Sob Milei, Argentina deve ter o maior protesto contra a ditadura da história do país

Organismos de direitos humanos, pela primeira vez em 20 anos, marcham juntos

Por Gabriel Vera Lopes, Brasil de Fato

São esperados centenas de milhares de argentinos nas ruas nesta segunda-feira, 24 de março, aniversário do golpe militar que deu início à ditadura no país (1976-83), no que pode ser uma das maiores mobilizações da história do país. Pela primeira vez em quase 20 anos, as principais organizações de direitos humanos marcharão unidas até a emblemática Plaza de Mayo – onde fica a sede do governo.

Desde 2006, sob o governo de Néstor Kirchner divergências políticas – especialmente sobre o papel do kirchnerismo na reabertura dos julgamentos de crimes contra a humanidade – mantinham as convocações divididas: uma organizada pela Mesa de Organizações de Direitos Humanos (mais alinhada ao governo da época) e outra pelo Encuentro Memoria, Verdad y Justicia (ligado à esquerda).

Essa unidade tem um duplo significado. Por um lado, é uma resposta ao negacionismo do governo Javier Milei, que questiona tanto o número de vítimas como o caráter assassino da ditadura civil-militar. Por outro, representa uma denúncia coletiva ao avanço autoritário, visível na criminalização dos protestos e no cerceamento sistemático das liberdades democráticas.

Os gritos de “São 30 mil” e “Foi um genocídio” ecoarão forte no ato principal, que contará com a presença das icônicas Mães e Avós da Plaza de Mayo. Os organizadores preveem uma mobilização sem precedentes, que enviará uma mensagem clara a um governo que – em suas palavras – “desmonta não só as políticas de memória, mas o próprio Estado de Direito”.

“O medo acabou. O medo se foi com Maria Sol. Eu sou Victoria.”

Os discursos negacionistas e de ódio ganharam força na Argentina, encorajados pelo próprio governo Milei. Grupos que antes atuavam à margem agora justificam abertamente os crimes da ditadura – um clima de impunidade verbal ativamente promovido pelo poder. O alerta é da deputada Victoria Montenegro, presidente da Comissão de Direitos Humanos de Buenos Aires, em entrevista ao Brasil de Fato.

“É uma estratégia sistemática”, denuncia. “Temos um governo – do presidente aos ministros – trabalhando incessantemente para apagar a história que construímos entre memória e justiça”

A vida de Victoria Montenegro é atravessada pela luta por Memória, Verdade e Justiça. Com apenas quinze dias de vida, em 13 de fevereiro de 1976, sua casa foi invadida por uma operação do Exército e da Polícia comandada pelo coronel Herman Tetzlaff. Seus pais, Hilda Ramona Torres e Roque Orlando Montenegro – militantes do Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT) – foram sequestrados e desapareceram. Victoria foi apropriada por Tetzlaff e sua esposa, que lhe roubaram a identidade e a criaram como “Maria Sol”.

Maria Sol tinha 24 anos quando descobriu sua verdadeira origem. Em 5 de julho de 2000, após anos de buscas das organizações de direitos humanos, ela recuperou seu nome e sua história.

“Há um povo com memória aqui”, reflete Victoria. “Disposto a defender os espaços, os processos judiciais, as organizações de direitos humanos, as mães, as avós, a busca pelos netos. Com resistência e memória, sairemos deste labirinto.”

As raízes da repressão

As semelhanças entre o governo Milei e a ditadura não são apenas ideológicas, mas de projeto político. Trata-se do plano dos setores econômicos mais poderosos, que buscam disciplinar a classe trabalhadora enquanto aprofundam um modelo de saque baseado em dívida e fuga de capitais. A análise é de Guillo Pistonesi, dirigente da Frente de Izquierda y los Trabajadores (agrupamento de partidos socialistas), em conversa com o Brasil de Fato.

“Quando o governo fala em ‘esquerdistas de merda’, fica claro que usam o mesmo vocabulário dos militares nos centros de tortura”, compara Pistonesi. O líder destaca que os protestos de aposentados e a resistência à repressão mostram “um novo ânimo combativo”.

“Algo mudou na Argentina no último mês. Apesar da violência estatal e do clima de medo, milhares estão nas ruas. Onde antes reinava o temor, agora floresce a resistência”, avalia. Essas lutas explicam a unidade nas marchas do 24M, embora Pistonesi destaque que as duas convocações manterão documentos distintos.

“Precisamos denunciar explicitamente os setores que, sem ser do governo, viabilizam suas políticas. Milei não tem governadores, é minoria no Congresso, mas impõe reformas regressivas. Essa cumplicidade não pode passar em branco”, argumenta.

O golpe de 24 de março de 1976 integrou um plano continental de extermínio contra movimentos operários, militâncias populares e a esquerda. Através da Operação Condor – coordenada pelos EUA -, as ditaduras da Argentina, Chile, Uruguai, Brasil, Paraguai e Bolívia compartilharam inteligência e executaram repressão transnacional: desaparecimentos, torturas e assassinatos sem fronteiras.

Pistonesi recorda que 70% dos desaparecidos argentinos eram trabalhadores, enquanto a ditadura instalava um modelo econômico que, em essência, perdura: “Em 1975, a pobreza era inferior a 5%; hoje beira os 40%. A dívida externa saltou de US8 bi para US 48 bi na ditadura. Esse é o legado que precisamos superar. É contra isso que lutamos.”

Edição: Rodrigo Durão Coelho

Foto: Luis Robayo – AFP

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