Nunca pensei que fosse começar um texto criticando a ditadura com um aviso. Mas como o nível do debate público ultrapassou o pré-sal de tão baixo e muita gente interpreta um texto antes mesmo de lê-lo, achei por bem informar que repudiar o último período sombrio da nossa história, não significa – de forma dissimulada – criticar todos os que defendem a tese do impeachment ou imputar a eles qualquer gosto pela ditadura. Até porque acredito que a maior parte dos que apoiam essa tese, da mesma forma que a maior parte dos que a repudiam, preferem a democracia e suas instituições. E têm ojeriza à galera dodói da cabeça que sente orgasmos múltiplos ao imaginar o barulho de coturnos militares marchando contra a liberdade e que se infiltra em manifestações para tentar ressignifica-las.
Dito isso, a reflexão.
Pouco me importa o que pensam alguns oficiais da reserva que tomam seu uísque nos Clubes Militares enquanto, saudosos, lançam confetes no dia Dia da Revolução (sic) e ficam bêbados de alegria no aniversário do AI-5. Demonstrações de afeto a um período autoritário são peça de museu. Então que fiquem, democraticamente, com quem faz parte do passado. E se algum militar de alta patente da ativa em cargo de comando defender qualquer fissura nas instituições democráticas, que seja automaticamente removido de suas funções.
Mas os saudosistas da ditadura precisam entender – ainda em vida – que a História não vai ficar com sua versão. Muito menos vai repetir a ignomínia que eles causaram. E que o sistema de opressões que ajudaram a estruturar, mais cedo ou mais tarde, vai embora com eles. Não por vingança, mas por Justiça.
O golpe e a ditadura civil-militar de 1964 ainda são temas que não fazem parte de nosso cotidiano em comparação com outros países que viveram realidades semelhantes e que almejam ser boas democracias. Por aqui, lidamos com o passado como se ele tivesse automaticamente feito as pazes com o presente. Isso fica claro quando alguém coloca as forças armadas em uma equação política sem se atentar que os militares e os policiais militares são treinados para a guerra, não para o diálogo e a negociação.
Como já disse aqui em outras ocasiões, em nome de uma suposta estabilidade institucional, o passado não resolvido permanece nos assombrando. Seja através de um olhar perdido da mãe de um amigo que, da janela, permanece a esperar o marido que jaz no fundo do mar, lançado de helicóptero. Seja adotando os métodos desenvolvidos por eles para garantir a ordem e o progresso.
E para quem tem problemas com interpretação de texto, não estou falando de mortes por legítima defesa ou na impossibilidade de outra saída. Treinamos nossos policiais para entrar em uma guerra contra seu próprio povo e não para proteger o cidadão. Uma guerra em que eles vão entrar para matar e morrer.
Pois o impacto de não resolvermos o nosso passado se faz sentir no dia-a-dia dos distritos policiais, nas salas de interrogatórios, nas periferias das grandes cidades, em manifestações, nos grotões da zona rural, com o Estado aterrorizando ou reprimindo parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica). O genocídio de jovens pobres e negros, em curso na periferia das grandes cidades, é consequência também de um país que não resolveu o problema, apenas passou o bastão adiante.
Neste momento em que o país parece querer construir uma narrativa de que não aceita manter a impunidade como um elementos de identidade nacional pelo qual é reconhecido mundialmente, é fundamental que estenda também a indignação para outras facetas da vida cotidiana. Como a indignação contra outros atores públicos que, desvirtuando-se de sua função, não apenas roubam o país, mas matam e esfolam seus filhos e filhas em nome da segurança e do bem-estar dos “homens e mulheres de bem”. Caso contrário, essa narrativa será tão hipócrita quanto os discursos da Gloriosa de que o cerceamento da liberdade era para, vejam só, garantir a liberdade.
Para isso, ao contrário do que deseja muita gente, as histórias de assassinatos e de corrupção sob responsabilidade da ditadura, que foram muitas e tantas, devem continuar sendo contadas nas escolas até entrarem nos ossos e vísceras de nossas crianças e adolescentes.
A fim de que nunca, mas nunca mesmo, esqueçam que a liberdade do qual desfrutam – ainda que precária e ainda parcial – não foi de mão beijada. Mas custou o sangue e a saudade de muita gente.