Diante dos imensos custos de reconstrução após as enchentes, o Rio Grande do Sul deveria olhar para o exemplo do estado de Vermont, nos Estados Unidos, onde uma nova lei responsabiliza empresas petrolíferas por danos causados pelo aquecimento global
Jonathan Watts, Sumaúma
Quem vai pagar a conta de bilhões de dólares para reconstruir o Rio Grande do Sul após o pior desastre climático da história do estado? Em vez das habituais vítimas inocentes – pessoas que perderam suas casas, pequenos comerciantes que perderam seus negócios –, que tal cobrar de empresas que produzem petróleo, gás, carne bovina e soja, por exemplo, que são as maiores responsáveis por essa catástrofe não natural?
O estado de Vermont, no Nordeste dos Estados Unidos, fez exatamente isso ao tomar uma decisão jurídica que pode ter implicações inéditas em todo o mundo. Em maio de 2024, promulgou uma nova lei que exige que as empresas de combustíveis fósseis paguem por uma parte dos prejuízos da crise climática.
Chamada de Vermont’s Climate Superfund Act (lei do superfundo climático de Vermont, em tradução livre), a lei foi criada em reação aos danos causados por inundações catastróficas ocorridas no verão de 2023 e outros eventos climáticos extremos. Os impactos foram tão grandes que reuniram adversários políticos a favor da mesma causa. Assim, a Assembleia estadual, controlada pelo Partido Democrata, conseguiu aprovar a nova medida com ampla maioria e o apoio de parlamentares do Partido Republicano. A lei foi promulgada sem veto pelo governador, o republicano Phil Scott.
São inevitáveis as preocupações sobre futuras batalhas judiciais entre o pequeno Vermont e as poderosas multinacionais petrolíferas. Ainda assim, Phil Scott não hesitou. “Eu entendo o desejo de buscar financiamento para mitigar os efeitos da mudança climática que tem prejudicado o nosso estado de várias formas”, afirmou o governador.
O exemplo de Vermont pode ser uma inspiração para o Rio Grande do Sul e para outras regiões, cada vez mais numerosas, que sofrem com desastres amplificados pelo aquecimento global provocado pelo ser humano. Nos Estados Unidos, Maryland, Massachusetts e Nova York estão considerando a adoção de medidas semelhantes.
Os avanços tecnológicos tornaram isso mais viável. Atualmente, cientistas podem quantificar o impacto humano em eventos climáticos extremos individuais usando modelos computacionais e dados das áreas vulneráveis. No início de junho, uma equipe internacional do projeto World Weather Attribution descobriu que a inundação atipicamente severa, prolongada e extensa no Sul do Brasil tornou-se pelo menos duas vezes mais provável e 9% mais intensa graças à queima de combustíveis fósseis e de árvores.
O cálculo de custos e da responsabilidade de partilha também está ficando mais prático. No caso da nova legislação de Vermont, os funcionários do governo local terão até janeiro de 2026 para avaliar os custos totais para o estado das emissões de gases de efeito estufa entre 1995 e 2024, incluindo os impactos na saúde pública, na biodiversidade e no desenvolvimento econômico. Em seguida, eles usarão dados federais para determinar quanto cobrar dos poluidores individuais por esses danos.
A responsabilidade pela crise climática está concentrada em um número notavelmente pequeno de empresas em todo o mundo. A base de dados Carbon Majors descobriu que apenas 57 produtores de petróleo, gás, carvão e cimento estão diretamente ligados a 80% das emissões de dióxido de carbono fóssil medidas a partir do Acordo de Paris de 2015.
A jurisdição é mais um desafio, embora não seja intransponível. O estado de Vermont pode ter como alvo companhias petrolíferas dos Estados Unidos, como a ExxonMobil e a Chevron. Um superfundo brasileiro provavelmente buscaria uma compensação da Petrobras, que pretende explorar petróleo na bacia da foz do Rio Amazonas. Ou ainda de empresas ligadas ao desmatamento da Amazônia, do Cerrado e do Pantanal, como a JBS ou a Bunge. Há também os interesses do agronegócio e seus apoiadores políticos que violaram a regulamentação ambiental no Rio Grande do Sul. Já existe um crescente corpo de evidências científicas que ligam os padrões regionais de chuva e temperatura ao desmatamento na Amazônia.
Outra forma de obter uma compensação seria no campo internacional. Na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas em Dubai, em 2023, foi aprovada a criação de um fundo de perdas e danos para apoiar os países mais afetados pela emergência climática. Mia Mottley, primeira-ministra de Barbados, sugere que os grandes poluidores do planeta ponham no superfundo climático global pelo menos 10% de seus lucros.
As indústrias de petróleo, gás, cimento, carne e soja lutarão com força contra isso, mas está cada vez mais óbvio que elas precisam responder pelo fato de lucrarem enormemente à custa do clima e dos moradores de lugares como o Rio Grande do Sul e Vermont. Fazer com que paguem pelas consequências de suas ações reduziria o estímulo ao desmatamento e à destruição de biomas como a Amazônia e daria uma vantagem competitiva a alternativas mais limpas e amigáveis para a Natureza.
E não esqueçamos que o Rio Grande do Sul não será o último lugar a sofrer danos climáticos. Todos os anos, haverá mais ondas de calor, secas severas e tempestades intensas. A Amazônia também será afetada. O que nos leva de volta à questão que abre este artigo. Quem deve pagar: aqueles que perderam tudo por causa dos efeitos da catástrofe climática ou aqueles que lucraram ao causá-los?
Nesta edição, SUMAÚMA relata as dificuldades contínuas enfrentadas pelas vítimas das inundações. O artista Pablito Aguiar desenha outra história em quadrinhos, desta vez sobre a cartunista Talita Grass, cujas posses foram engolidas pela lama. “Naquela noite, tudo o que sou ficou para trás”, lamentou ela. “A vida continua, mas agora é mais difícil.”
A importância – e o desafio – de ligar o desastre à crise climática causada pelo homem é tema de uma reportagem instigante da jornalista e bióloga Jaqueline Sordi, de Porto Alegre. Ela examina de que maneira as fake news estão sendo usadas como uma tática da extrema direita para desinformar a população, fortalecer o negacionismo e tirar o foco de quem são os principais responsáveis por essa calamidade, os grandes negócios e os políticos. A repórter Sílvia Lisboa relata ainda como, apesar de toda a tragédia, deputados e senadores do Rio Grande do Sul continuam defendendo o enfraquecimento das leis ambientais, o que pioram a instabilidade climática do estado e de todo o planeta.
A extrema direita sempre tenta negar as conexões entre as pessoas e o clima, entre o descumprimento da lei e os danos públicos e entre a derrubada da Amazônia e os desastres no Rio Grande do Sul. Para ela, tudo é determinado por indivíduos isolados que competem uns com os outros. SUMAÚMA acredita no oposto: somos todos interdependentes e prosperamos mais quando trabalhamos juntos em sociedade e com outras espécies. Encontrar formas possíveis de fazer isso requer criatividade, compaixão e disposição para propor novos modelos.
Algo nem sempre fácil, como a repórter investigativa Claudia Antunes descobre ao fazer um profundo mergulho no tema da bioeconomia, um conceito muito usado, pouco compreendido e que poderia ter grande impacto na Amazônia e nos outros biomas do Brasil. Será que a bioeconomia oferece uma alternativa ao capitalismo voraz ou é somente mais um rótulo de greenwashing para as indústrias predatórias? Leia a reportagem de Claudia e tire suas conclusões. Trata-se de uma questão que só vai crescer em importância.
Por fim, chamamos atenção para um trabalho de profunda força emocional: o podcast do jornalista-floresta Maxiel Ferreira, de 18 anos, um participante muito querido do Programa de Coformação Micélio-SUMAÚMA. Morador do Rio Iriri, no Pará, Maxiel conta a história de sua avó, Francisca Ferreira, a mulher amazônida que o criou e cuja trajetória é sinônimo de força e resiliência: “Ela me deu a vida”, diz Max, numa homenagem comovente e repleta de referências sobre a cultura Beiradeira e as ligações entre passado, presente e futuro.
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Foto: Lauro Alves/Secom