Luta pela terra, violência no campo e duração razoável do processo. Por Julio José Araujo Junior e Matheus de Andrade Bueno

Na ANPR

O dia 17 de abril retrata o “Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária”, instituído pela Lei 10.469/2002 em alusão ao massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido em 17 de abril de 1996. Na ocasião, 19 trabalhadores sem-terra foram assassinados por policiais militares no Pará após o bloqueio de uma rodovia.

Dessa forma, a data marca dois aspectos igualmente relevantes: de um lado, a celebração da luta pela terra e, de outro, a memória de um ainda persistente processo de violência no campo que se verifica em resposta a tais mobilizações sociais.

Com efeito, a trajetória da luta pela terra e o processo de violência dela decorrente se confundem no contexto da história brasileira. Embora as formas e métodos possam passar por algumas modificações, como pela recente tentativa de institucionalização de milícias rurais, os episódios de violência, infelizmente, ainda caracterizam o cotidiano da vida no campo.

O já mencionado massacre de Eldorado dos Carajás foi sucedido por outros lamentáveis casos de violência no campo. Dentre eles, o assassinato da irmã Dorothy Stang em Anapu, região de Altamira, também no Pará.

Na perspectiva da jurisprudência dos Tribunais Superiores, alguns casos foram submetidos ao Superior Tribunal de Justiça e acarretaram o excepcional deslocamento da competência em favor da Justiça Federal (IDC 22, Rel. Min. Messod Azulay Neto, julgado em 23/08/2023).

Na seara internacional, a temática dos conflitos agrários ensejou a condenação do Estado brasileiro nos casos Escher e outros vs. Brasil e Sales Pimenta vs. Brasil, os quaisjá são parte conhecida dessa lamentável realidade. Soma-se agora a recente condenação do Estado brasileiro no caso Antônio Tavares vs. Brasil, de 14 de março de 2024.

Mas os casos de violência no campo não se resumem a acontecimentos célebres e que ganham notoriedade e repercussão pública. Conforme dados catalogados pela Comissão Pastoral da Terra, e considerando apenas os casos de violência contra a pessoa, foram identificados, somente no ano de 2022, mais de dois mil conflitos pela terra envolvendo quase 1 milhão de pessoas. Uma enormidade de pessoas que suportam individualmente o ônus de uma luta coletiva.

Há, portanto, uma imensidão de “casos anônimos” de defensores de direitos humanos que reclamam intervenção estatal firme. Certamente, uma das esferas associa-se à necessidade de investigação, processamento e responsabilização. Essa circunstância não exclui, contudo, a indispensabilidade de que ações administrativas sejam priorizadas a fim de solucionar esses conflitos.

É crucial, nessa linha, reconhecer a indissociável correlação entre a concretização de direitos fundamentais e a proteção de defensores de direitos humanos que se mobilizam pelo cumprimento da Constituição.

Nessa linha, a Declaração sobre Defensores de Direito Humanos da ONU é expressa ao consignar que “todos têm o direito, individualmente e em associação com outros, a uma protecção eficaz da lei nacional ao reagir ou manifestar oposição, por meios pacíficos, relativamente a atividades, atos e omissões imputáveis aos Estados, que resultem em violações de direitos humanos e liberdades fundamentais”.

Em sentido semelhante, o Acordo Regional sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais na América Latina e no Caribe (Acordo de Escazú), do qual o Estado brasileiro é signatário (embora ainda sem ratificação), estabelece o direito a um “ambiente seguro e propício para as pessoas, grupos e organizações que promovam e defendam os direitos humanos”.

Com relação à proteção em âmbito nacional, ao julgar o caso Sales Pimenta vs. Brasil, a Corte Interamericana reconheceu a insuficiência da Política Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, instituída pelo Decreto n. 6.044/2007.

Não se ignora que, como desdobramento dessa condenação, o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania instituiu o Grupo de Trabalho Técnico Sales Pimenta, ao qual incumbe a formatação de uma minuta de projeto de lei e a confecção de um plano nacional de proteção.

Os trabalhos, pelo que se tem notícia, se encontram em fase de escuta pública e se alicerçam sobre os eixos de fortalecimento da proteção popular, institucionalidade protetiva, investigação e responsabilização e medidas protetivas e de reparação.

No entanto, e sobretudo diante da urgência que caracteriza os casos de violência no campo, é preciso reconhecer que alguns avanços podem ser alcançados antes mesmo da conclusão de um programa nacional e da submissão do tema ao Congresso Nacional.

De fato, a ocorrência e persistência de inúmeros conflitos no campo decorre da incapacidade do poder público em promover a adequada destinação e alocação territorial. Em outras palavras, a indefinição da afetação de terras públicas à luz dos mandamentos constitucionais é um dos principais fatores que conflagram disputas pela terra e, por consequência, produz as condições para a deflagração e persistência de conflitos no campo.

Ademais, a Constituição prescreve a duração razoável do processo, com expressa incidência em processos judiciais e administrativos (art. 5º, LXXVIII, CRFB). Essa duração razoável, embora não guarde relação com parâmetros temporais com precisão aritmética, deve ser mensurada a partir do gravame acarretado pela pendência de um processo administrativo e judicial.

É por essa razão que, por exemplo, sem qualquer vínculo com o juízo de culpabilidade, os processos com acusados presos contam com prioridade de processamento e julgamento no Poder Judiciário.

Os casos de violência no campo, sobretudo nas hipóteses de ameaça ou violência contra a pessoa, os quais traduzem risco iminente à incolumidade individual, seguramente produzem prejuízo considerável à esfera jurídica dos interessados que aguardam algum desfecho.

Nesse sentido, cabe ao poder público, especialmente aos órgãos fundiários, mas também ao sistema de Justiça como um todo, identificar, catalogar, impulsionar e solucionar com preferência os casos de disputas de terras que envolvam violência contra a pessoa e, com ainda maior razão, nas hipóteses de pessoas incluídas nos programas de proteção a defensores de direitos humanos.

De fato, as diversas medidas emergenciais comumente adotadas pelos programas de proteção são essenciais e atuam como resposta aos sintomas manifestados. Mas é indispensável que o poder público atue na causa e promova a destinação fundiária de acordo com os comandos constitucionais.

O Min. Luiz Edson Fachin, no julgamento do marco temporal de demarcação de terras indígenas, bem afirmou que “não há segurança jurídica maior que cumprir a Constituição” (STF, RE 1.017.365/SC, Tribunal Pleno, julgado em 27/09/2023). Na espacialidade da proteção de defensores de direitos humanos, essa racionalidade também pode ser empregada.

Portanto, o dia 17 de abril conclama pela reflexão sobre a luta pela terra, principalmente para realçar que a proteção de defensores de direitos humanos e o enfrentamento à violência no campo devem pautar-se pelo ainda incompleto e mais poderoso remédio normativo: a efetivação da reforma agrária à luz dos comandos constitucionais.

*Julio José Araujo Junior, procurador da República; Matheus de Andrade Bueno, procurador da República.

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