cumprir adequadamente o contrato e de possuir conexões com outra empresa envolvida em escândalos de corrupção.
Além disso, as escolas cívico-militares têm sido alvo de críticas também pela imposição de normas que afetam a liberdade de expressão e identidade dos estudantes. Relatos de alunos obrigados a retirar piercings e mudar seu estilo de cabelo têm se multiplicado, gerando um clima de desconforto e insatisfação entre a comunidade escolar.
Requião Filho enfatizou ainda que “A situação nas escolas cívico-militares do Paraná é alarmante e merece uma resposta imediata das autoridades competentes. Não podemos permitir que os direitos dos estudantes sejam violados ou que o dinheiro público seja mal utilizado. É necessário um esforço conjunto para garantir uma educação de qualidade e um ambiente escolar seguro e respeitoso para todos”, disse em plenário.
Denúncias de racismo
Em fevereiro, uma denúncia veio à tona contra um monitor de uma escola cívico-militar, sugerindo que um estudante negro cortasse seu cabelo afro para não ser associado a um bandido. A acusação foi registrada pela família da vítima em um boletim de ocorrência, foi trazida à tona pelo sindicato dos professores, a APP-Sindicato.
Para o portal da entidade, a mãe da vítima, que teve sua identidade preservada, afirmou que o episódio é inquestionavelmente racista: “Meu filho não é um delinquente. Nunca tive problemas na escola por causa dele. Se ele vê alguém brigando, fica nervoso, passa mal”, afirma. O silenciamento das vítimas e a ameaça de processos por calúnia e difamação, como relatado por uma colega do estudante, agravam o problema.
Além desse caso, relatos de práticas racistas em outras escolas cívico-militares surgiram recentemente. Uma mãe, preocupada com o tratamento dispensado a seu filho, desabafou: “Cada dia que meu filho vai à escola, tenho mais medo. Não sei como as crianças são tratadas lá dentro.” Esses incidentes, junto com muitos outros, têm sido amplamente compartilhados nas redes sociais e canais de comunicação da APP-Sindicato.
MP de olho
O Ministério Público Federal (MPF) recentemente reforçou sua posição contra padrões estéticos impostos pelas escolas militarizadas, defendendo que tais exigências têm um impacto desproporcional sobre grupos marginalizados ou alvo de preconceito, como pessoas com cabelos crespos e cacheados. Essa posição foi reiterada ao recorrer de uma decisão judicial que negou um pedido liminar contra essa imposição.
A Secretária de Promoção de Igualdade Racial e Combate ao Racismo da APP-Sindicato, Celina Wotcoski, enfatiza que é responsabilidade das escolas públicas garantir que todos os estudantes sejam respeitados em sua diversidade.
“A escola deveria ser um espaço acolhedor, onde nossos educandos são bem-vindos. Não podemos aceitar práticas discriminatórias”, destaca.
Ela ressalta ainda que jovens negros já são marginalizados na sociedade, e atitudes racistas como essa só agravam o problema. “Precisamos acabar com a militarização das escolas. Bandido tem cor? Bandido tem características? Não podemos permitir que a educação de nossas crianças seja manchada por esse tipo de discriminação”, conclui Celina.
Para o ex-coordenador do Grupo de Pesquisa Estado, Políticas Públicas e Educação Profissional, do Instituto Federal de Educação do Paraná (IFPR), e atual professor da Unicamp, Lucas Barbosa Pelissari, as escolas cívico-militares surgem no contexto político pós-impeachment de 2016, com a aplicação de políticas neoliberais e o fortalecimento da extrema-direita, com isso, a militarização das escolas.
”É uma plataforma bastante prejudicial a formação dos jovens, que precariza a educação no sentido da qualidade, no direito público à educação, mas com ares de fortalecimento. (…) E com isso essas escolas excluem o pensamento crítico, enfraquece a instituição escolar, e cumpre com o papel de recrutamento para movimentos ligados ao bolsonarismo”, analisa.
Edição: Pedro Carrano
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Foto: Seeduc (RJ)