Tataravô do ex-presidente teria usado negros e indígenas para produção de algodão
Por Bruno Fonseca | Edição: Mariama Correia, Agência Pública*
Se existe um termo que pode ser usado para a família Collor de Mello é: política. O ex-presidente brasileiro Fernando Affonso Collor de Mello e seus parentes formam um emaranhado de linhagens tradicionais do estado de Alagoas, que marcaram a história política do país, incluindo episódios que envolvem corrupção e assassinato. E agora, segundo a Agência Pública apurou, esse passado familiar também está relacionado à escravidão e às terras que restaram da destruição do quilombo mais conhecido da história do Brasil, Palmares.
O membro mais notório da família é, provavelmente, o próprio Collor, atualmente condenado a oito anos e dez meses de prisão pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por receber uma propina de R$ 20 milhões para influenciar contratos na BR Distribuidora com a empresa UTC Engenharia, entre 2010 e 2014. A defesa do político nega o crime. Um recurso apresentado pelo ex-presidente foi negado no dia 14 de novembro. O primeiro presidente brasileiro que perdeu o cargo por um processo de impeachment após o fim da ditadura de 1964, Collor foi o responsável por impulsionar o neoliberalismo e as privatizações e confiscar poupanças. A despeito disso, ele foi eleito senador por Alagoas duas vezes depois de ter sido retirado da Presidência.
Senador foi também o cargo que seu pai, Arnon Afonso de Farias Mello, alcançou. Nascido em 1911 na capital de Alagoas, Maceió, ele foi eleito ao Senado três vezes, entre 1963 e 1983. Na primeira delas, quando estava no extinto Partido Democrata Cristão (PDC), ele protagonizou uma das cenas mais esdrúxulas e trágicas da história da Casa.
Durante uma discussão com o senador Silvestre Péricles (PTB-AL), Arnon disparou e acabou acertando – e matando – outro colega, que nada tinha a ver com a querela: José Kairala (PSD-AC), um suplente que estava no seu último dia de substituição do senador eleito nas urnas. O crime aconteceu em 4 de dezembro de 1963 e Arnon, apesar de brevemente detido, não foi condenado pelo Tribunal do Júri de Brasília após ter alegado legítima defesa e a Justiça entender que se tratou de “crime acidental”. Arnon se filiaria à Arena, partido de apoio à ditadura, em 1966.
Collor, Mello e Bittencourt: famílias que se perpetuam na política
A família de Collor se divide em dois ramos de políticos a partir de Arnon, seu pai.
Do lado materno, de onde vem o sobrenome Collor, está o avô Lindolfo Leopoldo Boeckel Collor, que viveu entre 1890 e 1942. Ex-deputado estadual e federal pelo Rio Grande do Sul e ex-ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, ele era descendente de alemães que migraram para o Sul do país. É dessa imigração que surge o sobrenome pelo qual ficou conhecido o ex-presidente: Collor é uma versão brasileira de Köhler.
Já do lado paterno, dos Mello, está a linhagem de políticos alagoanos da qual descende o avô Manoel Afonso de Mello Filho, usineiro que viveu entre 1904 e 1995. Ele era dono de uma propriedade chamada Cachoeirinha, em Rio Largo, próximo a Maceió, onde Arnon nasceu. A informação foi confirmada pelo Instituto Arnon de Mello, entidade ligada a um grupo empresarial que controla diversos veículos de comunicação e que tem como um dos sócios o próprio ex-presidente.
Manoel foi casado com Lúcia de Farias Cardoso, que, por sua vez, também vem de uma linhagem tradicional do estado, a família Bittencourt. É nesse tronco que documentos apontam um histórico relacionado à escravidão.
Mãos negras e indígenas na colheita do algodão
O bisavô de Lúcia e tataravô de Collor foi o coronel João de Farias Bittencourt, que viveu entre 1788 e 1886. A Pública encontrou um registro do jornal A Actualidade, de 16 de janeiro de 1864, no qual ele teria chegado ao posto de chefe do estado-maior do comando superior da guarda nacional dos municípios de Pilar e Atalaia, próximos de Maceió.
O coronel foi dono também do engenho São Miguel, em Atalaia. Segundo o livro O Banguê nas Alagoas, de Manuel Diegues Júnior – cientista social que escreveu diversas obras sobre o passado econômico da produção de açúcar no estado -, o engenho teria funcionado com mão de obra de pessoas escravizadas de origem africana e indígenas de aldeias locais. A relação foi apontada também pela dissertação de mestrado de Eric Nilson da Costa Oliveira, na pós-graduação em História da Universidade Federal de Alagoas (Ufal).
Essas pessoas seriam usadas para um trabalho de manufatura de algodão. Segundo a obra de Diegues, o coronel Bittencourt teria conseguido com o ouvidor José de Mendonça Matos Moreira – que comandou a comarca de Alagoas entre 1779 e 1798, que na época já havia se separado de Pernambuco – a construção de uma feitoria no engenho para comercializar a produção.
“Nessa feitoria trabalhavam escravos africanos e ‘índios’ das aldeias de Santo Amaro e Cabeça do Cavalo; sua instalação data dos começos do século 19. São informações que se podem colher na valiosa memória do professor Joaquim Inácio Loureiro sobre o algodão nas Alagoas. Também na feitoria plantavam-se café, jaqueiras e outras fruteiras”, diz trecho do livro.
A identidade das pessoas escravizadas, como em tantos outros documentos históricos, ficou anônima no registro sobre o engenho do coronel Bittencourt.
De acordo com as pesquisas de Diegues, o algodão, junto à cana de açúcar, eram as principais fontes da economia de Alagoas nessa época, sendo que o algodão chegou a superar o açúcar em meados do século 19. A mão de obra dos escravizados, por sua vez, fazia girar a economia que beneficiava os senhores de engenho de tal forma que a abolição do tráfico no Atlântico, em 1850, deixou os escravizadores preocupados com seus negócios.
Diversos presidentes da província de Alagoas chegaram a falar sobre os “problemas” que o fim do tráfico trouxe à mão de obra para as plantações. Em 1860, o então presidente provincial Pedro Leão Veloso “acentuou a crise advinda com a repentina cessação do tráfico de africanos”, acrescentando que “fora da indústria agrícola nenhuma outra fonte de riqueza temos”, como relatou Diegues em seu livro. O presidente seguinte, Souza Carvalho, também teria apontado, em 1861, a progressiva “falta de braços escravos como a questão que mais deve preocupar”.
A reportagem procurou o ex-presidente para esclarecer os achados sobre sua árvore genealógica e a relação do antepassado com a escravidão, assim como fizemos com todas as autoridades citadas no Projeto Escravizadores. O político não respondeu à Pública até a publicação.
O município erguido ao lado dos escombros de Palmares
Atalaia, onde o antepassado de Collor tinha engenho, não é um município qualquer. A cidade, que hoje tem cerca de 48 mil habitantes, foi erguida próximo à área onde antes ficava o quilombo mais famoso da história do Brasil, o de Palmares.
Há registros de que Palmares já existiria desde o fim do século 16, a partir da fuga de pessoas escravizadas por senhores de engenho na capitania de Pernambuco. Elas encontraram um refúgio nas terras ao longo da serra da Barriga. O apogeu de Palmares teria ocorrido por volta do final do século seguinte, após a invasão holandesa no Nordeste ter desarticulado os engenhos de açúcar e intensificado a fuga de escravizados.
Após a expulsão dos holandeses, o governo pernambucano intensificou os ataques contra Palmares. Foi sob as armas do bandeirante paulista Domingos Jorge Velho e do capitão-mor Bernardo Vieira de Melo que o estado autônomo de Palmares cairia. Em 20 de novembro de 1695, Zumbi, então líder do quilombo, foi emboscado e morto. A data marca o feriado da Consciência Negra, que se tornaria lei nacional apenas em 2003, mais de 300 anos após o assasinato de Zumbi.
O próprio bandeirante paulista foi um dos beneficiados com a repartição das terras onde antes ficava o quilombo. De acordo com a Secretaria da Cultura de Alagoas, Domingos Velho fundou o arraial dos Palmares, onde mandaria construir a capela de Nossa Senhora das Brotas, que daria nome ao arraial. Quase 70 anos após a morte de Zumbi, em 1764, o local seria promovido a vila e rebatizado de vila de Atalaia.
A vila de Atalaia seria, no futuro, governada por outro antepassado do ex-presidente Collor. Segundo livro “Atalaia, último reduto dos palmarinos”, de Vandete Pacheco Cavalcante, o capitão Francisco Guilherme Bittencourt, filho do coronel João de Farias (que teria usado mão de obra escrava no seu engenho), foi nomeado o primeiro intendente (espécie de prefeito) de Atalaia, em 1890, após o fim do Império do Brasil, na época da Primeira República. O capitão foi o trisavô de Collor e faleceu em 1914.
O município de União dos Palmares, onde hoje se localiza o Parque Memorial Quilombo dos Palmares, foi criado a partir do desmembramento de Atalaia em 1831.
*A investigação foi feita com apoio do Pulitzer Center
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Arte: Wikimedia commons/Senado Federal/Matheus Pigozzi/Agência Pública