Marta Rosa Amoroso discorre sobre a importância de rever o passado com o objetivo de melhorar o futuro
Por Paulo Capuzzo, Jornal da USP
A escravização dos povos indígenas no Brasil, iniciada com a chegada dos colonizadores europeus no século 16, é uma ferida histórica cujos impactos permanecem vivos na sociedade contemporânea. Desde o início da colonização, os indígenas foram submetidos a condições de trabalho forçado, exploração e genocídio cultural, resultando na redução drástica de suas populações e na fragmentação de suas comunidades. Este passado sombrio continua a moldar a realidade social, econômica e política dos povos originários no País. A professora de Antropologia da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas), Marta Rosa Amoroso, comenta a história brasileira e seus impactos na atualidade.
A escravização como pilar da colonização
Com a chegada dos portugueses em 1500, o sistema de colonização baseou-se na exploração de recursos naturais e na força de trabalho compulsória. Os indígenas, que viviam em milhares de etnias espalhadas pelo território, foram os primeiros a serem escravizados. Trabalhavam na extração do pau-brasil, no cultivo de alimentos e na construção de infraestrutura para os colonos. “A escravização dos povos indígenas é um desses eventos que marcam a relação do Brasil com os povos indígenas. Naquele momento, em 1990, nos dávamos conta que a escravidão indígena no período colonial estava associada à imensa catástrofe demográfica que marca a América. Muitos povos indígenas desapareceram da face da Terra como consequência desse encontro”, discorre Marta.
A professora ainda acrescenta a violência utilizada pelos bandeirantes, que, segundo estudos mais recentes, não estavam apenas atrás de expansão de território, mas sim de mão de obra escrava indígena. “O motivo das bandeiras seria a conquista de território.” Ao contrário, em seu livro clássico Negros da Terra, índios e bandeirantes nas origens de São Paulo, John Manuel Monteiro nos mostra que o principal motivo de deslocamento dos bandeirantes por uma cartografia gigantesca, que começava em São Paulo de Piratininga e podia chegar até Belém do Pará, era motivado pela busca de mão de obra indígena. “Mão de obra indígena retirada violentamente de suas terras tradicionais e conduzida para essas terras meridionais”, exemplifica.
Resistência e mudanças no sistema escravista
Apesar da brutalidade, os povos indígenas resistiram de diversas formas. Rebeliões, fugas e alianças estratégicas entre diferentes etnias marcaram a luta contra a escravização. A resistência forçou os colonizadores a buscar alternativas, como a importação de africanos escravizados, a partir do final do século 16. “Esse enfrentamento, esse tipo de enfrentamento que se dava na chave da fuga, dos deslocamentos, exigia que os povos indígenas criassem verdadeiros laboratórios de controle dos recursos de regiões que eles não conheciam, de forma a enfrentar as agruras provocadas pelo primeiro contato com a empresa colonial”, exemplifica Marta.
No entanto, a escravização de indígenas nunca foi completamente abandonada. Até meados do século 19, casos de trabalho forçado e violência contra populações originárias ainda eram registrados, especialmente em áreas mais isoladas. “A legislação indigenista do período colonial, nela a gente percebe que os indígenas foram enquadrados pelas leis da colônia em duas categorias, escravizados e livres. Então, índios poderiam ser escravizados, índios escravizados poderiam ser aqueles que foram entendidos pela coroa como aprisionados em guerras, guerras justas, ou obtidos, mão de obra obtida através do resgate em qualquer tipo de conflito”, acrescenta a professora.
Impactos no presente
A exclusão social e econômica enfrentada por muitos povos indígenas atualmente é reflexo direto desse passado de exploração. Embora a Constituição de 1988 reconheça seus direitos territoriais e culturais, a luta pela demarcação de terras continua sendo um dos maiores desafios. A ausência de políticas públicas eficazes contribui para a marginalização desses povos, que frequentemente enfrentam falta de acesso à saúde e educação e conflitos com invasores de suas terras.
“Hoje, práticas coloniais de opressão podem ser mobilizadas ainda por políticas do Estado ou por políticas de empresas privadas interessadas em recursos que subjazem às terras indígenas, como, por exemplo, a exploração mineral. Então, tem processos de exploração econômica dos territórios indígenas sob os quais a gente vê ainda estruturas que são estruturas muito conhecidas de tentativas de subjugar os povos indígenas em seus próprios territórios”, afirma Marta.
Estudar o passado para entender o presente
A análise histórica da escravização dos povos indígenas é fundamental para compreender as desigualdades atuais e buscar soluções efetivas. O estudo desse período não apenas ilumina as injustiças sofridas, mas também revela os mecanismos de resistência e resiliência que moldaram a história dos povos originários. Por meio da história, é possível questionar narrativas coloniais que minimizam a gravidade da exploração e contribuir para a construção de uma sociedade mais inclusiva. Essa reflexão também ajuda a valorizar o papel dos povos indígenas como guardiões de saberes ancestrais e da biodiversidade, fundamentais para enfrentar desafios globais, como a crise climática.
Marta Amoroso conclui destacando o papel das universidades na construção de uma identidade coletiva da história brasileira e também a importância dessas instituições para o entendimento dos processos de colonização do País. “Nossas pesquisas contribuíram muito para uma revisão do lugar dos povos indígenas e do protagonismo dos povos indígenas na luta por melhores condições de existência nessa história marcada por essas violências coloniais. E nossas pesquisas, de fato, reviram muito essa temática da escravidão indígena, tema que, surpreendentemente, mobilizou pouco interesse da historiografia brasileira até aquele momento”, finaliza.
*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira
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Foto: Wey Tenente