O governo caiu por seus méritos: compreender o golpe e organizar a luta

 Por Cesar Mangolin

Uso este texto para poder melhor expressar uma posição inicial que me parece dever ser a dos que pretendem dar prosseguimento ao debate e à organização para a luta nessa nova conjuntura. É um texto sucinto, escrito para dialogar com militantes da esquerda, não com “coxinhas” histéricos e nem com o esquerdismo infantil, a irrelevante esquerdinha do “nem, nem”, do “é tudo igual” e do “voto nulo”. Penso que os militantes progressistas, democratas e de esquerda, enfim, todos que compreendem a derrubada da presidente Dilma como um golpe e um atentado perigoso à nossa frágil democracia devem pautar suas análises e a construção da tática para o momento a partir de uma constatação importante e fundamental que adianto aqui: o governo foi derrubado por seus méritos.

É importante pensar e expressar essa obviedade porque tivemos três grandes posicionamentos diante do evento. 1) o governo caiu porque é corrupto; 2) o governo caiu porque fez alianças com a direita; 3)  Michel Temer foi o vice-presidente eleito na chapa do PT, portanto, a “culpa” é do PT mesmo.

A primeira posição é frouxa, como bem sabemos, e não merece que nos estendamos nela. Não porque corrupção não seja um problema! É um grave problema, sem dúvida, mas foi apenas o cavalo de batalha e jamais a questão central em todo o processo. É necessário para qualquer um ser muito estúpido ou muito safado para continuar a afirmar algo assim, transcorrido o processo. Não há, de maneira alguma, mais espaço para esse tipo de argumentação.

As posições dois e três estão articuladas e são, ambas, equivocadas. A conjuntura de crise das políticas neoliberais do final da década de 1990 e começo dos 2000 permitiu uma série de governos progressistas e de esquerda e centro-esquerda por toda a América Latina e também na Europa. Mas essa possibilidade aberta pela crise generalizada deveria ser contingenciada pelas conjunturas internas de cada país, ou seja,  as possibilidades dessas experiências serem mais ou menos avançadas dependeu, como sempre, do nível de acirramento das lutas de classe dentro de cada país. Isso explica a capacidade de tomar medidas mais ou menos progressistas e até mesmo o caminho tomado para a chegada ao governo e o espaço real de manobra e movimento: as experiências mais amparadas em movimentos populares mobilizados e com histórico recente de grandes lutas nacionais pode explicar, por exemplo, a maior radicalidade das experiências da Bolívia, do Equador e da Venezuela. Assim como um menor acirramento interno das lutas de classe podem explicar a necessidade de dar largo peso ao processo institucional e buscar alianças para além do campo popular e de esquerda para viabilizar vitórias eleitorais. Isso não ocorreu somente no Brasil, mas também na Argentina, no Chile, no Paraguai, no Uruguai, na Nicarágua etc..Após um breve ciclo de crescimento econômico, mas principalmente, de desenvolvimento social, todas essas experiências (as mais e as menos avançadas) passaram a sofrer revezes com a persistência da crise internacional do sistema capitalista. Nuns casos, eleitorais (Chile – que retornou depois-, Argentina, vários países da Europa, por exemplo…), noutros, diante da impossibilidade ou incapacidade de vitória eleitoral dos setores reacionários, o caminho foi o golpe, como ocorreu no Paraguai, como é tentado na Venezuela e, agora, no Brasil.

É óbvio que todos lembram da “Carta aos Brasileiros” de Lula e do PT na campanha de 2002. Lembram também que foi uma ampla e heterogênea frente de partidos e movimentos populares a responsável por sua eleição, cuja vice-presidência era ocupada por um empresário do extinto Partido Liberal… A composição do governo refletiu essa frente, sem dúvida. Mas provavelmente não haveria a vitória eleitoral não fosse essa montagem, assim como não ocorreria nas eleições sucessivas. Dizer agora que a sequência de governos (os dois de Lula, o de Dilma) poderia ter criado bases sociais para saídas mais avançadas denota apenas uma visão paternalista e ilusória com relação ao Estado burguês (a mesma que foi capaz de cooptar movimentos e lideranças populares) e a incapacidade que partidos e movimentos mais avançados tiveram de inserção e organização, isso sim, fundamental para que essas saídas ocorressem. É da capacidade de luta, de mobilização e de organização dos trabalhadores que depende qualquer saída mais avançada e até revolucionária, não da máquina do Estado…

Mas essas ilusões com o Estado burguês não significam, de outro lado, que governos com o perfil do ciclo petista não eram fundamentais! Os trabalhadores conquistaram durante esses governos condições e “direitos” que secularmente lhes foram negados. Ainda que imbricados nas contradições e necessidades de ceder ao grande capital e, ao mesmo tempo, realizar avanços sociais, ninguém pode negar que as condições de vida dos trabalhadores por todo o país foram elevadas positivamente e que jamais se fez tanto pela redução ou eliminação da miséria e das desigualdades gritantes.

Michel Temer, político tradicional do “centro” pantanoso que é o PMDB, que tende para qualquer lado onde possa ocupar mais espaço, era parte de um governo com esse perfil: eleito por uma frente heterogênea de partidos, mas com compromissos sociais claros, com compromissos com determinadas frações do capital também claros. Vejam: determinadas frações do capital que eram atendidas prioritariamente nos seus interesses porque faziam parte do projeto desenvolvimentista que estava na base desse governo e era seu programa. As demais frações do grande capital participavam, sem dúvida, secundariamente. É necessário compreender as contradições internas da própria burguesia, porque é uma parte dela e não seu conjunto quem está por detrás do golpe. Não esqueçam que uma parcela da burguesia está, inclusive, na cadeia: as grandes empresas responsáveis pela construção pesada, pela construção civil, pela indústria naval, de segurança territorial etc.. Aliás, exatamente aquela fração privilegiada pelo programa desse ciclo de governos. Enfim, isso tudo pra dizer que Michel Temer não foi eleito para fazer parte de um golpe de Estado: foi eleito, dentro das regras democráticas e da ordem constitucional para ser o vice-presidente de um governo que tinha programa já aplicado e em andamento. Não é possível ver gente de esquerda fazendo esse discurso agora de que a “culpa” é do PT mesmo por isso… O golpe ocorreria, com ele, sem ele… Personalizar o golpe, assim como o próprio PT estava fazendo, dizendo que é uma armação de Temer e uma vingança de Eduardo Cunha é reduzir o problema a uma intriga palaciana e perder sua dimensão política e de classe.

Eu defendi desde as manifestações de junho de 2013 (que foram tomadas pela pequena burguesia por todo o país) que havia uma articulação diferente da direita em andamento, que havia a ameaça de golpe. Com o início do processo eleitoral em 2014, ficou bastante claro que não teríamos ali uma eleição qualquer: tínhamos dois projetos de dentro da ordem burguesa, sem dúvida, mas dois projetos em disputa, sendo que o que vinha da direita ganhava força, o que ficou expresso na campanha (mais violenta que de costume) e na votação final. Era necessário a partir dali defender esse governo, não por sermos “governistas” acríticos, mas porque o que viria em seu lugar significaria um forte retrocesso.  Enfim, não é necessário e estenderia demais esse texto mencionar todos os grandes lances do processo, mas o fato é que tivemos golpe que precisa ser compreendido para além dessas três posições superficiais mencionadas acima.

E repito, para poder concluir, que esse governo foi derrubado por seus méritos, não por outro motivo. É necessário ir para além das facilidades da análise para compreender sua real dimensão e sentido. É ser rasteiro e leviano afirmar que era um serviçal governo de direita que perdeu a importância e foi descartado (como tem feito a “esquerdinha” burra). Foi um golpe dado contra a nossa frágil democracia, que favorece a organização e ação popular, um golpe dado contra as conquistas sociais, um golpe dado contra os avanços da luta contra o racismo, um golpe dado contra os avanços do movimento feminista, na luta contra a homofobia. Fundamentalmente, um golpe violento contra os cantões do Brasil, um golpe que vai interromper mudanças fundamentais que trouxeram condições mínimas de dignidade para uma parcela considerável da população brasileira. Um golpe que pretende recriar no Brasil as condições para a acentuação da exploração dos trabalhadores e das nossas riquezas  pelo grande capital estrangeiro.

Claro que ocorreram vacilos, erros etc.. Óbvio que um pouco do conjunto daqueles três argumentos precisa ser tomado para entender essa derrota histórica. Mas atribuir a “culpa” do golpe a quem sofreu o golpe é o mesmo que atribuir à vítima de violência a responsabilidade pela violência sofrida, como fazemos com as mulheres vítimas de violência sexual, por exemplo, quando afirmamos que foram atacadas porque estavam vestidas de tal maneira, porque estavam na rua tarde da noite e coisas do tipo.

Tampouco me parece que nosso momento é o de encontrar culpados. Ao contrário, precisamos 1) compreender as razões desse golpe, seu caráter de classe e seu programa (isso está delineado acima…); 2)  saber como estão (concreta e objetivamente) as forças que se movimentam contra o golpe; 3) articular por todos os canais a reação organizada e a luta de resistência e ofensiva para derrotar o golpe e retornarmos numa posição qualitativamente mais avançada.

Penso que esse pontos (expostos de maneira apenas geral aqui), podem permitir um bom debate tendo em vista a ação.

Enviado para Combate Racismo Ambiental por Lara Schneider.

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