Mariah Barber, Nia McAllister, Sarah Cronin e Stephanie Reist – RioOnWatch
No mês passado, uma delegação do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) uniu-se a grupos de ativistas do Rio para uma série de eventos chamada “Julho Negro”. Durante a visita de quatro dias, de 20 a 23 de julho, grupos se reuniram em diversos locais por toda a cidade, para discutir uma grande variedade de problemas enfrentados pelas comunidades negras no Brasil e nos Estados Unidos.
Escalada da violência policial durante a preparação dos Jogos Olímpicos
Na linha de frente das discussões estavam as preocupações com o aumento da violência policial durante os preparativos para os Jogos Olímpicos. De acordo com a Anistia Internacional Brasil e o Instituto de Segurança Pública (ISP), os homicídios cometidos pela polícia aumentaram em 135% no último ano. As estatísticas demonstram que 75% das pessoas mortas pela polícia no ano passado eram homens negros.
Nos Estados Unidos, a brutalidade policial frequentemente envolve um homem negro desarmado sendo baleado por um policial branco. No Brasil, entretanto, a maioria dos policiais são negros e, muitas vezes, oriundos de favelas. Durante um evento na Escola Estadual Clóvis Monteiro, em Manguinhos, na Zona Norte, Rachel Barros, líder do Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro, enfatizou essas diferenças perante uma platéia de 80 estudantes do ensino médio e moradores de favelas. Ela argumentou que, embora os policiais venham de origens semelhantes às de suas vitimas, a partir do momento em que eles entram na instituição, seu trabalho é “agir em nome de um estado racista”.
A violência policial nas favelas é frequentemente justificada como sendo uma resposta ao tráfico de drogas. De visita ao Brasil, a advogada e ativista americana Deborah Small, diretora executiva e fundadora do Break the Chains: Communities of Color and the War on Drugs (Quebrar as Correntes: Comunidades Negras e a Guerra às Drogas), disse que não se trata de “guerra às drogas”, mas uma guerra contra os negros”.
Deborah Small contextualizou a situação dentro da história do Brasil, um país construído com o trabalho escravo nos setores do açúcar, tabaco e café. “Pense no que significa descender de pessoas que foram escravizadas para promover o lucro através do vício, e que agora estão sujeitas a punições pelo mesmo governo que construiu sua riqueza com o lucro oriundo do vício”, disse ela no evento Jovem Negro Vivo, no dia 23 de julho, no Méier. “Não sei o que vocês acham, mas a mim parece o cúmulo da hipocrisia”.
Saúde Mental e Trauma na Comunidade Negra
O impacto da violência do Estado na saúde psicológica das comunidades negras também foi discutido durante a visita. Pesquisas mostram que 65% dos moradores de favelas temem a polícia nas suas comunidades, e que o trauma da violência policial e das operações podem ter impactos negativos graves na saúde mental e física dos moradores.
“Por acaso você vive num espaço, uma favela ou na periferia, longe do Centro da cidade, e isso significa que você tem de viver com medo, insegurança, o risco de morte eminente e, ainda por cima, uma possível criminalização”, disse Bruno Duarte, da Anistia Internacional Brasil.
O trauma permeia as vidas de sobreviventes de violência, de famílias que perderam entes queridos, e daqueles que convivem com a violência cotidianamente. A ativista Waltrina Middleton, do Black Lives Matter, pediu aos estudantes na Escola Clóvis Monteiro que estivessem acostumados a escutar tiros que erguessem as mãos. A maioria dos estudantes levantou a mão e afirmou ouvir tiros constantemente.
Em resposta, Waltrina Middleton falou dos danos mentais de conviver com a violência cotidiana. “A normalidade de tiros, viver com os tiros, viver com a brutalidade, é escravidão. É trauma. É sofrimento contra as nossas almas. É importante quebrar as amarras da opressão e lutar, estar consciente das estatísticas que impactam sua comunidade e apoiar uns aos outros”.
Embora muitos dos ativistas participantes das reuniões tenham perdido entes queridos, a dor de perder um filho pode ir além do suportável. No dia do encontro com a imprensa, os ativistas lembraram de Joselita de Souza, mãe de Roberto de Souza Penha, um dos cinco jovens baleados pela Polícia Militar 111 vezes dentro de um carro, em Costa Barros, em novembro do ano passado. Joselita de Souza faleceu no dia 7 de julho, de “tristeza“.
“Existe “orfão”, existe “viúva”, mas não há nenhuma palavra para uma mãe que perde seu filho”, disse Mônica Cunha, da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência.
Uma outra tragédia ocorreu durante os eventos do Julho Negro, com a morte repentina da poeta, ativista e educadora Elaine Freitas. Elaine morreu de um ataque cardíaco, após sentir dores no peito no protesto de quarta-feira contra a prisão continuada de Rafael Braga, a única pessoa que permanece detida devido aos protestos de 2013.
A visita da delegação à Maré na quinta-feira à tarde foi cancelada, após a morte de Elaine Freitas, mas os ativistas decidiram realizar uma sessão pela manhã no Terreiro Omi Ojú Art, um centro de Candomblé, no bairro Miguel Couto, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.
Apesar da Baixada Fluminense ter um dos mais altos índices de violência do Estado do Rio de Janeiro, a região é raramente considerada pela mídia local e internacional. Luciene Silva, cujo filho Raphael Silva Couto morreu no massacre de 2005, em que a polícia matou 30 pessoas em Nova Iguaçu e Queimados, falou da intensa violência na região e como isso afeta o luto das famílias: “Essas mortes que acontecem na Baixada, muitas delas não são comunicadas à polícia e os corpos não são encontrados. Muitas vezes as famílias não conseguem nem enterrar [seus entes queridos]”.
Apesar de ser estigmatizada pela violência, a Baixada também possui uma das mais altas concentrações de casas religiosas Afro-brasileiras no Estado. Mãe Beata de Iemanjá, líder espiritual do Centro Omiojúàrò, ofereceu orientação e espaço para muitos movimentos sociais e ativistas da região.
Waltrina Middleton, que perdeu seu primo DePayne Middleton-Doctor no massacre de Charleston, no ano passado, na histórica Igreja Mother Emanuel, salientou que apesar de muitos na sala compartilharem traumas e dores, eles estavam também reunidos num espaço diaspórico sagrado de cura e solidariedade negra: “Venho hoje não como uma desconhecida, mas como uma irmã conectada através da diáspora e muito honrada por poder caminhar com vocês neste solo sagrado. E agradeço aos antepassados por tornarem possível que eu esteja aqui. E apesar de eu não ter conhecido a nossa irmã Elaine, sinto sua dor e lamento com vocês, mas também celebro por ela estar entre os antepassados olhando por nós”.
Um dos momentos mais emocionantes nesse compartilhamento de luta, dor, cura e resistência aconteceu quando o Reverendo Dr. John L. Selders Jr. do movimento Black Lives Matter, conduziu a congregação num cântico. “Eu vou cantar porque a minha espiritualidade, a minha prática religiosa e o meu ativismo convergem para a música que compartilhamos em comunidade”. Apesar das barreiras linguísticas, as pessoas presentes cantaram junto a canção Gospel Speak To My Heart e a canção de Liberdade Ain’t Gonna Let Nobody Turn Me Around.
Resistência das Mulheres Negras: A força na linha de frente
Durante o último evento do Julho Negro organizado em parceria com a Anistia Internacional Brasil, as mulheres se reuniram para discutir os desafios específicos enfrentados pelas mulheres negras no país. Por estarem as mulheres negras na vanguarda dos movimentos de justiça racial, os debatedores disseram que é preciso reconhecer não apenas sua força, mas também o desgaste psicológico a que são submetidas por essa posição.
Muitos participantes enfatizaram a importância de cuidar e apoiar as mulheres negras. “Existe essa ideia da mulher como apenas emocional. Mas não a mulher negra. A mulher negra é forte, ela é uma fortaleza”, disse a educadora Nathalia Grilo. “É realmente importante cuidar e dar amor a sua irmã negra, mulher negra, tia, mãe. Dê amor a essas mulheres porque ser forte diariamente é cansativo e desumano”.
Valorizar corpos negros, cultura negra e narrativas negras
Ao longo dos eventos, os ativistas notaram a ironia de que o Brasil é um país que promove com orgulho a cultura negra, mas não acolhe os negros. “O racismo coloca o corpo negro como um corpo sem valor”, disse Rachel Barros no encontro de sexta-feira na Escola Clóvis Monteiro.
Ativistas negros tanto dos Estados Unidos como do Brasil enfatizaram a importância dos meios de comunicação. Os ativistas explicaram que a mídia legitima assassinatos cometidos pela polícia quando criminaliza as vítimas negras nas suas reportagens, ou pior, nem reportam estes incidentes. Nos casos de homens negros e desarmados, assassinados pela polícia, a mídia dos Estados Unidos tende a criminalizar ou desacreditar a vítima, retratando-a como agressiva ou como não sendo “nenhum anjo“.
Os ativistas aconselham as pessoas a usarem as redes sociais e seus celulares para combater a violência policial. Como por exemplo, os representantes do Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro apresentaram o aplicativo Nós por Nós, que pode ser usado pelos moradores das favelas para denunciar a violência policial.
A colaboração entre ativistas brasileiros e norte-americanos foi em primeiro lugar uma troca de narrativas, informação e estratégias com o objetivo de formar uma união de movimentos que valorizem vidas negras, em um contexto internacional. Embora a presença dos representantes do movimento Black Lives Matter nos eventos do Julho Negro tenha contribuído para promover e divulgar discussões, oficinas e atividades, a intenção foi a troca de conhecimento e a colaboração entre redes existentes de ativistas nos dois países. Os organizadores anunciaram que já estão fazendo planos para um Julho Negro em 2017.