Por Ricardo Machado – IHU On-Line
Os arquivos que integraram a regional Sul do Serviço Nacional de Informações – SNI durante a Ditadura Militar foram devolvidos ao estado do Rio Grande do Sul e estão disponíveis para pesquisa na biblioteca da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Essa iniciativa faz parte de um projeto de descentralização dos arquivos que reúnem informações sobre a Ditadura Militar, os quais foram enviados aos seus estados de origem.
De acordo com Grimaldo Zachariadhes, ex-integrante da Comissão de Altos Estudos do Memórias Reveladas do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro durante o biênio 2012-2014 e coordenador do Núcleo de Estudos Sobre o Regime Militar – NERM, o acervo reúne 17 mil arquivos e é o segundo maior do país.
Na entrevista a seguir, concedida pessoalmente quando esteve na Unisinos, o historiador explica que o SNI “era um órgão do governo federal que tinha status de Ministério, e em cada região do país ele tinha uma agência regional, cuja função era deixar Brasília informada sobre tudo que acontecia nas regionais”. Arquivos semelhantes, pertencentes ao SNI de outras regiões do país, informa, demonstram “o tamanho do controle que o SNI mantinha dentro da sociedade. Eles vigiavam tudo, sabiam de tudo e estavam informados sobre tudo”.
Segundo o historiador, o acervo do Rio Grande do Sul “está inexplorado” e será fundamental para dar continuidade às pesquisas sobre a Ditadura, pois ele abre “uma ‘caixa de Pandora’, nos mostrando dores e opressões que estavam ocultas durante esse tempo todo”, conclui.
Grimaldo Zachariadhes é graduado e mestre em História pela Universidade Federal da Bahia – UFBA e especialista em Educação pela Universidade Estadual da Bahia – UNEB. Atualmente é doutorando em História, Política e Bens Culturais pela Fundação Getulio Vargas – FGV e leciona na rede municipal do Rio de Janeiro.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais os tipos de informações que os Arquivos Digitais do Serviço Nacional de Informações – SNI contêm?
Grimaldo Zachariadhes – Essa documentação está sendo devolvida ao Rio Grande do Sul, e a universidade que a recebe tem a função de zelar por ela. O conteúdo desse acervo tem uma função e serve para vários motivos: primeiro, para que as pessoas que sofreram repressão na Ditadura Militar possam ter acesso a essa documentação e pedir reparação frente ao Estado. Muitas pessoas que sofreram repressão e foram vigiadas nunca souberam que tiveram suas vidas afetadas de alguma maneira. Esse acervo acaba abrindo uma “caixa de Pandora”, nos mostrando dores e opressões que estavam ocultas durante esse tempo todo.
O que é esse acervo? O SNI era um órgão do governo federal, tinha status de Ministério e em cada região do país ele tinha uma agência regional, cuja função era deixar Brasília informada sobre tudo que acontecia nas regionais. Então, o que está sendo devolvido às regiões é o acervo regional e, portanto, esses são os 17 mil arquivos da agência do Rio Grande do Sul. Esses são os arquivos que sobraram, cerca de 20%, porque o restante foi destruído. Os gaúchos têm o segundo maior acervo de documentos por estados, perdendo somente para São Paulo.
Essa documentação demonstra como a ditadura controlou ou vigiou a população, de modo que as pessoas não sabem a capilaridade que esse sistema de informação teve. Quando analisamos esses acervos, é possível verificar o tamanho do controle do SNI dentro da sociedade. Eles vigiavam tudo, sabiam de tudo e estavam informados sobre tudo. Esse acervo nos dá uma dimensão do controle que a ditadura militar tentou manter sobre a sociedade.
Essa documentação que foi entregue à Unisinos ainda precisa ser explorada. Dentro do acervo geral do SNI temos mais de 200 mil documentos.
IHU On-Line – Há alguma novidade nesses documentos? O que existe nesse acervo que ainda não tenha sido dito?
Grimaldo Zachariadhes – Uma das coisas que sempre gosto de destacar é que a ditadura foi muito pior do que os livros contam. Além disso, gosto de comentar que há muita repressão e muita dor ocultas nesses arquivos, ou seja, história de pessoas que sofreram ou naturalizaram esse momento ou nem sabem que foram investigadas. O acervo do RS, que foi entregue à Unisinos, está inexplorado, e os gaúchos, ao analisarem os documentos, nos contarão o que tem ali.
Em outros acervos do SNI que pesquisei, por exemplo, pude verificar que as Testemunhas de Jeová sofreram com a ditadura de forma intensa e nunca guardaram essa memória, porque se pensa que a ditadura foi repressora ou só atingiu as esquerdas. As Testemunhas de Jeová tiveram muitos problemas com os militares porque eram mais conservadoras que eles. Um livro chamado O Testemunha de Jeová e a segurança nacional relata justamente a história de que o SNI discutiu a possibilidade de tornar as Testemunhas de Jeová proscritas, como era na Argentina, ou seja, proibir a sua igreja no Brasil.
IHU On-Line – Por que as Testemunhas de Jeová foram perseguidas pela ditadura civil-militar? Como se deu essa perseguição?
Grimaldo Zachariadhes – Os militares viam um problema na educação das Testemunhas de Jeová, e isso gerou conflitos em várias áreas, porque os alunos, de modo geral, eram obrigados a prestar continência à bandeira, mas as Testemunhas de Jeová não aceitavam isso porque jurar a bandeira não estava de acordo com sua fé. Por conta disso, os militares começaram a impedir a matrícula desses alunos nas escolas, alegando que eles estavam subvertendo as ordens do regime. Sobre essa situação, há inclusive uma carta de um diretor de uma escola para um general, em que ele argumentava que os militares não podiam impedir a matrícula do aluno porque os pais seguiam essa religião. Olha o absurdo que era isto: um diretor pedir autorização para um general para matricular um aluno em uma escola pública. Essa carta está no acervo geral.
IHU On-Line – Como foi o trabalho de reunir esse acervo?
Grimaldo Zachariadhes – Esse acervo ficou preservado em Brasília durante muito tempo, no Ministério da Justiça. Desde o governo Lula e com a proximidade dos 50 anos do golpe, houve um investimento para digitalizar esse acervo. O trabalho do Arquivo Nacional e a criação do Memórias Reveladas foram fundamentais para esse processo. Do mesmo modo, a criação da Comissão Nacional da Verdade, no governo Dilma, contribuiu para que esses arquivos fossem conhecidos e boa parte desse acervo foi digitalizada e disponibilizada a pesquisadores.
Nenhuma ditadura da América Latina foi tão burocrática quanto a nossa, nem teve tanta documentação quanto a nossa. O que estamos fazendo com esse acervo é descentralizá-lo, ou seja, agora cada estado está recebendo sua agência regional do SNI. Então, a Unisinos ficou com a agência do Rio Grande do Sul. Por ser uma agência regional, às vezes, elas poderiam ter sob sua gerência dois estados, por exemplo, a Agência Regional do Paraná era responsável por Paraná e Santa Catarina, dois estados que já receberam a documentação. O RS foi o último estado do Sul a receber os arquivos.
IHU On-Line – Nesse acervo poderemos encontrar alguma documentação sobre a Operação Condor?
Grimaldo Zachariadhes – Pode ter algum documento sobre isso. Como foram criados vários órgãos de representação e repressão, eles trabalhavam juntos, apesar de serem separados, então, talvez seja possível encontrar algum arquivo sobre a visão do SNI em relação à Operação Condor. Eu já encontrei documentos sobre a rota de exilados vindos do Uruguai para cá. Mas imagino que essa documentação mais profunda sobre a atuação dos exilados ou das pessoas que estavam fugindo da ditadura esteja no Ministério das Relações Exteriores e hoje já está disponível para consulta.
IHU On-Line – Quais eram as relações dos militares com o Vaticano?
Grimaldo Zachariadhes – O embaixador brasileiro no Vaticano passava informações para os militares sobre como o Vaticano via a situação da ditadura, sobre os encontros entre cardeais e sobre como o Vaticano enxergava o regime militar. Nesses documentos é muito fácil perceber como a ditadura atuou contra Dom Helder Câmara para que ele não recebesse o Prêmio Nobel da Paz. Parte desses documentos estão no Arquivo Nacional e outra parte foi devolvida a Pernambuco e está no Centro Dom Helder Câmara.
Estou escrevendo a biografia do Cardeal Dom Avelar Brandão Vilela. Quando estava pesquisando sobre ele, vi essas trocas de correspondências entre o embaixador e os militares, nas quais o embaixador mencionava os comentários dos bispos que visitavam o Vaticano. Havia uma preocupação muito grande entre os militares sobre o modo como a ditadura era vista fora do país, então eles tinham um controle muito intenso.
Parte do meu mestrado foi sobre os jesuítas na Bahia e sobre uma instituição chamada CEAS [Centro de Estudos e Ação Social], que fazia uma oposição muito grande ao regime. Os jesuítas do CEAS enviavam cartas ao Vaticano e a Roma, onde estava a sede da Companhia de Jesus, dando explicação das suas ações; essas cartas passavam pelos correios, que era comandado pelos coronéis, que interceptavam, abriam e fotocopiavam as correspondências e as enviavam de volta. Esse tipo de procedimento era constante e é muito fácil ter acesso a esse acervo.
IHU On-Line – Dos estados da federação, quantos já receberam seus acervos?
Grimaldo Zachariadhes – Nove estados, mas a ideia é que todos recebam os acervos. A única exigência que fazemos a todos é que quem recebe essa documentação tem que torná-la disponível ao público em geral, sempre de forma gratuita. Essa documentação tem um peso muito importante, pois ajudará as pessoas que foram investigadas e vigiadas, que tiveram suas vidas destruídas, a saberem o que aconteceu.
Em 1977, por exemplo, um bispo enviou uma carta ao SNI defendendo uma moça que havia passado em um concurso público, só que ela estava impossibilitada de assumir a vaga porque seu nome estava “sujo” no SNI. A justificativa do SNI era de que em 1966 ela tinha sido presa por uma manifestação que havia sido liderada pela Igreja Católica. Esse bispo confirmou que ela estava lá, mas alegava que não era subversiva. Isso aconteceu com muita gente. É preciso lembrar ainda que dois chefes do SNI se tornaram presidentes nessa época, Emílio Garrastazu Médici e João Baptista de Oliveira Figueiredo. Então, eles tinham poder de interferência muito grande e as pessoas simplesmente não sabem dessa história.
Essa documentação comprova que ninguém estava imune à ditadura, à ação dos militares. Muitas pessoas tiveram suas vidas julgadas e nunca souberam. Havia casos de decisões sobre a cassação de direitos políticos, em que os próprios réus nunca souberam disso. Imagine: existe um processo contra alguém, em que haverá a cassação dos seus direitos políticos por 10 anos, e o réu não sabe que está rolando o processo.
Além disso, esses documentos também revelam muitas intrigas políticas. Por exemplo, quando alguns candidatos perdiam as eleições, começavam a denunciar e a inventar histórias para o SNI, porque sabiam que essas denúncias arruinariam a vida da pessoa denunciada. Os próprios militares sabiam disso, tanto que um general diz que, quando foi aplicado o AI-5, aumentou muito o número de denúncias de políticos contra outros prefeitos, porque essa era uma forma de derrubar o concorrente, pois sabiam que o nome “sujo” no SNI interferia na vida da pessoa.
Outro exemplo: os militares proibiram um livro católico que era adotado pelo Colégio Anchieta. Por conta disso, Dom Vicente Scherer enviou uma carta desaforada aos militares, dizendo que ele havia liberado o uso do livro e perguntando se eles gostariam de entrar em conflito com a Igreja. A resposta do general foi a seguinte: “Cardeal, o senhor quer uma briga com o exército e acha que pode ganhar?”. Isso mostra o nível de conflito que existia e que era manifestado através das cartas que eram trocadas entre eles.
O importante da documentação é que ela revela aquilo que não era dito em público, as formas de atuação nos bastidores. Essa documentação demonstra como os militares também tiveram problemas com as questões de gênero, por exemplo, com as perseguições às mulheres, a questão da homofobia constante, a questão da aversão aos homossexuais — tudo isso era usado para atingir os adversários.
IHU On-Line – Em relação à documentação entregue à Unisinos, é possível encontrar o nome de pessoas torturadas e assassinadas?
Grimaldo Zachariadhes – O nome de assassinados e torturados não era divulgado, porque os militares diziam que isso não acontecia. Encontraremos nesses arquivos a lista de nomes de pessoas que não eram de confiança ou que tinham algum problema. Todo ano as agências regionais do SNI enviavam um relatório para Brasília, informando sobre o que tinha acontecido na região e esse material informava quem era quem, qual jornalista era de oposição, qual era da situação. Havia uma observação, por exemplo, dizendo que o jornal Zero Hora apoiava o regime, mas alertando que na redação vários jornalistas eram contrários ao regime, e nesses relatórios eram citados os nomes desses jornalistas com suas respectivas filiações.
Então, há lista de clero, há lista de professores da Unisinos, inclusive o caso de uma professora que foi demitida de uma universidade federal e foi contratada pela Unisinos. Quando os militares sabiam que determinado professor era contratado, eles iam até a universidade, pediam a ficha da pessoa e começavam a vigiá-la. Muitos registros mostram que tal dia, o professor falou tal coisa, ou seja, ou eles tinham algum espião nas aulas — que é o que imagino — ou algum aluno dava todas as informações. Do contrário, como eles teriam dados tão precisos?
Outro caso pitoresco que encontrei em arquivos é o de uma aluna de geologia que participou de um congresso em Santa Catarina e lá vendeu quadros de Che Guevara. Encontramos informações completas com a descrição da aluna, com informações do que estava escrito nos quadros, por qual valor foram vendidos etc.
É possível, inclusive, encontrar o nome dos delatores. Não era comum eles assinarem as delações, mas já encontrei informações desse tipo. Na Universidade Estadual de Londrina houve um conflito muito grande entre o reitor e os opositores ao regime, e nos documentos constam as informações sobre o reitor, sobre a forma truculenta com que ele atuava. Esse é um documento muito importante para a universidade e deixa muito clara a atuação do reitor entregando os próprios alunos.
É possível perceber, então, que a ditadura contou com o apoio e a participação da população. Muitos setores estiveram presentes, apoiando o regime, por motivos maiores ou por interesses pessoais ou porque concordavam com a questão que os militares defendiam.
IHU On-Line – O livro “1964: A Conquista do Estado: A ação política, poder e golpe de classe”, de René Armand Dreifuss, explica que foi um golpe civil-militar. Muitas empresas envolvidas nos atuais escândalos de corrupção, tanto na operação Lava Jato quanto na operação Zelotes, surgiram na ditadura militar. No acervo da Comissão Nacional da Verdade – CNV há documentação sobre o surgimento dessas empresas? Existe documentação da relação dessas empresas com o Estado?
Grimaldo Zachariadhes – Geralmente os militares tinham uma preocupação maior com as estatais, e as próprias estatais tinham um setor de informação. Desse modo, encontramos muita coisa sobre a Petrobras, a Eletrobrás, Itaipu. Essas empresas não eram uma preocupação para eles, porque elas estavam crescendo, enriquecendo, e faziam parte da ideia do Brasil grande que eles queriam.
Um dos documentos de um agente do órgão de informação da aeronáutica demonstra que o governador de Pernambuco estava roubando o erário. Esse governador tentou se explicar, mas o araponga respondeu a ele que tal atitude não era conveniente, por conta da Constituição. Ou seja, isso mostra que uma instituição da ditadura estava pedindo aos generais que atuassem contra um governador corrupto, que era da Arena, partido apoiado pelos generais. O órgão da ditadura estava dizendo que um governador que apoiava a ditadura era um ladrão, e ninguém nunca agiu contra ele. Isso mostra que na ditadura também houve corrupção.
Quando estive em Pernambuco, dei essa informação para dois grandes jornais, mas nenhum deles aceitou publicá-la, porque a família Nilo Coelho, que é a família desse governo envolvido no caso de corrupção à época, ainda é muito importante na região.
Nesse caso, infelizmente, não sabemos quem foi esse agente da aeronáutica. Mas documentos como esses são o que chamamos de “documentos sensíveis”, que podem ser encontrados nos acervos.
IHU On-Line – Por que a escolha da Unisinos como guardiã dessa documentação? Qual sua expectativa em relação à universidade com essa documentação?
Grimaldo Zachariadhes – Quando entramos em contato com as instituições, a primeira preocupação foi ver se a instituição teria condições de arcar com esse material. Já sabíamos do compromisso da Unisinos com o conhecimento e com a divulgação da informação. A Unisinos, no Brasil, é a única instituição não pública que está recebendo essa documentação, e isso me deixa feliz, porque em geral as universidades privadas não têm esse cuidado e preocupação com a pesquisa e com a extensão.
Quando entramos em contato com a universidade, a Unisinos aceitou imediatamente. Além disso, a universidade se comprometeu em manter a documentação aberta para qualquer pessoa. Esperamos que as pessoas venham à universidade e que consigam revelar o que tem escondido nessa documentação. Espero que os gaúchos vasculhem essa documentação e ajudem a contar essa história.
Hoje esse acervo que está na Unisinos tem 17 mil documentos digitalizados, mas se você quiser pesquisar sobre alguém especificamente, por enquanto, precisará abrir todos esses 17 mil documentos, pois eles não estão catalogados. Assim, pedirei ao Arquivo Nacional um programa que é utilizado lá, o qual faz a busca específica nos documentos por nome ou palavra-chave. Isso facilitará a pesquisa, para que quando o pesquisador for efetuar a investigação, não precise abrir os 17 mil arquivos.
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Símbolo do SNI, que foi criado pelo Gal. Golbery do Couto e Silva e extinto no governo de Fernando Collor (Imagem: Memorial de Democracia)
Como faço para ter acesso ao livro “O Testemunha de Jeová e a segurança nacional”? Pesquisei na Internet, mas infelizmente não encontrei nada.