Tudo lá no morro é diferente
Daquela gente não se pode duvidar
Começando pelo samba quente
Que até um inocente sabe o que é sambar
Outra parte muito importante
Que é bem interessante
É a linguagem de lá…
Padeirinho da Mangueira – A linguagem do morro
Gitanjali Patel* – RioOnWatch
Em um país que é dramaticamente dividido por classe, a expressão cultural é uma das maneiras que diferentes grupos sociais se unem para mudanças. Samba, funk, hip-hop e literatura usam e manipulam a linguagem da favela para espalhar conscientização de problemas locais, conhecimento e cultura tanto dentro da comunidade quanto para a população em geral. A parte final dessa série mostra como o engajamento e popularização dessas formas artísticas podem quebrar barreiras sociais por meio da promoção da linguagem da favela como cultura.
Samba
Apesar da fama de música nacional do Brasil, o samba tem suas raízes na perseguição. Como uma das expressões culturais originais da classe trabalhadora, ele formou parte do movimento de resistência negra do início do século 20, liderado por músicos como João da Baiana, Donga e Padeirinho da Mangueira, que usavam o samba para contar histórias sobre sua realidade rotineira. Em um depoimento gravado no arquivo do Museu de Imagem e Som (MIS) no Rio, João da Baiana recontou um tempo em que o “pandeiro era proibido. O samba era proibido. E eu tocava pandeiro na [Festa da] Penha, na época da [Festa da] Penha. Me tomavam o pandeiro e me prendiam. Eu tenho fotografia em casa, nas revistas, eu dentro do xadrez com o pandeiro”.
A repressão do samba durante a República Velha veio de um desejo de “europeizar” o Rio como uma capital. A recente abolição da escravidão significava que a classe trabalhadora era fortemente estigmatizada, suas práticas culturais vistas como retrógradas, e seu comportamento como marcas que significavam que eram de uma classe de pessoas perigosas e criminosas. Isso significava que músicos do samba, como os atuais artistas de hip-hop e do funk, eram associados com criminalidade em um nível que até suas roupas se tornaram motivo para prisão. Em outro arquivo do MIS, João da Baiana fala de como os policiais costumavam fingir que eram sambistas, começavam a tocar para então prender todas as pessoas que ali estivessem:
“Nós não podíamos usar calça bombacha, também… Dr. Virgolino de Alencar, em 1904, tocava violão e cantava modinha para prender a gente. Usava cabeleira, era delegado… Então ele tocava violão e fazia serenata na rua, seresta, para nos reunirmos, para depois prender a gente.”
Porém, com o advento do rádio na década de 1920 e o movimento nacionalista de Vargas, o samba transitou do periférico para a esfera pública. Os músicos do samba começaram a vender suas composições, conseguindo acordos de gravação e participando de competições nacionais, que colocava firmemente o samba na arena nacional. Como o jornalista Francisco Guimarães (também conhecido como Vagalume) disse em seu livro “Na Roda do Samba” (1933), inicialmente o samba era “repudiado, debochado, ridicularizado. Somente a gente da chamada roda do samba, o tratava com carinho e amor! Hoje, ninguém quer saber de fazer outra coisa”. Um sentimento que refletiu no samba de Tom Jobim e Vinícius de Morais, O morro não tem vez:
“O morro não tem vez
E o que ele fez já foi demais
Mas olhem bem vocês
Quando derem vez ao morro
Toda a cidade vai cantar.”
A linguagem distinta do samba se tornou o modo que os sambistas usavam para educar as pessoas de classes média e alta que estavam escutando ou cantando o samba, mas não eram familiarizados com a cultura da favela. A composição do Padeirinho A linguagem do morro, citada na epígrafe, que ainda é cantada por artistas como Beth Carvalho, é um dos muitos exemplos disso:
“Baile lá no morro é fandango
Nome de carro é carango
Discussão é bafafá.”
Sua música se tornou uma espécie de tratado de gírias que espalhava as últimas frases e vocabulários para fora das periferias até a esfera pública e, ao mesmo tempo, invertia a hierarquia social, a medida em que os analfabetos se tornavam os educadores. Padeirinho estava traduzindo a cultura e o ponto de vista das comunidades das favelas para a elite em um ato de resistência que penetrava o gênero na época. Algumas décadas depois, Bezerra da Silva também levou a linguagem como um dos assuntos em suas músicas, como em A gíria é a cultura do povo, onde ele diz que gíria, tanto dentro quanto fora da favela, representa a cultura dos que as falam:
“Toda hora tem gíria no asfalto e no morro
Porque ela é a cultura do povo.”
Suas músicas demonstravam a riqueza e a variada linguagem da favela e, além disso, sua popularidade fora das comunidades significaram que a linguagem também ganhou reconhecimento.
Funk
De acordo com o MC Leonardo, o funk é a “pura expressão popular”. Ele ajuda os moradores a se manterem atualizados com o que está acontecendo, o que as pessoas estão dizendo em sua comunidade, e permitem que as novas gírias sejam espalhadas, como descrito na Parte 1. A circulação das notícias, opiniões e comentários por meio do funk dentro da comunidade é caracterizada por sua liberdade de falar sobre o que quiser (desde resistência, a sexo, até a dança) e também pelo surgimento dos MCs.
O funk é uma ferramenta de comunicação poderosa não só no seu uso de linguagem familiar que traz os moradores mais para perto do que está sendo discutido, mas também por conta de sua repetição no ritmo, que gruda na cabeça e populariza as mensagens. Essa característica do ritmo facilita a espalhar a mensagem também para fora da comunidade, como no funk do MC Sargento, Rap da Fazenda dos Mineiros, onde ele desafia as percepções sobre as favelas e do funk, falando da arte do funk, das dificuldades que as comunidades passam e da cultura rica das favelas do Rio.
MC Magalhães é um exemplo de como qualquer um da comunidade pode se tornar funkeiro: ele era um vendedor de rua que se tornou MC por fazer raps sobre a realidade de todos os dias nas ruas. Sua música Rap do trabalhador é uma crítica social que usa do humor para falar das perseguições dos vendedores de rua durante o governo César Maia no Rio. Ele descreveu como “tomaram minha caixa de bombom / O César Maia… Quebrou a firma / Todo mundo duro…”, Se referindo a repressão que os vendedores de rua passaram depois da introdução da Guarda Municipal na época. Ele joga com palavras sem sentido, como “tchurunarublaize” e “marauklanfer”, que zomba dos jargões usados nas decisões legais como na que deu origem à Guarda Municipal, ecoando Bezerra da Silva no documentário Onde a coruja dorme:
“Quando os escravos quilombolas queriam traçar um plano de fuga, usavam gírias para os senhores não entenderem. É justamente, hoje, o que os intelectuais fazem com a gente. Eles vão para a escola, aprendem o revertere ad locum tuum, burugundum, data venia. E aí chegam, falam com você o dia inteiro, chamam você do que querem e você não entende nada. Então, o que a gente faz? A gente também pode conversar com o doutor do mesmo jeito, e ele ficar o dia inteiro sentado e não entender nada também. Aí é zero a zero.”
Como o samba e outras formas de expressão cultural das favelas, o ativismo é um tema recorrente no funk. Por conta da atual crise econômica e política que paira sobre o Brasil na contagem regressiva para as Olimpíadas, os funkeiros Mano Teko e MC Laska lançaram uma música chamada Contagem Regressiva, que critica os efeitos que as Olimpíadas têm tido nas comunidades do Rio:
“Olimpíadas da negação, é pra gringo não pra nós povão […]”
“O genocídio salta alto, vem bala, vem remoção”
MC Carol também se manifesta, exemplificado quando abre sua música Não foi Cabral com o hino nacional, antes de contestar de forma agressiva o descobrimento do Brasil e criticar o primeiro genocídio da população indígena.
“Quem descobriu o Brasil
Não foi Cabral
Pedro Álvares Cabral
Chegou 22 de abril
Depois colonizou
Chamando de Pau Brasil
Ninguém trouxe família
Muito menos filho
Porque já sabia
Que ia matar vários índios.”
O movimento de funk feminista apresenta outra forma de resistência. Artistas como Tati Quebra Barracos, Deize Tigrona e Valesca Popozuda usam o funk para falar sobre a liberdade sexual das mulheres e, ao fazer isso, confrontam e subvertem o próprio funk que por muitas vezes apresenta as mulheres como objetos de desejo sexual. Elas cantam sobre ter orgasmo, reclamam de homens inúteis, dão detalhes explícitos sobre o que gostam de fazer no quarto e como elas seduzem os homens usando o mesmo tipo de letras obscenas como nos funks sobre mulheres.
Grupos como o PaguFunk da Baixada Fluminense levam o funk feminista em uma direção diferente, focando em problemas como violência contra as mulheres e chauvinismo masculino. Em uma entrevista, MC Lidi do PaguFunk explicou como a batida do funk faz as pessoas se situarem na realidade de garotas que vivem em comunidades pobres com um discurso feminista mais amplo: “É a forma de falar na nossa linguagem, a linguagem da periferia, com as vizinhas sobre o direito das mulheres. O refrão chiclete ajuda a espalhar as mensagens”.
O funk narra de volta o que as pessoas estão dizendo nas comunidades de uma maneira que faz as pessoas repensarem ou entenderem as questões de uma maneira diferente.
Hip-hop e Rap
Bem parecido com movimentos similares nas periferias de outras cidades ao redor do mundo, muito rap e hip-hop das favelas têm como objetivo comunicar a realidade mais pesada da vida da favela, trazendo problemas como violência, desigualdade, pobreza e discriminação por meio de uma linguagem que é rica em metáforas e figuras de linguagem.
Antiéticos é um trio de rap que teve seu nome escolhido para apresentar “um desacordo com o padrão estabelecido”, “não é sobre a ausência da ética”. Suas músicas procuram se endereçar ao racismo e a violência à comunidade negra e promover uma coesão entre as favelas. O trio procura atingir esse objetivo não somente em suas letras, mas simbolicamente, já que todos os três membros são de favelas diferentes. Em uma entrevista para o RioOnWatch, um dos membros explicou:
“Ser de diferentes favelas é simbólico. Aqui no Rio, existe uma guerra entre facções. Em alguns lugares, você não pode ir em outras favelas. Tem muita separação. Eu penso que nós sermos de diferentes comunidades quebra essa ilusão simbolicamente”.
Eleveulove é um exemplo dessas músicas, com letras como “isso é o que festejo, nossa pele marrom”, e “sou fruto santo nobre onde reina os moleques bons / favela África, África favela e som!”
Artistas como o MV Bill focam em questões como meninos pequenos trabalhando no tráfico de drogas em Soldado do Morro, que descreve as condições adversas e o sistema corrupto que forçam crianças a ir para o tráfico.
O uso da linguagem da favela é um ponto chave para criar uma identidade da comunidade pela música. Ao usar a linguagem popular para passar informação, os moradores da comunidade entram na arena pública comunicando problemas que são importantes para eles em seus próprios termos, desafiando a hierarquia social e linguística que geralmente estigmatiza essa forma de expressão.
Literatura
Como o interesse pela literatura está crescendo nas comunidades com projetos como o Ler é 10 – Leia Favela e festivais literários como a FLUPP, a linguagem da favela está gradualmente se expondo em linguagem escrita. Como é uma linguagem principalmente falada, ela é geralmente usada por escritores das comunidades para efeito literário ou nos diálogos, criando contexto para as cenas e personagens em retratos criativos da cultura da favela.
Otávio Junior, autor e fundador do Ler é 10 – Leia Favela, escreve livros infantis que focam em dois temas principais: a leitura e a periferia. Seus romances como O Livreiro do Alemão têm livros como seu assunto principal e se passam em favelas. Em uma entrevista ele explicou:
“Eu uso tanto a linguagem da periferia quanto uma linguagem poética na minha narrativa. Então uso muito a linguagem das gírias, eu gosto de interagir também com o ambiente comunitário, com as brincadeiras tradicionais nas comunidades, como bola de gude, como a pipa, como a pião. São brinquedos relacionados com as favelas da Zona Norte do Rio de Janeiro. Então eu interajo com estas questões mais peculiares daquela região.”
Ao usar uma linguagem e estrutura familiar, Otávio dá algo para as crianças das favela se sentirem conectadas em seus livros e permite que elas interajam com os livros e a leitura de uma maneira que não as façam se sentir alheias à história ou que seja muito difícil. Otávio explicou:
“Os livros que eu faço são para crianças que vivem nas comunidades e também para as crianças que não vivem. Assim as crianças que não vivem têm a oportunidade de conhecer um pouquinho da cultura da periferia. Assim elas podem interagir a partir das histórias com aquela realidade e aquela cultura.”
A justaposição dos dois dialetos age como uma maneira de legitimar a linguagem mostrando cada dialeto como representante de uma cultura diferente.
As formas da arte discutidas demonstram o uso de recursos locais para resistir à exclusão e redefinir a relação entre as favelas e a cidade. Porém, quando o assunto é a produção cultural da favela, há uma resposta contraditória de pessoas fora da comunidade, onde escutar funk, ou um reconhecimento das raízes do samba, nem sempre cria um entendimento que se traduz em atitudes positivas que combatam o estigma. É pouco provável que essa linguagem seja totalmente aceita como uma forma de falar legítima, uma sina que é compartilhada pelas sociedades periféricas ao redor do mundo. Mas elas são recursos para os membros da comunidade que oferecem um modelo de identificação, uma saída criativa e forma de resistência.
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*Graduada em Espanhol e Português pela Universidade de Oxford e atualmente trabalha como pesquisadora especializada em linguagem, cultura e sociedade brasileira. Ao longo dos últimos anos vêm pesquisando estratégias anti-corrupção na America Latina.