Por Fernanda Couzemenco, Século Diário
Já passou da hora de realizar análises sobre os impactos da contaminação por metais na saúde humana. Já passou da hora de iniciar ações de reparação ambiental na calha do Rio Doce e no litoral norte capixaba. Já passou da hora de implementar os direitos dos atingidos em São Mateus e Conceição da Barra, de acordo com a Deliberação nº 58/2017 do Comitê Interfederativo (CIF). Já passou da hora de tomar medidas efetivas para estancar o vazamento de rejeitos que continua, a partir dos reservatórios das hidrelétricas de Candonga e Baguari, em Minas Gerais.
Essas são algumas das muitas negligências graves que se acumulam nesses quase nove anos do crime da Samarco/Vale-BHP contra o Rio Doce, apontadas como urgentes de correção no mais novo relatório anual do Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática (PMBA), realizado por meio da Fundação Espírito-Santense de Tecnologia da Universidade Federal do Espírito Santo (FEST/Ufes) e apresentado à Câmara Técnica de Biodiversidade (CTBio) na semana passada em Vitória.
Para os mais de cem especialistas de todo o país envolvidos no estudo, já há elementos técnicos e científicos suficientes para que os gestores públicos municipais e estaduais, operadores da Justiça e lideranças políticas envolvidas na Repactuação tomem medidas efetivas em favor das pessoas e comunidades atingidas. Após a apresentação técnica dos dados desta quinta edição anual do PMBA, os pesquisadores continuaram reunidos preparando proposições de ações, em forma nota técnicas e outros instrumentos, para gestores e também outras câmaras técnicas do sistema CIF, como a de Saúde, a de Rejeito, de Qualidade de Água, de Socioeconomia e a de Povos e Comunidades Tradicionais.
Em suas considerações finais, o relatório afirma que “a atual situação da área afetada pelo rompimento e monitorada pelo PMBA/FEST, apesar de uma relativa melhora desde a data do rompimento, ainda apresenta efeitos negativos tanto sobre o ambiente quanto na biodiversidade, representando uma fonte contínua de contaminantes, de tal modo que medidas de gestão são cruciais para que o processo de recuperação seja iniciado”.
A constatação do aumento da “biomagnificação” de metais pesados em animais de topo de cadeia, como peixes maiores, cetáceos e tartarugas marinhas, mostra a urgência de se realizar, de uma vez por todas, estudos semelhantes em seres humanos, para entender de que forma essa contaminação, já comprovada nos animais aquáticos, tem afetado as pessoas, principalmente as que fazem consumo mais frequentes dos pescados, para que medidas de saúde pública sejam tomadas.
“O acúmulo de metais nos organismos está aumentando, por bioacumulação e biomagnificação”, afirma o coordenador da CTBio, o analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (IMCBio) Frederico Martins, referindo-se a dois processos registrados no rio e o no mar.
A bioacumulação é o acúmulo de metais que ocorre de uma espécie para outra, por exemplo a contaminação do plâncton é transferida para o pequeno animal que o consome, que é então transmitida para o maior que é seu predador, e assim sucessivamente até os animais maiores, de “topo de cadeia alimentar”. Já a biomaginificação ocorre dentro do organismo de um mesmo indivíduo, que vai acumulando metais dentro de seu corpo, à medida que vai consumindo alimentos contaminados ao longo do tempo, até desenvolver alguma doença decorrente disso ou até morrer.
“Se os organismos que a gente monitora, nos topos de cadeia, estão com esse acúmulo, os organismos acima deles, nós, seres humanos, provavelmente também estão sofrendo essa acumulação orgânica, principalmente aqueles que consomem o pescado de uma forma frequente”, ressalta. “E essa análise não foi feita até agora no âmbito do CIF. A CTBio está dando esse alerta. E nem é preciso fazer um monitoramento de longo prazo, como o que fazemos para a biodiversidade marinha, para confirmar, basta uma avaliação da saúde humana”, orienta.
Frederico lembra que algumas análises já foram feitas, por algumas universidades, e que os estudos da Aecom Brasil, perita judicial contratada pelo Ministério Público Federal, também apontam para a gravidade dos efeitos de uma contaminação por metais na saúde humana, mas que o CIF não reconheceu esses dados, tampouco das empresas, então as medidas judiciais e práticas não foram tomadas. “A CTBio tem a responsabilidade e o compromisso de levantar os dados e fazer os diagnósticos da área ambiental, e os tem feito. Agora é importante que esses dados sejam usados em ouras áreas, principalmente saúde e impactos socioeconômicos”, aconselha.
Estudo confirma relatos dos pescadores
“A Câmara Técnica de Saúde deveria fazer análise dos riscos para a saúde humana”, concorda Joca Thomé, também analista ambiental do ICMBio e coordenador do monitoramento do PMBA pela CTBio. Na biodiversidade aquática, afirma, este quinto relatório anual confirma as denúncias dos pescadores sobre os impactos da contaminação crônica sobre o pescado, que é percebida pelos trabalhadores do mar e do rio por meio de casos recorrentes de peixes deformados e com tumores, da redução da população de muitas espécies, da invasão de espécies exóticas, entre outros danos à pesca artesanal.
“Larvas de peixes e de camarões estão sendo encontradas com muitas deformidades, sem “sucesso larval”, como se diz. Os camaroeiros dizem que o camarão está miúdo e os estudos confirmam isso. Na Foz do Rio Doce, os organismos de fundo, os bentos, só se encontram as carapaças deles. Há muitas mortandades de determinadas espécies, diminuição de outras, e espécies exóticas, principalmente tucunaré e piranha, que são mais resistentes aos metais que as demais, estão se proliferando mais. Como o ambiente vai se readaptar a todas essas mudanças? Só o tempo vai dizer. Mas é preciso uma intervenção ao longo do rio”, argumenta Joca Thomé.
Diante do espanto da repórter, Joca confirma que nenhuma ação de reparação ambiental do rio e do mar foi feita até o momento, passados nove anos do crime. “O que tem sido feito é no âmbito terrestre, recuperando matas ciliares e margens para diminuir erosão, recuperando nascentes para aumentar e melhorar quantidade de águas. Mas nos leitos dos rios, não”.
Com objetivo de subsidiar medidas nesse sentido, o 5º relatório do PMBA elenca quais áreas são mais estratégicas para receberem essas intervenções. “Não dá para fazer tudo ao mesmo tempo, é preciso trabalhar em áreas prioritárias, seja porque retêm mais os sedimentos ou porque estão com níveis de contaminações mais acentuadas. Os mapas produzidos permitem que a gente trabalhe com números e temas e identifique as áreas prioritárias para determinados temas. O que fazer em 600km de rio e 400 km de costa? Agora temos condições de priorizar temas, áreas e começar a ir para a remediação e reparação em áreas prioritárias”, explica.
O relatório afirma que a maior parte das áreas prioritárias nos ambientes dulcícolas, ou seja, de rio, estão dentro da calha do Rio Doce e “se estende por boa parte da porção fluvial do baixo Rio Doce”, devido aos “altos índices de contaminação”. Já para os ambientes costeiro e marinho, “foram observados maiores indicativos de contaminação partindo da foz do Rio Doce e seguindo para norte. Apesar disso, é importante frisar uma priorização em áreas que apresentam baixa contaminação e bons indicativos para a biodiversidade local, que podem servir como pools de espécies para as demais regiões monitoradas”.
Contenção do rejeito é prioridade
Outra confirmação da percepção dos pescadores se deu em relação à área atingida no mar. De fato, ela não se restringe mais aos 20 metros de profundidade, a partir da costa. “Vai mais mar adentro, para além dos 20 metros. Já vimos refeito em até 35 metros, mas temos uma média de 30m”, afirma Joca Thomé.
Em relação a uma ação de retirada do rejeito do fundo do rio e do mar, o relatório também trouxe elementos para se pensar em soluções possíveis. “É um desastre contínuo. Há muito rejeito nos reservatórios das hidrelétricas no fundo do leito do rio. A cada chuva intensa, mais material é lixiviado e levado à calha, em direção à foz, fazendo uma nova tragédia. A cada frente fria, o vento sul ressuspende o rejeito no fundo do mar e joga tudo em direção ao norte. E, conforme ele vai sedimentando, o vento nordeste traz um pouco disso em direção ao sul, mas de forma sobrenadante”.
Sobre a retirada do rejeito que ainda está nos reservatórios das hidrelétricas, também possibilidades são avaliadas. “A Câmara Técnica de Rejeito estuda a possibilidade de remover o rejeito do fundo. A pergunta é: o que é pior? Fazer uma grande movimentação agora, com grandes impactos, ou deixar como está por mais 60 anos ou mais, até que tudo seja levado rio abaixo, até o mar? Fala-se em nove a 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos ainda na hidrelétrica de Candonga”.
Se a retirada ou não do rejeito do fundo dos reservatórios ainda é uma dúvida, uma questão é ponto pacífico, segundo Joca: “a contenção do rejeito é a principal ação a ser tomada, em Candonga e Baguari. Vai ser retirado de caminhão, com movimento desse trânsito pesado dentro das comunidades, rachando casas e outros transtornos? Não sei sabe, mas é preciso conter”.
Impactos agravados
Superintendente do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em Minas Gerais e atual presidente suplente do CIF, Sergio Augusto Domingues lembra ainda que a crise climática tende a agravar os impactos do crime em toda a bacia hidrográfica e no mar, e que é preciso que os gestores utilizem os dados do PMBA para tomar as medidas necessárias para a proteção da população e da natureza.
“Os eventos climáticos de cheias tendem a amplificar os impactos. A cada grande cheia, esses impactos ganham dimensão maior. Não mais hipóteses, temos agora evidências. E ter essas evidências científicas bem organizadas na matriz de resultados, é muito importante para a tomada de decisões. É fundamental não haver descontinuidade do monitoramento, como já ocorreu, por pressão da Fundação Renova. Felizmente, o monitoramento está garantido até o próximo período chuvoso, e é preciso continuar para além disso. Precisa também fazer a relação intercâmaras, pois há muitos desdobramentos a serem considerados, no ordenamento pesqueiro, nas questões ligadas à Repactuação, na melhoria da qualidade ambiental, no manejo das espécies silvestres, na reestruturação das comunidades atingidas”.
Para além da reparação, o presidente interino do CIF clama por medidas preventivas. “Populações tradicionais, com seus modos de vida, como os Krenak, que têm uma relação muito específica com o rio, que eles chamam de Watu, o avô, o que aconteceu pode ser que não tenha como reparar essa situação. Muitas comunidades estão sem água para beber hoje. Recebem caminhão pipa, galões de água. É preciso pensar nas estratégias de segurança desses diversos empreendimentos minerários que temos, principalmente em Minas Gerais. Que se faça no Brasil as melhores práticas, um compromisso com a segurança das comunidades”.
O coordenador da CTBio reforça a necessidade de que os gestores e os movimentos sociais “se apropriem dos dados” do relatório, para que a reparação de fato aconteça. “A gente espera que o sistema CIF, as prefeituras e a sociedade civil organizada possam se apropriar desses dados para lutar por seus direitos e lutar por reparação. É um estudo de impacto ambiental sobre o desastre mais grave que já houve no nosso país. A luta pelo processo reparatório tem que ser coletiva. Se as pessoas não usarem esses dados, esse relatório pode ficar só na gaveta”.
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Foto: Leonardo Sá