Jogos da exclusão: aqui, ali e em qualquer lugar

Como outras cidades-sede, o Rio deu continuidade a um histórico de violação de direitos em nome das Olimpíadas

por Erick Omena de Melo, em Carta Capital

Finalmente o circo olímpico aterrissa no Rio de Janeiro. Atletas, turistas e profissionais de mídia de todo o mundo estão hospedados na cidade. O Comitê Olímpico Organizador estima que uma audiência de mais de cinco bilhões de pessoas espalhadas por 220 países assista às competições.

Conforme enfatizado no dossiê de candidatura, a promessa é de uma grande e apaixonada festa encenada como pano de fundo para o embate entre as grandes estrelas do esporte mundial.

Apesar da euforia de alguns entusiastas, organizações da sociedade civil decidiram desconstruir esta imagem estetizada e higienizada do espetáculo, batizando as primeiras Olimpíadas da América do Sul de “Rio 2016: os jogos da exclusão”. Entre 1 e 5 de agosto acontece no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ a Jornada de Lutas – sequência de eventos e protestos que visam chamar a atenção para as violações de direitos humanos ocorridas ao longo da preparação da “cidade olímpica”.

De acordo com dados do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas, mais de 77 mil pessoas tiveram suas casas demolidas no Rio de Janeiro entre 2009 e 2016, colocando o prefeito Eduardo Paes (PMDB) como aquele que mais removeu comunidades trabalhadoras na história da cidade.

Muitas vezes expulsas para a extrema periferia, recebendo valores de indenização questionáveis e realocadas em áreas sem infraestrutura urbana básica dominadas por milícias, estas famílias apresentam uma visão bem menos eufórica sobre as mudanças trazidas pelos megaeventos esportivos, conforme apurado pela Agência Pública de jornalismo investigativo.

Certamente, este também é o caso das famílias dos 11 trabalhadores que morreram em acidentes de trabalho relacionados a obras olímpicas. Ou, ainda, daqueles trabalhadores submetidos a condições de trabalho análogas à escravidão por construtoras olímpicas.

Não há dúvidas de que este expressivo registro de violações de direitos faz jus ao título dado ao evento por organizações da sociedade civil. Ainda assim, cabe questionar se o fato de especificamente caracterizar o Rio 2016 como “jogos da exclusão” não implicaria em assumir a possibilidade de que outras edições olímpicas teriam sido “não-excludentes”.

Embora a organização de alguns eventos anteriores tenha claramente dedicado maior atenção à criação de uma imagem mais inclusiva, dificilmente tal inclusividade foi substancialmente além de meras peças de publicidade.

Notoriamente, este foi o caso de Londres 2012.  Tida como o mais recente modelo de inclusividade e de “leves impactos negativos” por muitos analistas, a candidatura da cidade, lançada em 2003, propunha a construção do parque olímpico na zona leste, uma das regiões mais carentes do país.

Com isso, a Associação Olímpica Britânica, em parceria com o governo local, prometia transformar radicalmente uma área de 2,6 milhões de metros quadrados, proporcionando mobilidade social através da geração de 12 mil empregos e da construção de pelo menos 3,6 mil unidades habitacionais até 2020.

Reforçando a marca de inclusividade da candidatura, prometeu-se ainda que pelo menos 50% da Vila Olímpica seria revertida em “habitação economicamente acessível” após os Jogos.

A tática de prometer “legados sociais” como forma de legitimação funcionou. O COI apoiou a iniciativa, buscando reforçar um suposto potencial de “revitalização” de espaços urbanos proporcionado pelas Olimpíadas (e resgatando o já desbotado mito iniciado pela experiência de Barcelona 92).

Contudo, tal tática de revitalização implicava, ainda, na deslegitimação dos usos anteriormente existentes naquela área. De acordo com as autoridades e seu enorme aparato de relações públicas, o local era desabitado, inutilizado e degradado.

Porém, estas descrições não correspondiam à realidade local. Ali existiam cerca de 5 mil empregos e 1,5 mil casas, distribuídas na forma de uma cooperativa habitacional, alojamentos para estudantes universitários e acampamentos de ciganos – uma das minorias étnicas mais vulneráveis no país – além de reservas naturais, jardins comunitários e equipamentos esportivos.

Tudo isso foi destruído para dar lugar ao parque olímpico de Londres, que posteriormente foi parcialmente convertido em empreendimentos imobiliários majoritariamente voltados para um público de classe média.

Embora houvesse a determinação de se destinar uma parcela das novas unidades habitacionais a “casas economicamente acessíveis”, essa era apenas uma fachada, já que na prática tal denominação significava estipular um teto de 80% do valor de mercado para a venda dos novos apartamentos. Ora, considerando os preços superinflacionados do mercado imobiliário londrino, pouca diferença faz para quem ganha um salário mínimo. Na prática, aquela oferta jamais estaria ao alcance da massa de trabalhadores precarizados, muitos dos quais, ironicamente, viviam e ainda vivem naqueles arredores.

Mesmo após o violento processo de destruição e remoções levado a cabo para a construção dos equipamentos olímpicos, as violações de direitos não cessaram. O caso de Mike Wells é emblemático.

Após ter sido removido da cooperativa habitacional Clays Lane, sob a justificativa de que as Olimpíadas trariam benefícios mais importantes do que a preservação de sua casa, ele se tornou um ativista disposto a denunciar os constantes atropelos de autoridades locais.

Quando, poucos meses antes do início dos jogos de 2012, uma quadra de aquecimento para jogadores de basquete estava sendo construída em um parque púbico onde não era permitido nenhum tipo de construção, Mike e outros ativistas não titubearam em pegar uma câmera e registrar a ilegalidade.

A resposta daqueles pagos para proteger o novo equipamento esportivo não foi nem um pouco sutil. Mike Wells teve sua câmera apreendida e foi brutalmente repreendido por seguranças, antes de ser levado para uma delegacia que havia sido especialmente criada para lidar com delitos relacionados aos Jogos.

De lá, ele foi transferido para uma prisão, ficando detido por alguns dias. Ao ser liberado, foi informado de que a data do seu julgamento estava marcada para o primeiro dia após o fim dos Jogos. Além disso, até lá, estava proibido de se aproximar de qualquer área olímpica. Essa experiência o levou a escrever e publicar um diário de seus dias na prisão.

Provavelmente, tais relatos sobre os bastidores de Londres 2012 impressionam o leitor mais desavisado. Não é por acaso. O marketing governamental mobilizado para limpar a imagem daquelas Olimpíadas, combinado com uma abordagem bastante generosa por parte da imprensa nacional, conseguiu apagar a história de luta e sofrimento das comunidades tradicionais daquela região.

Este exemplo demonstra que mesmo os casos tidos como modelos não resistem a um olhar mais detalhado sobre os processos que permitem a criação de verdadeiros estados de exceção justificados por megaeventos esportivos, cujo principal objetivo tem sido garantir lucros monopolistas exorbitantes tanto para corporações globais quanto para empresários e políticos locais.

O exemplo de Londres nos lembra, principalmente, que os Jogos Olímpicos do COI, onde quer que aconteçam, são os “jogos da exclusão”. Portanto, a Jornada de Lutas, que busca denunciar os absurdos da experiência carioca e faz questão de não deixar que as comunidades locais atingidas sejam esquecidas, é mais global do que se imagina, ainda que este não seja o objetivo.

A iniciativa representa, na verdade, um grito de resistência que explicita toda a sujeira varrida para debaixo do tapete pelo COI e seus parceiros corporativos ao longo das últimas décadas.

*Erick Omena de Melo está concluindo o doutorado em Planejamento Urbano pela Oxford Brookes University no Reino Unido. Sua tese é baseada em trabalho de campo multissituado (Brasil, África do Sul e Inglaterra) sobre o legado dos mega-eventos.

Imagem: Pichação na Vila Autódromo, em Jacarepaguá, na zona oeste do Rio de Janeiro, em 2015: o local foi símbolo de resistência aos Jogos

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