Para não desaparecer, comunidades rurais da Bahia criam mapa indicando áreas de grilagem e invasão das suas terras

Comunidades de fundo e fecho de pasto resistem ao avanço predatório do agronegócio em seus territórios

Por Carolina Bataier, Brasil de Fato

Moradores das comunidades rurais de fundo e fecho de pasto no oeste da Bahia calculam já ter perdido 97% das suas áreas para grileiros, fazendeiros e empresas do agronegócio.

“Hoje, a gente tem apenas 3% do que a gente tinha na década na década de 1970. E esses 3% são palco de conflito”, alerta o agricultor Eldo Moreira Barreto, morador da comunidade de Fecho de Clemente, no município de Correntina (BA).

Como estratégia para não desaparecer por completo, esses agricultores criaram um mapa com a localização das suas terras, dos rios e das ameaças que enfrentam no cotidiano. O documento, um registro da presença daqueles povos no território, é também uma ferramenta de manutenção da memória e de denúncia dos problemas sofridos por ali.

Versão simplificada do mapa criado pelas comunidades do oeste baiano – Brasil de Fato

“É na tentativa de a gente conhecer [as terras, comunidades e recursos naturais] e também para as gerações mais novas conhecerem. Para os jovens conhecerem e para a gente divulgar isso para fora”, explica Barreto. O mapa dos territórios de fundo e fecho de pasto indica pontos de grilagem, nascentes mortas e as cercas instaladas pelos agricultores há dezenas de anos.

“O mapa está sendo usado na instrumentalização dos processos de reconhecimento dos territórios”, explica Isabel Figueiredo, coordenadora do programa Cerrado do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), organização da sociedade civil com mais de 35 anos de atuação no fortalecimento de meios de vida sustentáveis, com protagonismo comunitário e valorização dos saberes e da sociobiodiversidade.

Figueiredo trabalhou junto com as comunidades na elaboração do mapa. Nas mãos dos representantes dessas comunidades, ele serve como um documento na luta pela regularização fundiária e proteção dessas áreas.

As ameaças aos territórios coletivos

Presentes no norte e oeste da Bahia, essas comunidades se caracterizam pelo uso compartilhado da terra, onde os rebanhos bovinos e caprinos caminham e pastam livremente pelo Cerrado.

Os fechos, como são chamadas as áreas de livre circulação dos rebanhos, ficam entre 10 e 80 quilômetros de distância das comunidades, segundo o relatório de automapeamento de territórios de fundo e fecho de pasto no oeste da Bahia, elaborado pela Associação Comunitária de Pequenos Criadores de Fecho de Pasto de Clemente (ACCFC) e pelo ISPN.

A maioria dos fundos e fechos de pasto conta com infraestrutura de apoio para a lida com o gado, como currais, cochos, cercas e ranchos para acomodar as pessoas que vão trabalhar na área.

“São comunidades de agricultores e camponeses que têm suas roças individuais e fazem a restauração do território coletivo. E é nesse território coletivo que está a disputa, nos 3% [que ainda restam de território de uso comum]. Os 97% já o agro consolidou”, lamenta Barreto.

Há comunidades centenárias, algumas tem mais de 300 anos de ocupação nessas áreas. No entanto, com a expansão do agronegócio pelo Cerrado, principalmente na área denominada Matopiba, entre os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, muitos territórios comunitários vêm sendo tomados, num processo de invasão que deixa um rastro de destruição.

Um relatório publicado recentemente pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, com apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Amigos da Terra detalha casos de violação de direitos territoriais naquela região. Segundo o documento, intitulado Especulação Financeira e Impactos Socioambientais do Agronegócio no Cerrado da Bahia, a expansão dos latifúndios resulta em expulsão de moradores cujas terras são apropriadas pelo agronegócio.

Nessa dinâmica, essas áreas são expostas ao desmatamento, à contaminação por agrotóxicos, a ameaças e ataques contra as comunidades, inclusive por meio de milícias armadas.

No município de Correntina, por exemplo, as plantações de soja dominaram 90 mil hectares de terra em dez anos. Em 2014, eram 115.191 hectares do grão. Em 2024, essa lavoura ocupava uma área de 205.163 hectares no município. No sentido contrário, as matas perdem espaços e, sem a vegetação para protegê-las, muitas nascentes acabam morrendo.

Nos territórios mapeados pelos moradores, foram identificadas 69 nascentes protegidas pelas famílias fecheiras. Essas águas abastecem os rios Correntina, Formoso e Arrojado, afluentes do rio Corrente, importante tributário do rio São Francisco.

“No entanto, nos limites dos territórios de fundos e fechos de pasto foram identificados 19 pontos de conflitos territoriais, todos relacionados à grilagem de terras e ao agronegócio”, alerta o relatório do automapeamento das comunidades.

O mapa indica também as nascentes mortas e alerta para o problema da escassez de água na região. A situação é tão grave – e já antiga – que, em 2017, milhares de pessoas organizaram uma manifestação para denunciar o uso abusivo da água pelas atividades do agronegócio, em episódio que ficou conhecido como “Revolta de Correntina”. De lá para cá, o problema se acentua e os conflitos persistem, deixando os fecheiros cada vez mais vulneráveis.

“O que está em jogo hoje, o que está em disputa são os territórios, a terra de uso, a terra de vida, a terra ancestral dessas comunidades”, alerta Barreto.

Em novembro, ele esteve na 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), em Belém (PA), como o único representante dessas comunidades. Com o mapa em mãos, o agricultor acompanhou um debate na Zona Verde, espaço de participação popular do evento, sobre “A Reforma Agrária e as soluções populares frente à crise climática”.

Depois, procurou pelo presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), César Aldrighi, que participava do debate, para entregar o documento. “A responsabilidade de regularizar os territórios e de estabelecer um um critério sobre isso é do Estado, do estado brasileiro e do estado da Bahia, não das comunidades. E o Estado está com muita morosidade nisso”, afirma Barreto.

Para ele, estar ali foi importante para ressaltar o modo de vida dessas comunidades como elemento essencial no debate sobre a crise climática. “Essas comunidades tradicionais, fecheiros, fundo de passo e outras, são extremamente importantes para discutir a questão do clima e para a continuidade da vida humana na Terra. É um modo de vida que possibilita conviver com a natureza em pé e produzir comida, produzir sustentabilidade e cultura”, diz.

Ao Brasil de Fato, o Incra informou que irá utilizar o mapa no processo de cadastramento das famílias. Sobre a situação das comunidades do oeste baiano, o órgão enviou a seguinte nota: “A Superintendência do Incra na Bahia está recadastrando as famílias de comunidades tradicionais, para atualização e posterior concessão de crédito. Somente após a finalização deste trabalho teremos os quantitativos de comunidades reconhecidas e número de famílias”. Ainda de acordo com o instituto, as famílias serão cadastradas no Programa Nacional de Reforma Agrária.

Como foi feito o automapeamento das comunidades

O mapeamento foi realizado em três etapas e contou com o trabalho de 32 representantes de 16 territórios de fundo e fecho de pasto.

A primeira fase consistiu em reuniões para identificar e delimitar a área a ser mapeada junto às lideranças das comunidades. Neste momento, também foram definidos os elementos que precisavam estar no mapa para que os participantes pudessem se localizar e usar como referência, como malhas urbanas, rios, comunidades, estradas, entre outros. Com estas informações, foi possível compreender a escala para elaboração do primeiro mapa e quais elementos estratégicos deveriam constar nele.

Depois disso, e com grandes mapas impressos, os fecheiros usaram seus conhecimentos sobre o território para ilustrar as áreas de invasões e conflitos. Por fim, o mapa foi projetado numa parede, para que os agricultores validassem o trabalho.

O relatório ressalta que os dados obtidos pelo mapeamento participativo podem representar apenas uma parcela do que existe nestes territórios de vida, pois não foi possível a participação de representantes de cada fundo e fecho de pasto. “Muitas outras áreas de uso dos fecheiros, destes municípios e de municípios vizinhos, não puderam ser identificadas nesta ocasião”, informa o documento.

Imagem: Criação de gado para subsistência é atividade comum entre comunidades de fecho de pasto| Crédito:

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Greice Bezerra.

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