Mais de um terço da população brasileira atribui à vítima a culpa por ter sofrido estupro. Pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que será divulgada nesta quarta-feira, 21, mostra que 37% concordam com a frase “mulheres que se dão ao respeito não são estupradas”, porcentual que chega a 42% entre os homens, e 30% acreditam que a “mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada”
Marco Antônio Carvalho – O Estado de S. Paulo / IHU On-Line
A pesquisa, feita pelo Instituto Datafolha com 3.625 pessoas em 217 cidades de todas as regiões do País entre 1 e 5 de agosto, traz ainda outros dados considerados preocupantes por especialistas: 65% da população diz sentir medo de ser vítima de violência sexual, número que é de 90% entre as mulheres do Nordeste. O receio é maior entre os mais jovens, onde o porcentual médio é de 75%, decrescendo conforme aumenta a faixa etária.
A opinião surge em um ano em que se discutiu a chamada “cultura do estupro”, a partir do caso de um ataque coletivo contra uma adolescente no fim de maio no Rio. O resultado também contrasta com a celebração de dez anos de vigência da Lei Maria da Penha, considerada a mais relevante na luta contra a violência doméstica.
Para os pesquisadores que coordenaram o trabalho, “é bastante comum que o comportamento de quem foi vítima seja questionado com base no que se entende serem as formas corretas de ‘ser mulher’ e ‘ser homem’ no mundo”. “Este pensamento vem de um discurso socialmente construído, que considera que se a mulher é vítima de alguma agressão sexual é porque de alguma forma provocou esta situação, seja por usar roupas curtas ou andar sozinha na rua em certos locais considerados inapropriados. Com isso, há ainda a ideia do homem que não consegue controlar seus ‘instintos naturais’”, aponta a análise dos pesquisadores.
Os resultados mostram que pessoas mais novas, com menos de 60 anos, tendem a não culpar as vítimas. A pesquisa aponta que 44% dos brasileiros com 60 anos ou mais acreditam que uma mulher que use roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada. Por outro lado, a afirmação é considerada verdade por 23% dos ouvidos com idade entre 16 e 34 anos.
O nível de escolaridade é visto como um diferencial. Enquanto 47% das pessoas que cursaram o ensino fundamental acreditam que são estupradas mulheres que não se dão ao respeito, 19% daqueles que cursaram o ensino superior têm a mesma visão.
Questionados se é necessário ensinar na escola meninos a não estuprar, 91% dos entrevistados responderam que sim. Os responsáveis pela pesquisa encararam a resposta como importante para notar que a educação sobre igualdade tem potencial para “alterar a cultura machista que perpetua a violência contra a mulher”. A concordância sobre esse tipo de ensino foi confirmada em todas as faixas etárias, níveis de escolaridade e tamanho dos municípios.
Atendimento. Segundo os estudiosos do Fórum, que reúne 172 associados entre pesquisadores da iniciativa pública e privada, além de servidores da segurança pública, o registro e a investigação de crimes como estupro envolvem dificuldades como tratamento e assistência inicial à vítima, além da necessidade de um trabalho consistente em busca de provas e testemunhas.
“Nem sempre as vítimas apresentam marcas físicas da violência ou perturbação emocional, ou têm um relato absolutamente coerente, mas isso não quer dizer que o crime não aconteceu. Levar a sério uma denúncia de estupro não significa condenar sumariamente o suspeito, mas acolher a vítima, escutá-la, dar credibilidade a seu relato e buscar, por meio de investigação, a devida elucidação do caso”, escrevem.
As dificuldades no atendimento são notadas na avaliação das polícias: 50% discordam da afirmação de que policiais militares são bem preparados para atender vítimas de violência sexual, e 42% dizem não encontrar acolhimento nas delegacias. Quanto maior a escolaridade, mais crítica é a visão. Entre a população com ensino superior, 56% disseram não acreditar que as delegacias ofereçam o acolhimento adequado.
A reportagem não conseguiu contato com o Conselho Nacional dos Comandantes-gerais das PMs e não obteve resposta dos telefonemas feitos à Associação Nacional dos Delegados.
Análise: Renato Sérgio de Lima, vice-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
É extremamente perverso o dado de que 42% dos homens brasileiros acreditam que a mulher que não se dá ao respeito não pode reclamar se for estuprada. É um número cruel porque são pessoas que não veem a mulher como um sujeito de direitos e submetida, mesmo diante das conquistas dos últimos 30 anos, a um filtro social que define como deve ser seu comportamento. Assim, é estarrecedor perceber que o Brasil tem um enorme déficit civilizatório, condicionando o respeito a uma visão machista de moralidade.
Os dados mostram que essa visão é predominantemente associada a baixa escolaridade e é notada em municípios com menos de 50 mil habitantes, na parcela mais velha da população. Mesmo assim não podemos deixar de adjetivar esse dado como profundamente inquietante.
Quando se olha para a percepção que se tem das instituições, vemos um enorme hiato entre o medo da população e o cotidiano das polícias. Elas têm uma enorme lição de casa para fazer, com uma melhor preparação dos seus agentes independentemente de atuarem ou não em unidades especializadas. A vítima, então, tem de enfrentar o modelo de moralidade estabelecido e também a forma de atuação das polícias, que não acolhe e muitas vezes atemoriza e incentiva a não denúncia.
Porém, uma brecha positiva que a pesquisa traz é a crença de 91% na importância de se ensinar meninos a não estuprar. Esse dado tem que ser visto com esperança. Vale apostar na educação como instrumento de transformação social.
Depoimento: B.C, aluna de Medicina Veterinária da USP
‘Tudo é feito para você deixar para lá. E aí o cara pode fazer de novo’
“Só registrei boletim de ocorrência sobre o que aconteceu comigo um mês depois, em 2013. Eu me sentia culpada quando falavam mal de mim, dizendo que podia ter agido diferente e talvez não fosse culpa dele. Mas a situação foi muito clara. Depois de uma festa, ele veio atrás de mim na república, ficou insistindo para ficar comigo por uns 30 minutos, até que me lembro de ter adormecido. Acordei assustada com ele me penetrando e comecei a empurrar e gritar, mas a música estava alta lá fora e ninguém escutou.
Só consegui sair depois de fingir que ia rolar, disse que ia ao banheiro e corri paranoica por mais de 20 minutos até a segurança. Antes de ir à delegacia, procurei apoio no campus em Pirassununga, onde ouvi da assistente social que as coisas não tinham acontecido da forma como eu achava, que o cara tinha procurado ela e contado e, segundo ele, estava superbêbada, me oferecendo para todo mundo. Fiquei traumatizada, comecei a chorar e saí.
Na delegacia, fui bem tratada, mas esperei por três horas para registrar a ocorrência, mesmo estando vazia. A sensação que fiquei depois de tudo é que poucos ao meu redor queriam ouvir o que de fato tinha acontecido. Depois que eu falava que tinha bebido, já partiam para cima, julgando.
Quando voltei ao prédio da segurança para procurar um dos registros que tinha feito, eles me olhavam, perguntavam se não queria desistir dessa história, se achava que o meu comportamento tinha levado ao que aconteceu. ‘Se tivesse na Igreja ou estudando…’, disse um. As coisas são feitas para você desistir, não registrar, deixar para lá, e aí o cara pode fazer de novo.
Depois, vieram me ameaçar pessoalmente e pela internet. Desconhecidos me chamando de vagabunda, me ameaçando de morte e estupro. Pessoas que não pensam e só repetem a agressividade.”
Resposta. A Universidade de São Paulo (USP) disse que o caso, que foi tratado na CPI do Trote na Assembleia, continua a ser investigado.