Há um paralelo entre o mais letal atentado a tiros da história americana, que teve como alvo uma boate gay e deixou cerca de 50 mortos (entre eles o atirador), e os casos cotidianos de discriminação contra a população LGBT no Brasil: tudo faz parte do avanço de uma onda internacional conservadora movida por motivos religiosos, afirma o historiador e brasilianista James N. Green, professor de História do Brasil na Brown University, nos Estados Unidos.
A diferença é que, se nos Estados Unidos essa onda se alia também ao extremismo islâmico, no Brasil, Green associa o avanço homofóbico ao fortalecimento de grupos religiosos mais radicais, especialmente evangélicos. “É uma homofobia internacional, baseada nas religiões, com conceitos passados, controladores, que criam dentro das pessoas ansiedades, medos e ódios que levam a esse tipo de violência”, analisa.
No Rio para a conferência “Ditadura e Homossexualidades”, realizada no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ (IFCS) na última segunda-feira, Green estuda há alguns anos o tema da homossexualidade no período do regime militar brasileiro.
É cofundador do primeiro grupo de afirmação da identidade homossexual no Brasil, o “Somos”, e lançará em junho do ano que vem a biografia de Herbert Daniel, ex-guerrilheiro que sofreu o preconceito da própria esquerda e se transformou num dos pioneiros não só do ativismo gay no Brasil, mas também no combate à discriminação contra portadores do HIV.
Chamava-se Herbert Eustáquio de Carvalho, mas foi como Herbert Daniel, juntando o nome de batismo e o codinome da guerrilha, que ele se tornou mais conhecido. Revolucionário e gay: a vida extraordinária de Herbert Daniel é o título da biografia do ativista, que morreu de Aids em 1992.
Discípulo de Thomas Skidmore, morto no último sábado, Green assumiu desde 1999, com a aposentadoria do mestre, a cátedra de História do Brasil na Brown University. Ele destaca o legado de Skidmore no estudo de temas brasileiros contemporâneos, diz que muitos estereótipos sobre o país persistem lá fora e que ainda hoje segue aprendendo sobre a terra que estuda há 43 anos.
Leia os principais trechos da entrevista
BBC Brasil –É possível apontar paralelos entre o atentado nos EUA e a situação do Brasil?
James N.Green – Sim, porque é uma onda conservadora internacional. São muitos fatores que explicam, e um deles é uma reação forte, desde o 11 de setembro, senão antes, a ideias culturais e liberdades sexuais que cada vez mais ficam visíveis. São ideologias reacionárias, de muçulmanos e cristãos, contra essas liberdades. Aqui no Brasil não são os muçulmanos, mas evangélicos, contra os gays.
É uma onda conservadora religiosa, que questiona avanços mundiais sobre liberdades, ameaçados nesse momento. A ideologia xiita contra ideias e comportamentos diferenciados é a mesma ideologia que proíbe ideias não tradicionais nas escolas, como essa campanha “Escola sem Partido”, que é muito reacionária.
(Eduardo) Cunha representa essa onda conservadora e possivelmente não vai ser impedido dentro do Congresso. É o exemplo de consolidação de uma força conservadora, religiosa, e não de uma religião específica – porque aqui não são os muçulmanos, e no atentado em Orlando vê-se a onda conservadora que passa pelo mundo islâmico.
BBC Brasil –Como combater essa onda?
Green –Com intransigência na defesa dos direitos já conquistados. Movimentos pela laicidade do Estado têm que ficar mais eficientes e não recuar. Essas ideias de maior liberdade são novas, modernas, vêm do Iluminismo e têm que ser defendidas.
(Donald) Trump, Cunha, (Michel) Temer, tudo é parte dessa onda. Temer faz parte dessa onda, a aliança dele é com essa onda conservadora. O fato de eles estarem tentando manter Cunha no Congresso é um exemplo. Sua base é o setor superconservador da sociedade brasileira.
BBC Brasil –Nos Estados Unidos, especificamente, como analisa o impacto do atentado sobre o debate pela redução do número de armas de fogo?
Green –É impressionante como, com esse número de atentados, violências, mortos, ainda se consegue dizer que não tem nada a ver com o acesso às armas nos Estados Unidos. Claramente tem a ver, é uma cultura violenta, em que qualquer pessoa pode andar com armas. A direita americana tem consolidado a ideia de que qualquer tentativa de controlar armas é um ataque contra eles como pessoas. É uma noção individualista.
Trump está aproveitando isso de um lado e, de outro, a xenofobia contra qualquer muçulmano. Ele vai usar isso na campanha eleitoral. Vai coincidir com o racismo embutido na sociedade americana e reforçar a ideologia contra o estrangeiro, contra o outro. Vai justificar suas declarações horríveis sobre a necessidade de controlar a entrada de qualquer muçulmano no país.
É uma violação básica da Constituição americana, que é contra a discriminação por religião. Não dá para dizer: podem entrar cristãos, mas não católicos, podem protestantes e judeus, mas não muçulmanos. Infelizmente, a ignorância, a falta de conhecimento, o medo, a histeria, vêm criando um clima odiento.
BBC Brasil –O senhor escreveu vários livros sobre o tema da homossexualidade durante a ditadura. Como era ser homossexual naquele período?
Green –Esse período é complexo e cheio de contradições. A homofobia existia antes de 1964, preconceito contra homossexual, lésbica, isso existia na sociedade brasileira há muito tempo. Era uma ideologia promovida pela Igreja Católica e pelo discurso médico legal que considerava o homossexual uma pessoa defeituosa. Infelizmente existia um discurso homofóbico dentro das esquerdas que estavam na oposição à ditadura.
A partir de 1968, 1969, nos Estados Unidos e na Europa, surgem movimentos de gays e lésbicas reivindicando participação efetiva na sociedade e contra a discriminação. Mas não pôde surgir esse movimento no Brasil, onde todas as condições estavam dadas, porque justamente neste momento surgem o AI-5 (Ato Institucional nº 5, que marcou o endurecimento dentro do próprio regime ditatorial) e a repressão à oposição.
Quando se criaram as condições de sociabilidade homossexual e de mudança nesse tipo de cultura, para reivindicar transformações, não é permitido, pela repressão, pelo AI-5, pela censura, pela tortura, pelo medo, pela impossibilidade de organizar grupos.
Só quando a abertura já estava em curso as pessoas puderam pensar nessa possibilidade de organização. Aí fundam a primeira revista que luta pelos direitos dos gays, Lampião, publicada no Rio de Janeiro, e paralelamente o primeiro grupo de afirmação homossexual, o Somos, do qual fui um dos cofundadores.
BBC Brasil –A ditadura então atrasou a luta pelos direitos homossexuais no Brasil.
Green –Atrasou pelo menos dez anos. Se não fosse o AI-5, o Brasil teria sido um dos países pioneiros nas conquistas. Embutido no golpe de 64, nos movimentos que apoiaram o golpe, estava uma ideologia muito conservadora, muito controladora. A direita, entre 64 e 69, argumentava que a esquerda promovia corrupção da sociedade, sexo, drogas e homossexualidade. E é o contrário da realidade.
BBC Brasil –A esquerda também era homofóbica?
Green –Infelizmente, a esquerda nesse momento era homofóbica, se você era homossexual tinha que reprimir sua sexualidade. O melhor exemplo era Herbert Daniel, estou fazendo a biografia dele. Ele descobriu sua homossexualidade, era estudante de medicina em Belo Horizonte e entrou numa organização clandestina, a mesma da qual Dilma também fazia parte.
Sentia que não tinha espaço para a homossexualidade na esquerda naquele momento, e abafa a homossexualidade para ser membro da organização.
São coisas muito contraditórias e quero que as pessoas comecem a ter uma leitura mais sofisticada. Outro exemplo é a expulsão de homossexuais do Itamaraty no governo Médici. Vários são expulsos só por serem homossexuais, não por nenhuma outra coisa. Naquele momento não havia a menor possibilidade de apelar, fazer campanha, estava expulso e pronto.
BBC Brasil –Como Herbert Daniel nos ajuda a compreender aquele momento?
Green –Com suas 500 e tantas páginas, o livro acompanha essa pessoa muito interessante que vive esses anos da ditadura, entra numa organização clandestina, atua politicamente, participa das ações armadas a partir de 69 e fica na clandestinidade quando a sua organização desaparece.
No exílio, ele faz uma crítica à luta armada e à esquerda por sua homofobia e assume sua homossexualidade. É fundamental nos primeiros anos da abertura, quando é candidato a deputado estadual no Rio pelo Partido dos Trabalhadores e Partido Verde, mas também quando entra no movimento contra a discriminação das pessoas com HIV.
Ele transforma o discurso sobre Aids dizendo que a melhor cura é a solidariedade. Infelizmente, morreu de Aids em 1992. Herbert Daniel representa uma parcela de uma geração muito comprometida com as mudanças sociais, disposta a jogar sua vida nessas mudanças. E soube politizar sua homossexualidade para as transformações sociais.
BBC Brasil –O senhor acredita que no Brasil, questão islâmica à parte, os homossexuais estão sujeitos ao mesmo tipo de violência que houve em Orlando?
Green –Totalmente. É o que tem sido. As mortes de homossexuais, travestis, lésbicas, as violências que têm sido documentadas ao longo dos anos…é a mesma situação. Só que nos Estados Unidos é uma tradição de assassinato coletivo. Aqui é mais individual.
Você encontra uma pessoa transexual ou travesti na rua e vai pensar que pode matar, que haverá impunidade, que vai matar e ninguém vai fazer nada. Tudo está ligado. É uma homofobia internacional, baseada nas religiões, com conceitos passados, controladores, que criam dentro das pessoas ansiedades, medos e ódios que levam a esse tipo de violência.
BBC Brasil –O senhor é o sucessor de Thomas Skidmore, que morreu sábado, em sua cátedra na Brown University. Em sua análise, em que medida Skidmore mudou o paradigma dos estudos sobre o Brasil?
Green –Ele representava o brasilianista em si, uma pessoa de fora que vem para analisar o país. Isso gerou um certa reação contra o gringo que vem aqui para falar sobre o país, especulações, forças nefastas etc.. Ele estudou algo que ninguém estava estudando, história contemporânea. Nesse momento, os historiadores brasileiros estavam preocupados com a censura e a repressão.
O debate lá fora era se o Brasil era um país feudal, capitalista, etc. e ele diz não, vamos escrever sobre a história presente. Fez um trabalho sistemático para criar uma narrativa sobre aquele período. Foi também dos primeiros a escrever sobre o pensamento brasileiro sobre raça, branqueamento da sociedade. É para mim um ícone, a essência do que é o brasilianista, sendo um democrata, liberal, progressista, que ele era. Denunciou também tortura e repressão no Brasil, num momento em que o Itamaraty estava dizendo que não havia tortura no Brasil.
BBC Brasil –Como é hoje, lá fora, o interesse pelo Brasil?
Green –Ainda muito aleatório. As pessoas que sabem português quando chegam à universidade são ou filhos de brasileiros ou portugueses, ou que fizeram intercâmbio no colégio e caíram aqui ou pessoas cujos pais eram missionários ou ligados a multinacionais e moraram alguns anos no Brasil ou Portugal. As pessoas não sabem muito sobre o Brasil, infelizmente. Quando se fala que você é do Brasil, alguns, ou quase todos os estereótipos permanecem.
A gente faz todo o possível para modificar isso. Se não tem contexto, é muito difícil entender o Brasil. Tom Jobim disse bem: “O Brasil não é para principiantes”. É muito complicado. Eu que convivo com o Brasil há 43 anos, que morei aqui seis anos, sou brasilianista, não entendo nada nesse país…. (risos) A elite desse país tem uma capacidade de conciliação, de sobrevivência, de aparentar que está mudando para não mudar nada, que é fenomenal.
Nesse momento em que se fala de corrupção, estou esperando a anistia. Vão anistiar como em 79, quando os torturadores não foram punidos. É a capacidade da elite brasileira de sobreviver. O espetáculo que foi aquela votação (do impeachment de Dilma Rousseff) reforçou como estão atrasados os políticos brasileiros, representam o pior do país, não o melhor. Isso eu aprendi. O Brasil mudou muito, mas não mudou muito.
–
Foto: Ataque em Orlando deixou pelo menos 50 mortos e gerou comoção mundial