No Mapa de Conflitos, a saga dos Guarani Kaiowá, até a “mesa de conciliação” do STF

Tania Pacheco

“Para garantir o território [para os Guarani Kaiowá da Terra Indígena Nhanderu Marangatu], o Estado vai passar quase 150 milhões de reais àqueles que esbulharam, àqueles que ameaçaram, àqueles que mataram, àqueles que depredaram. A garantia dos direitos territoriais dos povos indígenas tem que passar agora pela premiação econômica para aqueles que vão continuar invadindo, depredando e matando”.

Na fala acima, proferida na 45ª Assembleia Regional do Conselho Indigenista Missionário Norte I, o secretário executivo do Cimi, Luis Ventura, se referia a um dos resultados da chamada ‘câmara’ ou ‘mesa de conciliação’, criada pelo ministro Gilmar Mendes para discutir a questão do ‘marco temporal’. O tal marco temporal, vale lembrar sempre, declarado inconstitucional pelo STF em 21/09/2023. O tal marco temporal apesar disso instituído pelo Congresso Nacional, semanas depois, como a lei – 14.701/2023 – numa ação de total desafio à decisão da Suprema Corte em defesa de direitos inalienáveis garantidos pela Constituição de 1988.

O veto do Executivo foi derrubado em questão de dias, o que era esperado. Mas, se esperávamos uma reação imediata e vigorosa do Supremo, declarando a inconstitucionalidade da lei e reafirmando seu papel institucional, o que tivemos foi um silêncio que perdurou por meses, até ser quebrado por um de seus ministros -o decano, aliás-, abrindo espaço para uma alegada “busca de conciliação” entre as partes.

Discutir o que aconteceu desde agosto de 2024, quando a delegação da APIB (cinco indígenas entre 23 integrantes, na maioria ruralistas) se retirou de um espaço onde testemunhava o desrespeito à Constituição e a seus direitos por ela garantidos, não é o objetivo deste texto. Mas precisamos mencionar o papel desempenhado pelo Ministério dos Povos Indígenas, aceitando tomar o lugar de representatividade dos povos originários e, de certa forma, reinstituindo uma ação de tutela anterior a 1988. Também vale lembrar a reunião citada por Ventura, na qual a Constituição foi novamente desrespeitada, inclusive em prol do ressarcimento às terras nuas ocupadas por latifundiários.  Ou a indicação de uma ex-deputada federal bolsonarista cassada, cuja identidade indígena é negada pela APIB e pelo Povo Wajãpi, para participar das discussões (e votações!) finais.

Semana passada, 17 de fevereiro, o ministro decano mostrou outra de suas facetas, ao tornar pública a minuta de um anteprojeto de lei a ser aprovado pelo STF e em seguida enviado ao Congresso, propondo alterações que fariam boa parte do conteúdo da lei 14.701/2023 caber na Constituição. Mas não só. Surpresa: [o STF também opera com jabutis*?] no centro do bolo inconstitucional, teríamos presentes valiosos para mineradoras e garimpeiros: autorização para mineração em terras indígenas. E tudo deveria ser aprovado (sem novas propostas, pois essa fase já teria passado, segundo GM) amanhã, 24 de fevereiro.

Como um primeiro resultado, até a AGU, que vinha aparentemente avalizando, mesmo que por omissão, a tentativa de reescreverem o capítulo Dos Índios da Constituição, decidiu sair em campo.  “Indignada” com a surpresinha do ministro, segundo alguns, a Advocacia Geral da União ‘pediu tempo’. E o decano adiou de 24 de fevereiro para 26 de março a votação de seu anteprojeto.

Mas voltemos aos Guarani Kaiowá da TI Nhanderu Marangatu: se alguém pensou que se tratava de um território em disputa, reivindicado por indígenas que ‘alegavam’ se tratar de uma área originária, errou. Nhanderu Marangatu teve seu reconhecimento homologado pelo presidente Lula em 2005, durante seu primeiro mandato. Há 20 anos. A ação de Gilmar Mendes e de sua câmera de negociação não deu nada aos indígenas, pois. Premiou, sim, os latifundiários que a ocupavam indevidamente. Qualquer tentativa de mostrar o acordo dos 147 milhões como uma vitória da ‘conciliação’ só pode provocar risos. Risos indignados, claro.

Infelizmente, penso que essa novela está bem longe de acabar. Pior: se o Supremo (que vem avalizando com seu nome as notícias da ‘mesa’ em seu site) aprovar o envio do anteprojeto ao Congresso Nacional, o fará ciente de que alguns dos ruralistas lá presentes não o aceitarão sem a expressa inserção do marco temporal na Constituição. Segundo eles, essa será uma condição sine qua non para a própria aceitação para tramitação da proposta. E, se tramitar, com certeza muitas famílias de jabutis serão a ele agregadas.

Para acalentar a passagem do tempo, entretanto, faço um pedido: que nos informemos um pouquinho mais sobre a saga dos Guarani e Kaiowá. Ela foi atualizada (faltam apenas estes últimos dados) e está disponível no Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, no site da Fiocruz: Povos indígenas Guarani e Kaiowá lutam contra genocídio por parte de latifundiários, fazendeiros, usineiros e empresários do agronegócio. Boa leitura. E muita indignação para a ação, espero.

*Jabuti é o nome dado a inserções de questões que em geral não têm qualquer relação com a matéria em pauta feitas por políticos em projetos prestes a serem votados e, provavelmente, aprovados.

Após ataque contra indígenas Guarani Kaiowá, foto de uma criança na retomada Ñhanderú Marangatú, município de Antonio João. Foto de Dionedison Terena. 2016.

 

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